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O controle das redes sociais, a liberdade de expressão e a privatização da jurisdição

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4. Evolução da liberdade de expressão

4.1. Idade média

A livre manifestação do pensamento, é tema de extenso debate social e judicial, principalmente no mundo dito democrático, conforme já exposto acima. O que é relativamente novo é o alcance da liberdade de expressão no chamado universo on line, especialmente nas redes sociais, onde há intenso debate e, muitas vezes, verdadeiros embates entre cidadãos acerca de suas convicções, notadamente, religiosas, raciais e políticas.

É, em virtude do necessário contraponto entre esses dois universos, aparentemente diversos, que observamos acima a evolução das redes sociais, com notável foco nas companhias que dominam os aplicativos que controlam o acesso dos cidadãos ao mundo virtual. É inescondível a necessidade de se debater não apenas esse controle, concentrado nas mãos de poucas empresas, com o que o ocorreu com as empresas que controlavam a chamada mídia tradicional e com os jornais impressos, no final do Século XX. Igualmente não podemos deixar de levantar o debate acerca da repressão à publicação de impressos, desde tempos anteriores à Gutemberg, até meados do século XX e o controle imposto à tal meio de expressão em diversos países até os dias atuais.

Não intentamos debater aqui se efetivamente existiu ou não a chamada “dark ages” ou era da ignorância, na idade média, dado o cenário histórico e os vieses relativos à tal denominação37, mas efetivamente é inconteste a limitação do acesso ao conhecimento, que naqueles tempos estavam restritos basicamente ao Clero, em seus monastérios, especialmente os beneditinos e à Realeza, ainda assim, de forma restrita. Tal limitação permitiu a contenção de ideias e a manutenção de uma verdade que representava apenas a vontade de uns poucos membros da sociedade, bem como seus privilégios durante vários séculos.

4.2. Idade moderna

4.2.1. A renascença e o iluminismo

Com o tempo, mesmo diante de todas as medidas criadas para contenção do compartilhamento do conhecimento, o gênio humano acabou por suplantar as barreiras e a Renascença trouxe de volta o sopro benfazejo da expressão das ideias, de forma um tanto subliminar ainda, como a inserção do cérebro humano na capela sistina, representando o racionalismo defendido por Michelangelo38, que era grande conhecedor da anatomia humana.

A expressividade explícita ainda levava a perseguições e condenações embasadas em falsas premissas criadas para manter o status quo das classes dominantes, especialmente os supostos intelectuais, em sua maioria clérigos, como acabou por ocorrer com Galileu Galilei quando a Inquisição Católica o deteve por contrariar a tese que a terra era o centro do universo e tudo girava a seu redor. A obra que representava duro golpe nas teses da Igreja foi incluída no Index Librorum Prohibitorum 39,por atentarem contra a moral e a fé católica. Entretanto, os Países Baixos, onde a reforma protestante já havia substituído o catolicismo como fé dominante acabou por inobservar as ordens papais e publicou o livro heliocentrista de Galileu denominado Dialogo di Galileo Galilei sopra i due Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano 40.

Tal obra, ainda que pensada e impressa na renascença, impactou fortemente o iluminismo, que se seguiu àquele período, onde de forma um tanto mais expressa, as ideias e pensamentos foram aflorando, embora os resquícios da manutenção dos privilégios da classe pensante, erudita, ainda que fora do clero, não tenha perdido totalmente sua força. Iluministas como Voltaire41 pregavam claramente a liberdade total de expressão. Voltaire é mais lembrado por uma frase que ele nunca disse, mas que lhe é atribuída em razão de sua biografia42 escrita por Evelyn Beatrice Hall, onde ela sumariza o pensamento do filósofo ao afirmar “Eu desaprovo o que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo”. Entretanto, ainda que defendesse a liberdade de expressão Voltaire defendia que países mais atrasadas deveriam ser governados por Governantes aconselhados por Iluministas, em clara referência à teoria platônica de que é preferível a ignorância absoluta ao conhecimento em mãos inadequadas. Uma contradição que mostra que mesmo entre aqueles mais bem intencionados, há fortes resquícios de vaidade intelectual. Também conhecido como viés.

