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Polícia: conceitos e uma breve historiografia

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O presente ensaio propõe uma análise em alguns conceitos afetos à atividade policial, bem com traz à tona uma breve historiografia da polícia brasileira.

Etimologicamente polícia advém do grego “politeia”, derivação de “polis” (cidade), que significa “governo ou administração de uma cidade”. De fato, a polícia enquanto instituição sempre esteve presente na vida em sociedade, surgindo no Ocidente coma criação das Cidades-Estados da Grécia antiga, assumindo um papel de conformadora social, no momento em que sua principal tarefa estaria intimamente relacionada à conservação do próprio Estado.

Mais modernamente, e na contemporaneidade, “polícia” é uma expressão que pode assumir múltiplas acepções a depender do ângulo que se pretende lidar. Polícia pode ser vista enquanto poder, função ou instituição. Por poder, se entende aquilo denominado como “poder de polícia”, que é inerente a todos os órgãos ou instituições que compõe a Administração Pública (por exemplo, o poder de polícia exercido pelo órgão de vigilância sanitária ao fiscalizar um restaurante).

Já a análise da “polícia” como função costuma ficar circunscrita às tarefas desempenhadas pelas agências de controle social que compõe o sistema de justiça penal. Pode-se citar uma primeira função, a chamada “polícia preventiva”. Neste papel, a polícia foi idealizada para atuar antes da ocorrência do crime, ou seja, prevenindo ou inibindo a prática do delito. É uma função policial que se desenvolve antes das mais variadas formas de comportamentos antissociais. A polícia preventiva está intimamente relacionada ao direito à segurança, que impõe ao Poder Público o dever de zelar especialmente pela vida, integridade física e patrimônio dos indivíduos. (artigo 5º, “caput”, da Constituição da República Federativa do Brasil). E como este direito deve ser prestado pelo Estado? A segurança parece ser antes de tudo uma sensação. Fala-se em direito de se sentir seguro. Estaria diante de um direito-sensação. Não é por outro motivo que a principal característica do polícia preventiva é ser ostensiva, isto é, visível à população, podendo ser notada a sua presença por qualquer pessoa onde se encontre os seus agentes. A função de “polícia investigativa” por sua vez desempenha um papel complementar, porém distinto da “polícia preventiva”. Nesta tarefa, a polícia sempre desenvolve seus trabalhos após a ocorrência do crime. À polícia investigativa compete, em sendo praticado um delito, a comprovação de sua existência do fato e a indicação do suspeito pela sua prática. No desempenho desta tarefa, é conveniente aos policiais destas agências que atuem de maneira velada, ou seja, não ostensiva, sob pena de prejudicar o sucesso da busca pela informação, em especial no caso da pesquisa de campo.

Como terceira e última função, pode-se falar em polícia judiciária, que pode ser vista como auxiliar do Poder Judiciário. Neste papel, a polícia judiciária atua em regime de colaboração e subordinação aos juízes, cumprindo as decisões expedidas pelas autoridades judiciais. Como exemplos de polícia judiciária como função devem ser lembrados: cumprimento de mandados de prisão, cumprimento de mandados de busca e apreensão entre outras medidas cautelares no sistema processual penal, acautelamento de objetos e instrumentos relacionados com crimes etc.

Por obra de Marquês de Pombal, em 1760, foi criada em Lisboa a Intendência-Geral da Polícia da Polícia da Corte e do Reino. Ainda em Lisboa, em 1801, o Príncipe Regente D. João criou a Guarda Real de Polícia, nos mesmos moldes daquelas instituídas em outras capitais européias, até então, tendo como principal incumbência a conservação da ordem e tranqüilidade pública, determinando que fosse adotado o regime disciplinar militar, sendo que seus integrantes passavam a dever obediência hierárquica ao General das Armas da Província. Após, em 1808, com a transferência da Corte Real de Portugal para o Brasil, o Príncipe Regente D. João cria a divisão militar da Guarda Real da Polícia no Rio de Janeiro, sua nova sede administrativa, optando uma vez mais pelo modelo instituído em Lisboa.

