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O controle das redes sociais, a liberdade de expressão e a privatização da jurisdição

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6. O aspecto eleitoral

Como não poderia deixar de ser, as implicações acerca da limitação da liberdade de expressão espalham-se pelos diversos vértices do prisma social humano, sendo, o eleitoral, um de seus mais visados, dado o poder de influência deste sobre os demais. É neste espectro que o discurso de controle das mídias sociais tomou maior corpo, especialmente após as eleições norte-americanas de 2016, quando a empresa chamada “Cambridge Analytica” e seus métodos de compilação da chamada big data vieram à tona, embora aquela empresa fizesse uso desses mesmos modus operandi anteriormente. O debate enveredou pela censura das redes porquanto é sempre mais interessante, àqueles que exercem o poder, o controle da opinião do que a regulação da atividade econômica. Há, mesmo nas mais maduras democracias um anseio ditatorial sempre pronto a ser despertado, especialmente se puder vir disfarçado de medidas de contenção de abusos. O falseamento da verdade é caminho escolhido por todo e qualquer regime absolutista, especialmente em sua gênese. Há sempre o discurso da proteção dos mais fracos, do benefício da maioria e da punição aos grandes. O Nazismo, v.g., iniciou-se a partir do Partido dos Trabalhadores alemães - German Workers' Party – rebatizado por Hitler como Partido Nacional Socialista Alemão, com uma política vaga e ampla, o partido prometia principalmente melhores pensões, aposentadoria e mais trabalho, numa Alemanha devastada pela primeira guerra e vendida no tratado de Versailles. Utilizando-se massiva de propaganda, Goebbels ao mesmo tempo impedia que aqueles que se opunham à visão da política nazista conseguissem se expressar de forma que impedia o público geral de tomar contato com a oposição, massificando apenas uma opinião junto à população56. Deu no que deu.

É certo que não se pode negar a influência funesta de empresas como a Cambridge Analytica em uma eleição, assim como é certo que se ela, assim como suas concorrentes, não operarem na legalidade operarão na clandestinidade; as agências governamentais de inteligência estão aí para provar que dados podem ser obtidos de qualquer forma, seja por força do Estado, seja por propinas, vazamentos57 ou até mesmo defecções58. Cercear a opinião de pessoas, limitando o que podem ou não compartilhar certamente não impedirá que empresas de big data obtenham dados dos usuários de empresas big tech, até porque não se concebe que eleitores – usuários da www – desaparecerão das redes sociais, ou simplesmente pararão de compartilhar seus dados nos respectivos aplicativos, aumentando exponencial e diariamente o volume de dados disponíveis sobre suas preferências, sociais, morais, religiosas e políticas.

A regulação, portanto, deve ser das empresas e como elas utilizam os dados do usuário, permitindo que este, que para aquelas empresas não passa de um asset, ou seja, um valor a ser negociado, possa saber para quem seus dados foram repassados, negociados ou vendidos, de tal forma que este possa igualmente receber um valor acaso tal negociação ocorra. Afinal, se a opinião importa para alguém é porque tem valor, social, político, moral, religioso, eleitoral e principalmente econômico e nesse caso, considerada a neutralidade da rede, esse valor pertence não à big tech respectiva, mas ao dono dos dados, o usuário que compartilhou. Seja lá o resultado que for obtido da negociação desses dados, eles devem ser repassados ao seu legítimo autor.

É cristalino que se caminharmos no rumo de restrições às opiniões políticas e partidárias em redes sociais ditado a partir de 2016, com a privatização da jurisdição em favor das big techs, teremos uma inconstitucional limitação da liberdade de opinião e expressão exercido por companhias privadas não investidas de múnus público para tanto. Nesse caminho toda divulgação de pensamentos, ideias e opiniões acerca do espectro eleitoral e, consequentemente, dos rumos de uma eleição seria ditado não por oficiais do Estado, devidamente eleitos e revestidos de múnus público, mas por empresas privadas com suas próprias agendas ideológicas e comerciais, totalmente dissociadas da vontade de maioria e, mais, sem legitimidade constitucional para tanto.

Num simples exercício retórico, podemos concluir, que essas companhias, ao suprimir de suas plataformas de discussão pública as opiniões que lhes são contrárias, mantendo-se apenas aquelas que se coadunam com suas próprias agendas, seja política seja comercial, estariam agindo como agentes de propaganda de seus próprios interesses, numa inescondível similaridade com o ocorrido na Alemanha dos anos 20 do século passado, desta vez, entretanto, a seleção do que se propaga é escolhida não por um agente de propaganda de um determinando partido com uma determinada agenda, mas por um algoritmo de inteligência artificial, de uma ou várias empresas, com suas próprias agendas, que por sua semelhança e função, poderia perfeitamente ser denominado de algoritmo Goebbels. Evoluiríamos de governos de pessoas totalitárias para inteligências artificial autoritária.