4.3. Contemporaneidade

Nas primeiras décadas do século XX, a liberdade de expressão já era mais generalizada, com a difusão de meios de comunicação como jornais impressos e programas radiofônicos. Entretanto, não foi antes do fim da guerra fria que a imprensa se tornou verdadeiramente livre de amarras, sejam governamentais sejam ideológicas, no chamado mundo ocidental democrático. Nesse período, já com a grande difusão de outros meios de expressão como a televisão, a música e a sétima arte representada pela cinematografia, a liberdade de expressão atingiu seu auge no mundo ocidental livre. Ainda assim, porém, mesmo agora, no século XXI, ainda há centenas de países que controlam43 a liberdade de expressão de seu povo, v.g., Coreia do Norte, China, Rússia, Cuba, Iran, Venezuela, Eritreia, Turcomenistão etc. Naquelas plagas apenas as ideias e vontade dos governantes se propagam, considerando-se que a vontade de governantes quase nunca é desacompanhada das vontades de alguns grupos empresariais ou eclesiásticos.

Também é a partir do fim da guerra fria observamos o desenvolver do meio de comunicação digital de ideias que encontra seu apogeu com a entrada em cena dos blogs virtuais, programas de mensagens instantâneas e páginas pessoais na rede mundial de computadores, conforme exposto acima. Esse novo universo digital levou a liberdade de expressão a um nível jamais visto na história humana, democratizando, verdadeiramente, o conhecimento e as opiniões. Através desse novo meio a primavera árabe se mostrou ao mundo, mesmo diante da imposição de controle estatal à mídia tradicional. Foi através da internet que o mundo conheceu a verdadeira opinião do povo líbio44, em contraste com aquela publicada na mídia controlada. A transmissão ao vivo, via internet de opiniões contrárias ao governo e a revolta de inúmeros populares fortaleceu a indignação geral e erigiu o levante à integralidade da nação derrubando um dos mais duros regimes ditatoriais então existentes. Fossem os meios digitais, controlados, houvesse o chamado filtro de conteúdo atualmente em voga, provavelmente os vídeos seriam censurados pelas próprias empresas controladoras dos aplicativos e a derrubada do ditador talvez não ocorresse. Tudo depende do viés de quem controla a informação e sua disseminação.

O que estamos testemunhando neste início da segunda década do século XXI é uma novo ciclo de perda da força da liberdade de expressão, com mais e mais governos e empresas privadas controlando a informação e o pensamento, seja para limitação da vontade popular seja para direcionamento desta. No primeiro caso, visando a manutenção de um status quo: utiliza-se do controle da informação para manutenção do poder, em clara repetição do ciclo histórico medieval e da vaidade intelectual iluminista, quando os censores adotam como justificativa dos abusos censuários, discursos embasados naquele período histórico, entretanto alterando a verdade dos fatos, utilizando-se de falsas premissas, no que Schopenhauer45 se assustaria ao se deparar com a dimensão que tomou sua dialética erística. No segundo caso, direcionamento da vontade, visa-se não apenas a manutenção de um estado de coisas, mas igualmente a alteração da realidade atual através do direcionamento da opinião popular, desta feita, ao menos, por duas formas: supressão de um pensamento e divulgação maciça de seu contrário, ambas a cargo de grandes companhias de telemática, como Cambridge Analytica, Google, Facebook e Microsoft, para citar apenas as principais. Nesse cenário, a efetiva neutralidade da rede deve ser imposta pelo Estado como meio de garantir, verdadeiramente, a livre expressão do pensamento.


5. A neutralidade da rede

Decorrência do raciocínio até aqui desenvolvido é o fato de que, estatisticamente, já há um preocupante oligopólio no mercado de tecnologia da informação e que deve ser objeto de intenso debate com fincas na exultação da necessidade de manter o ambiente digital livre de controle dessas poucas, mas gigantescas empresas, considerando que no espectro analisado, está a capacidade delas de impedir as pessoas de exporem seu livre pensar no mundo digital. Atualmente, apenas 4 empresas detêm mais de 85% de controle sobre a redes sociais mais utilizadas pelas pessoas no mundo, sendo 3 deles norte-americanas – Facebook, Microsoft e Google – e uma chinesa, Tencent46. O mesmo oligopólio ocorre nos mercados de mídia tradicional, onde, na maioria dos países, poucos grupos comandam as redes de rádio, televisão, jornais e revistas impressos. Nos EUA, apenas 5 empresas controlam todo o setor midiático local.