Há quem sustente que a existência das Polícia Civis remontaria ao século XVII, com a figura dos alcaides. Todavia parece mais seguro afirmar que, também no ano de 1808 foi criada da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, no Rio de Janeiro, sob o comando de Paulo Fernandes Viana, e a instituída a Secretaria de Polícia, considerada o embrião das Polícias Civis. Pouco tempo depois, em 1810, com a criação do cargo de Comissário de Polícia, sendo que suas atribuições eram de fato desempenhadas Delegados do Chefe de Polícia, cargo mantido mesmo após a Proclamação da República., na Capital e nos Estados. Como será explorado em seguida, às Polícias Civis foram criadas para exercer a apuração das infrações penais e da sua autoria, por meio do chamado inquérito policial, procedimento previsto no Código de Processo Penal, desde 1871.

D. Pedro II criou a Guarda Nacional em agosto de 1831. No mesmo ano, o Imperador extinguiu a já citada divisão militar da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro, e autorizou a criação de corpos de guardas municipais voluntários no Rio de Janeiro e províncias. Assim as forças policiais das províncias passaram a ser constituídas pelas guardas municipais e corpos policiais. Com forte influência do sistema policial francês, a noção de polícia era muito mais larga se comparada com a forma como concebemos hoje. Muitas das atribuições que no passado eram confiadas à polícia foram gradativamente sendo transferidas a outras instituições. O primeiro intendente Paulo Fernandes Vianna, que chefiou a Intendência de Polícia até 1820, exerceu um papel de quase prefeito do Rio de Janeiro.

Há quem diga que a polícia exerceu durante o período imperial um “papel missionário”, pois levou a figura do Estado para lugares em que nunca havia se estabelecido, mas o fato é que fora da capital Rio de Janeiro, houve inúmeras tensões entre os poderes locais, já estabelecidos, e corpos policiais indisciplinados e precarizados. Contudo, os policiais foram se adaptando aos costumes e práticas locais, ditados por aqueles que já comandavam a vida política das cidades. Na luta pelo monopólio da força, a polícia atuava orientada pelos interesses do governo da Província, que muitas vezes acabavam por contrariar os interesses das elites locais. O que se observa é um movimento em direção à autonomia política de uma polícia militarizada. Após a Guerra do Paraguai, a Guarda Nacional passou a perder seu protagonismo como principal instituição policial do país, cedendo espaço a forças policiais provincianas. Para tanto, as Províncias passaram a investir maciçamente em favor de suas polícias, sendo generosas na destinação orçamentária em detrimento de outros setores do poder público. A consolidação institucional das polícias nas Províncias, contribuiu para o sucesso do liberalismo, ao passo que a presença das forças policiais nas cidades garantiu que a lei passasse a vigorar. O Estado passa a ser uma arena de negociação entre os diversos grupos de pressão. Nas cidades, a mediação desses conflitos passou a ser uma incumbência policial.

No período colonial, marcado por uma burocracia estatal ainda em estágio embrionário, a polícia era o único órgão público perceptível pela sociedade. Por esse motivo é que geralmente se afirma que as pesquisas sobre as polícias dizem muito mais do que elas em si, pois meio desses estudos é possível compreender a diversidade de relações estabelecidas entre os diferentes segmentos sociais e a polícia. Um olhar sobre os policiais nos permite dizer que em seus quadros eram encontrados os indivíduos que faziam parte do maior grupo social. Tratava-se de homens pardos e pobres. Estes indivíduos tinham poucas chances de promoção vertical da carreira policial. Há que ser destacadas também a luta por autonomia da polícia no final do período imperial, relacionada com interesses classistas, e a construção de um saber específico que passa a definir a identidade do policial.

Após a Proclamação da República, os Corpos de Polícia passaram a ser designados como Corpos Militares de Polícia, sendo subordinados aos Estados. Por ocasião da Primeira Grande Guerra, as forças policiais poderiam ser incorporadas pelo Exército Brasileiro, no caso de mobilização. No período republicano, as polícias ficaram marcadas pela fragilidade institucional e pela busca da profissionalização; já os policiais dos primeiros anos da República são caracterizados pela excessiva discricionariedade.

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Após 1930, o papel de polícia política se destaca no cenário nacional. Durante o Estado Novo, a institucionalização da polícia a aproximou do poder central, e garantiu a ela uma ampla margem de autonomia no policiamento das ruas. A polícia ao chegar aos rincões do interior do país, muito mais do que trazer a modernidade para o campo, teve que se adaptar à realidade campesina, sendo que foi muito mais um processo interativo do que uma 'colonização' pelo Estado.