Mais, nas democracias consolidadas, o regime de governo é sempre cláusula pétrea nas respectivas constituições. Cabe ao povo, através dos legítimos processos de sufrágios eleitorais, a escolha daqueles que darão cumprimento ao estatuído nessas Cartas Magnas. Nesse passo, se os governos serão de esquerda, centro ou direita, ou, ainda, um misto de todos, cabe ao eleitor a escolha. O processo eletivo, conduzido dentro da garantia da máxima liberdade de expressão, opinião e ideias é o que garante a saudabilidade de um regime democrático. Ao privatizar-se a jurisdição, garantindo-se a empresas de tecnologia a prerrogativa de identificação do que é ou não é discurso vedado, seguindo seus interesses privados, o Estado omite-se, covardemente. Sem poder ditar o rumo que quer seguir, a partir da vontade de sua população, o país deixa de existir internamente, falta-lhe um dos requisitos da soberania interna. Ao delegar o controle da vontade de seu povo a um poder externo, privado, desaparece a soberania externa. A perda total da soberania é, portanto, seguindo-se o passo da privatização da jurisdição, em curso, inevitável. No caso brasileiro, a terceirização de controle de conteúdo para companhias privadas, nos moldes aqui debatidos, especialmente no que tange ao discurso político, fere o inciso V do artigo 1º da CF/88.

Não se trata, portanto, de limitar ou controlar-se o que dizem e pensam as pessoas, mas sim como as empresas coletam, tratam e comercializam os dados dos usuários em suas plataformas. Nesse campo, é preciso relembrar que já há diversas ferramentas de controle do que se pode e o que não se pode veicular em redes sociais e na internet como um todo, v.g., nos EUA é vedado a veiculação de qualquer mensagem ou conteúdo que contenha ou que esteja relacionado com pornografia infantil59, incitação à violência, com risco atual, eminente e dirigido especificamente à pessoa60, ameaça ao presidente da república, obscenidade61, direito autoral e publicidade comercial fraudulenta, fake news, assim considerada a propagação dolosa de informação sabidamente falsa62. A França, aprovou uma alteração em seu código eleitoral em dezembro de 2018, através da Lei nº 2018-120263, visando punir a propagação de fake news em períodos eleitorais, de tal forma que ao limitar a expressão, igualmente se adorna ao tema em comento. Nesse aspecto, a novel legislação francesa prevê a vedação e punição de difusão deliberada, em período eleitoral de informação que possa ser objetivamente identificada como falsa, desde que demonstrado o real perigo de afetação do resultado eleitoral, não abarcando opinião, paródia, falsidade parcial ou exageros(memes). Já no Brasil, não faltam, igualmente regramentos para conter abusos na rede, mesmo no período eleitoral, já que o próprio código eleitoral prevê a punição de crimes contra a honra e denunciação caluniosa, em seus artigos 324-327. Considerando-se, como exposto no início deste artigo que a liberdade de expressão no Brasil, não comporta a proteção a tais condutas, fica explícita a limitação da liberdade desse tipo de opinião igualmente nas redes sociais. O mesmo se diga no que tange à proteção e a dignidade sexual de crianças e adolescentes, através do ECA e da recente lei de infiltração policial na internet64 ou, ainda, a lei de combate às organizações criminosas65. Claramente, é desnecessário que se atribua ou, pior, que se aceite, sem qualquer norma legal expressa, às empresas privadas o direito de filtragem do conteúdo de opiniões de suas plataformas de comunicação ou da internet como um todo. Esse dever – de análise - é do Estado e apenas dele, mediante provocação e processamento justo, o inarredável due process of law.


7. O exemplo polonês

A Polônia, um dos países que mais sofreram com a repressão política e da liberdade de expressão do mundo, deu um passo na direção do que defendemos aqui. Por proposição do Ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, aquele país enviou ao parlamento uma lei denominada de “lei sobre a liberdade de expressão dos próprios pontos de vista e de pesquisa e divulgação de informações na Internet”. A lei prevê que acaso um provedor de conteúdo ou aplicativo de rede social, bloqueie uma conta, ou conteúdo publicado, o prejudicado poderá comunicar à empresa sua discordância, demonstrando não ter havido violação às leis de proteção da liberdade de expressão polonesa. A empresa terá então 24 horas para analisar a reclamação. De qualquer forma, dentro de 48 horas da reclamação, fica autorizado o usuário a protocolar diretamente na corte de justiça competente um processo eletrônico judicial que deverá ser decidido em até 7 dias. Julgado procedente o pedido, acaso a empresa não restabeleça a publicação ou o status quo da conta bloqueada, poderá ser multada em até € 1.800.000,00(um milhão e oitocentos mil euros). Para as autoridades polonesas, o arbitramento judicial das diferenças retira da equação a sobrepujança de uma maioria sobre uma minoria, de tal forma que não se poderá retirar um discurso, uma ideia, propaganda ou opinião da rede, apenas em razão de ser contra majoritária. Para tanto, é necessário que haja a violação das respectivas lei polonesas, ficando a cargo de uma corte judicial, dizer se cabe ou não a censura.