A concentração dos meios de comunicação tradicionais gerou um grave declínio na credibilidade das informações publicadas pelos mesmos, cuja consequência é a perda de audiência e ao fim e ao cabo ausência de fontes alternativas de notícias e dados de qualidade. O enviesamento desse meio tradicional é igualmente uma das fontes de seu atual descrédito social, aliado, é claro, à modernização dos meios de comunicação e à adoção dos smartphones como meio primordial de acesso à rede mundial de computadores e, consequentemente à informação. Entretanto, o descrédito já verificado na mídia tradicional poderá rapidamente espalhar-se pelo meio digital criando um ambiente totalmente desprovido de informações críveis para o usuário comum, gerando grande desconfiança em tudo quanto venha a ser informado, desaguando em um indesejado, ao menos para a maioria da população, ambiente de caos informacional, que poderia justificar ainda mais indesejadas medidas visando a “lei e a ordem”, através da regulação total dos meios de comunicação por governos, ou empresas, ou, ainda, ambos em associação, acabando de vez com a livre expressão do pensar.

5.1. A lei norte-americana

É nesse cenário que a necessidade de neutralidade da rede se impõe. Sem uma internet neutra, isto é, sem que seja possível impedir que as empresas que controlam os aplicativos de comunicação social, possam realizar os chamados filtros de conteúdo, a seu bel prazer, será inevitável o caos, uma vez que as pessoas deixariam de acreditar em algo que esteja sendo divulgado e que seja contrário aos seus interesses, religião, moral, costumes, religião etc., pelo simples fato de crerem tratar-se de manipulação de dados pelas chamadas Bigtechs. O debate verdadeiro, a salutar contraposição de ideias e ideais deixará de ter cabimento, uma vez que tudo parecerá ser tentativa de submissão dos leitores, participantes, integrantes, população etc. à opinião que mais pareça interessante às Bigtechs, ou quem quer que possa parecer ser beneficiado pela procedência do argumento propagado. Praticamente se põe fim à dialética Aristotélica, e implantação da ditadura do mais forte.

Os EUA regularam suas telecomunicações através do “Communications Act”, de 1934, que teve aditado sua seção 230 em 1996, através da Seção 9 do “Communications Decency Act / Section 509 of the Telecommunications Act” que estabeleceu que "Nenhum provedor ou usuário de um serviço de computador interativo deve ser tratado como editor ou locutor de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo de informação 47." Essa norma estabelece, portanto, que as empresas que proveem serviços de internet não podem ser responsabilizadas pelo conteúdo compartilhado por seus usuários, tendo em vista que não fazem a edição dos mesmos. Por outro lado, igualmente protege os mesmos provedores de serviços de telecomunicação na internet de serem responsabilizados quando eles mesmos reduzem o alcance das informações com determinado conteúdo ou simplesmente garantam meios para que terceiros o façam.

O temor geral sempre foi o de que a permissão para qualquer regulação dos serviços digitais levaria a um desnecessário controle governamental geralmente ligado a ideologias e vieses que prejudicam o livre pensar. Até pouquíssimo tempo, todo em qualquer legislador democrático, ao se deparar com normas que visavam o controle de conteúdo da internet ou o controle das empresas que proveem acesso das pessoas às plataformas ou aplicativos que permitem ao usuário expressar suas ideias, ficaria arredio à ideia ou até mesmo a rejeitaria de plano. Não mais.

5.2. A lei brasileira

No Brasil, apenas em 2014 foi aprovado o marco civil da internet, através da Lei nº 12.965/2014, que estabelece em seus arts. 18. e 19, basicamente o mesmo comando legal previsto na seção 230 da Lei Norte-americana, prevendo a responsabilização do provedor de aplicações de internet só quando este não tomar providências após a intimação judicial específica48, deixando expressamente estabelecido que tal medida visa a proteção da liberdade de expressão.