Após a Segunda Grande Guerra, as instituições militares, como a Força Pública em São Paulo, detinham as incumbências de guardar os prédios públicos e enviar destacamentos para as cidades do interior, enquanto que o policiamento preventivo nas grandes cidades ficou a cargo das Guardas Civis, segmento uniformizado das Polícias Civis Estaduais. Em 1967, foram extintas as Guardas Civis, criadas as Polícias Militares dos Estados, da forma como se entende contemporaneamente, as considerando forças auxiliares, reserva do Exército.

Durante a ditadura militar, as Polícias Civis se notabilizaram pela institucionalização da tortura e outras violações de direitos daqueles que reputavam ser inimigos do regime de exceção. Nenhum outro órgão das Polícias Civis do Brasil obteve tanto destaque como as chamadas DOPS (delegacias de ordem política e social), criadas para fazer frente à efervescência de movimentos político-sociais opositores ao establishment da chamada República Velha (1894-1930), e da famosa “política do café-com-leite”, sistema engendrado pelas elites agrárias de São Paulo e das Minas Gerais. As DOPS foram instituídas exatamente para conter as mobilizações deflagradas, principalmente fora do campo, pois mais distantes dos olhares coronelistas, sendo estes órgãos constituídos com “amplo aparato de cunho administrativo-legal a fim de controlar todas essas manifestações de descontentamento político”

O Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), criado em 1924, foi um dos mais relevantes e eficientes órgãos de repressão estatal no período. O DEOPS paulista repressão violenta aos  “subversivos”., na chamada “caça aos comunistas”. Assim, as Polícias Civis exerceram vigoroso controle sobre todo e qualquer dissidente político do regime ditatorial. Esses corpos policiais estiveram ao inteiro dispor dos governantes para vigiar, investigar e reprimir os indivíduos que reagiam de modo adverso, encarados invariavelmente como “perigosos”. As DOPS ganharam proeminência já no Estado Novo (1937-1945), oportunidade em que foi um dos principais instrumentos de vigilância política de sindicatos, universidades, imprensa, e outras formas de organizações sociais. Com o golpe militar de 1964, as DOPS se integraram a outros organismos criados durante o regime autoritário, para constituírem o Sistema Nacional de Informações (SNI), uma verdadeira agência central de informações. A partir de então, se consolidou o “Estado de Segurança Nacional”, com a criação de uma comunidade de informações alinhadas na doutrina da segurança nacional, sendo que cabia às DOPS alimentar o SNI e os órgãos de inteligência militares (CIEX, CISA e CERIMAR4) com os chamados “informes”. Na iminência da redemocratização brasileira, o DEOPS paulista foi extinto em 1983.

Com a redemocratização, o artigo 144, “caput”, da Constituição da República Federativa do Brasil, passou a prever que: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Para assegurar o “direito à segurança”, este artigo prevê os seguintes órgãos:  (i) polícia federal; (ii) polícia rodoviária federal; (iii) polícia ferroviária federal; (iv) polícias civis; (v) polícias militares e corpos de bombeiros militares.

À polícia federal, mantida pela União, compete a função de polícia investigativa especial dos seguintes crimes: (i) políticos; (ii) que prejudiquem instituições federais; (iii) de repercussão interestadual; (iv) de repercussão internacional, e exija repressão uniforme. Também compete à polícia federal a função de polícia preventiva de (i) tráfico de drogas e (ii) contrabando e descaminho, além de exercer (iii) polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras. Por fim, compete à polícia federal exercer, com exclusividade, a função de polícia judiciária da União. Conclui-se que a polícia federal a um só tempo exerce as funções de polícia preventiva, investigativa e judiciária. Às Polícias Rodoviárias e Ferroviárias Federais compete o patrulhamento ostensivo das rodovias e ferrovias federais, ou seja, os referidos órgãos exercem a função de “polícia preventiva”.

Às polícias civis estaduais compete as funções de polícia judiciária dos Estados e polícia investigativa dos chamados crimes comuns.

Por último, às polícias militares compete a “polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”, isto é, exercer as funções de “polícia preventiva”, que possui a característica de ser ostensiva, como já pontuado. Além disso, as polícias militares possuem competência de “polícia investigativa” para apuração dos chamados crimes militares, e de polícia judiciária militar.

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Sobre o autor
David Pimentel Barbosa de Siena

Professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra" (ACADEPOL), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Doutorando e Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Delegado de Polícia do Estado de São Paulo (PCSP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIENA, David Pimentel Barbosa. Polícia: conceitos e uma breve historiografia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6609, 5 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92145. Acesso em: 28 mar. 2024.

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