Na Polônia não haverá privatização da jurisdição sobre a liberdade de expressão na internet. As eleições ali serão travadas sob o livre manto da liberdade de expressão, sem patrulha ideológica de quem quer que seja, especialmente dos interesses privados das grandes companhias de tecnologia e suas obscuras agendas ideológicas e comerciais.


Conclusão

Manipulação da informação, alteração da verdade, ou simplesmente fake news, é uma prática que deve ser combatida, mas, com muito mais ênfase, deve ser defendido o direito à livre manifestação do pensamento e exposição de ideias. Não podemos aceitar que, em nome do combate à um mal, como efetivamente é a alteração da verdade, dê-se vazão a um leviatã, não na forma pensada por Hobbes, mas muito pior, privado.

Se há grandes diferenças acerca da extensão da liberdade de expressão, quase que absoluta como querem os norte-americanos ou relativa como defendem europeus e brasileiros, o fato é que, em nenhuma grande democracia, se abre mão desse fundamental direito do homem.

Também não passa desapercebida a grande dominação dos meios de comunicação, sejam tradicionais sejam os mais recentes, por poucas e poderosíssimas corporações cujos interesses são guardados a sete chaves e longe da transparência pública.

Faz muito pouco tempo que a maioria das pessoas tem oportunidade de ter acesso quase que ilimitadamente ao conhecimento e à opinião. Restringir a disseminação do livre pensar, falar e idealizar no mundo digital, da forma como se vem prevendo no P.L.S. 2630/2020 e suas inspirações internacionais, além de representar uma privatização da jurisdição, revive o infame Index Librorum Prohibitorum em sua forma virtual, dá se nova vida ao meios nazistas de controle de difusão e controle de propaganda, além de se criar um leviatã privado, que será impossível de ser controlado.

Não se pode permitir que empresas privadas controlem ou se arvorem no direito de dizer o que é e o que não é ilegal. Esse é um direito inarredável da jurisdição e uma das funções constitucionais do poder judiciário. Nesse cenário, a lei polonesa, citada acima, deve servir de inspiração para o Brasil, de modo a garantir-se não apenas a liberdade de livre manifestação em qualquer ambiente, físico ou virtual, mas igualmente de se coibir a circulação de notícias falsamente alteradas.

Fake news é grave quando implica na violação de tipos penais e especialmente quando veiculada massivamente por meios digitais. São a verdade, a transparência a publicidade e a educação, que levam ao desmascaramento público e a consequente reprovação do malfeitor as principais armas para se combater as fake news. Ainda, é importante salientar que essa prática deve ser proporcionalmente sopesada, para que não se atente contra a própria natureza humana e dois de seus maiores defeitos, o invejar e o mentir, que têm estado presentes desde que o homem se entendeu por homem, ou como querem os criacionistas, desde Abel e Caim. Não desaparecerão tão cedo, não importa a lei ou punição que se crie. Os regimes ditatoriais mais cruéis não foram capazes de extirpá-las. Proporcionalidade, reforço da defesa da liberdade de pensamento e combate aos delitos virtuais, conforme se vê, não são auto repelentes, podem e devem conviver perfeitamente em um arcabouço jurídico amplo e compreensivo onde quem aplica o direito é o Estado, através do poder judiciário e apenas por ele.

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Referências

A PRIMAVERA ÁRABE E AS REDES SOCIAIS: O uso das redes sociais nas manifestações da Primavera Árabe nos países da Tunísia, Egito e Líbia Jaqueline Zandona Bartkowiak [1 ], Thatiane de Almeida Fonseca[2] , Gabriel Motta Mattos[3] e Vitor Henrique do Carmo Souza, disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/30432/30432.PDF Acesso em: 09 nov. 2020

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Sobre o autor
Márcio Ricardo Gardiano Rodrigues

Advogado, especialista em direito público pela PUC-MINAS, MBA em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas-DF, Especialista em Blockchain Strategy Program pela Universidade de OXFORD- Inglaterra. Pós graduando em Direito Eleitoral pelo INSTED, em Campo Grande – MS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Requisito parcial para a conclusão do Curso de Pós-Graduação em Direito Eleitoral, realizado na Faculdade INSTED.

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