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No ano de 2020, visando combater a propagação de fake news, o Senado brasileiro, acabou por aprovar o P.L.S. 2.630/2020, cuja matéria ainda depende de votação na Câmara dos Deputados, onde entre outras normas, impõe aos provedores de conteúdo e aplicações de internet a obrigatoriedade de identificação49 válida e obrigatória dos usuários, praticamente vedando o anonimato, utilizado desde os tempos de Voltaire, ou de Benjamim Franklin, que para expressar e veicular suas ideias relativas à revolução americana e escapar da censura dos jornais da época, vinculados à monarquia inglesa, utilizou-se do pseudônimo de Silence Dogood 50. O P.L.S. 2.630/2020 acaso aprovado sem ressalvas na Câmara Federal é um remédio que ao revés da cura, trará a morte ao paciente.

5.3. A lei alemã

A Neztdurchsetzungsgesetz 51, ou em tradução livre, Lei de Repressão da Rede, aprovada pelo Bundestag, a Câmara Baixa do Parlamento Alemão, em fevereiro de 2018 é a inspiração e base do P.L.S. 2.630/2020 do Senado Brasileiro e ambas tem sido seriamente questionada por Juristas, Políticos, Organizações não governamentais e a própria imprensa5253. A premier alemã, Angela Merkel, já reconheceu publicamente ser necessário “alguns” ajustes na norma aprovada de modo a efetivamente não impedir a liberdade de expressão. A NetzDG obriga os provedores de redes sociais a fornecer um sistema para lidar com reclamações sobre conteúdo ilegal. Se o conteúdo for "manifestamente" ilegal, ele deve ser bloqueado pelo provedor de rede social dentro de 24 horas. Outros conteúdos ilegais devem ser bloqueados geralmente dentro de sete dias após o recebimento de uma reclamação. O período de sete dias pode ser estendido se o usuário que postou o conteúdo tiver a chance de responder à reclamação ou se um órgão de autorregulação estiver envolvido. Conteúdo ilegal é aquele que se enquadre em tipos previstos no Código Penal Alemão, incluindo incitação ao ódio, insulto e difamação (intencional). A lei também contém uma obrigação de relatório semestral de conteúdo e um requisito para os provedores de redes sociais fora da Alemanha terem uma pessoa autorizada para receber serviços dentro da Alemanha.

O mais grave erro da Lei Alemã, assim como em seu espelho Brasileiro, o P.L.S. citado, é a terceirização do juízo acerca do que venha a ser conteúdo passível de controle social, imputando o ato de censura à empresas de tecnologia e organizações não governamentais cujas políticas internas e vieses ideológicos não são objeto de regulação pela mesma lei, garantindo, em último caso que um discurso seja vedado pelo simples fato de contrariar a ideologia da O.N.G. ou da própria empresa de tecnologia, ou pior ainda, de um técnico qualquer dessa empresa, que por questões pessoais, possa vir a discordar da ideia propagada, ferindo a liberdade de expressão com total aquiescência do Estado e sem a participação do poder judiciário, o que no Brasil fere a previsão constitucional prevista no inciso XXXV do art. 5º da CF/8854. Na Alemanha, as críticas mais severas são acerca da necessidade da NetzDG, considerando que pelo regramento55 previsto no art. 14. da Diretiva de E-commerce do Parlamento Europeu cabe aos Governos dos Estados membros, através das respectivas agências legais, a aplicação da lei penal e processamento administrativo e judicial dos provedores de conteúdo na internet, além de que a própria Lei Alemã já prever através do instituto do Störerhaftung, ou responsabilidade de interferência, o acionamento judicial dos provedores de conteúdo de internet, em casos de violação de direitos constitucionais de uma pessoa.

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Sobre o autor
Márcio Ricardo Gardiano Rodrigues

Advogado, especialista em direito público pela PUC-MINAS, MBA em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas-DF, Especialista em Blockchain Strategy Program pela Universidade de OXFORD- Inglaterra. Pós graduando em Direito Eleitoral pelo INSTED, em Campo Grande – MS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Requisito parcial para a conclusão do Curso de Pós-Graduação em Direito Eleitoral, realizado na Faculdade INSTED.

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