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Inversão dinâmica do ônus da prova

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Estudam-se as situações relacionadas à impossibilidade, à excessiva dificuldade ou à maior facilidade de uma das partes em se desincumbir do ônus probatório, que acabaram por justificar o nascimento da inversão dinâmica deste dever processual.

Sumário: Introdução. – 1. Conceito e finalidade do ônus probatório. – 2. Ônus objetivo e subjetivo da prova. - 3. As teorias de distribuição do ônus da prova. – 3.1. Teoria estática do ônus da prova. – 4. Teoria dinâmica do ônusa da prova. – Conclusão.


INTRODUÇÃO

O atual Código de Processo Civil, entre as alterações que introduziu na sistemática processual, consagrou a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova.

Escrever sobre o envolvente tema exige que façamos uma análise, ainda que suscinta, acerca do conceito de ônus probatório, diferenciando-o de obrigação.

Outro aspecto relevante a ser anaisado está na diferença entre a perspectiva subjetiva e objetiva do ônus probatório.

Enquanto a primeira se preocupa com quem vai suportar o risco da ausência da prova ou de uma eventual prova frustrada, voltado, portanto às partes, a perspectiva objetiva, voltada ao juiz, mostra-se relevante no momento do julgamento, impedindo que o magistrado deixe de julgar sob o argumento de que não restaram comprovados os fatos controvertidos.

Faremos, ainda, alguns apontamentos acerca das teorias de distribuição do ônus probatório, correlacionando-as aos dispositivos legais.

Verificaremos que no Código de Processo Civil de 1973 a regra do ônus probatório vinha disciplinada no artigo 333 e consagrava a teoria estática.

O atual Código de Processo Civil, por sua vez, traz a previsão no artigo 373, caput, mantendo, a princípio, a distribuição estática. Permite, entretanto, respeitado os requisitos legais (previsto nos parágrafos do dispositivo), a aplicação da teoria dinâmica do ônus probatório.

Por fim, analisaremos a consequência desta inversão, quando utilizada, no custo da prova.


1. CONCEITO E FINALIDADE DO ÔNUS PROBATÓRIO.

No debate que se trava no processo, em que uma das partes afirma e a outra nega, a prova se mostra essencial para permitir que o juiz consiga proferir uma decisão que conduza a uma justa solução do litígio.

Deste modo, para se permitir que seja concedida a tutela jurisdicional àquele que tem razão[1], muitas vezes a situação fática precisa ser reconstruída, com o objetivo de que as questões relevantes à controvérsia submetida à julgamento possam ser resolvidas.

Cada parte, então, se utiliza dos meios que possui, desde que legítimos, para demonstrar, convencendo o juiz, aquilo que afirma, de modo a conseguir êxito na pretensão deduzida.

Identifica o sistema processual que cada parte tem o interesse[2] de provar os argumentos que traz ao processo, e em razão disso, impulsiona cada um a comprovar aqueles fatos cuja demonstração podem conduzir à uma decisão que lhe seja favorável, instituindo ônus a cargo de cada uma das partes.

De modo simplificado, a ideia de ônus, se identifica como uma “obrigação” para consigo mesmo. Se caracteriza pela imposição a alguém de determinado comportamento sob pena de não o adotando poder gerar a si mesmo um dano, tratando-se de imperativo do próprio interesse. Exatamente o que o difere de obrigação, cujo inadimplemento gera dano a outrem.[3]

Carnelutti[4] estabeleceu a distinção entre ônus e obrigação. Definiu obrigação como sendo um vínculo da vontade imposto pela subordinação de um interesse (tutela um interesse alheio). E ônus[5] quando o exercício de uma faculdade é posta como condição para obter certa vantagem, sendo por isso necessário para a consecução de um interesse próprio (tutela um interesse próprio)[6].

Identificado com um encargo, ou como uma espécie de desafio, sua inobservância, pode levar ao insucesso do interessado[7], de modo que o autor deve provar os fatos que afirma, mas não a não-existência daqueles, que impedem a sua constituição, determinam sua modificação ou sua extinção, que devem ser provados por aquele que tem interesse que o direito não venha a ser reconhecido[8], de modo que em não o fazendo, a parte aceita o risco de se colocar em desvantagem processual, já que é através das provas que se fornece ao juiz meios para o seu convencimento.[9]

O cumprimento do ônus probatório está relacionado a maior possibilidade de convencimento do juiz, mas não é determinante, tampouco essencial, para a obtenção de um julgamento favorável, na medida que a decisão pode ser proferida com base em provas trazidas aos autos pela parte contrária, ou ainda, basear-se naquelas cuja produção foi determinada de ofício[10], sequer se cogitando o surgimento do problema quando não surgirem questões de fato.

E justamente pela possibilidade de julgamento com base em provas que tenham vindo aos autos sem iniciativa das partes que Chiovenda[11] afirmava que só poderíamos falar em relevância das regras de distribuição do ônus da prova quando estivéssemos diante de um sistema processual dispositivo, posto que se estivéssemos diante de modelo inquisitivo de processo, quando se admite que o juiz tenha a iniciativa probatória, não haveríamos que falar em ônus do autor ou do réu. Para compreendermos o argumento, precisamos, primeiramente, fazer uma análise da dupla perspectiva do ônus da prova, o que é objeto do próximo tópico.


2. Ônus subjetivo e objetivo da prova.

A doutrina, há muito, vem identificando, na estrutura funcional do ônus probatório, duas perspectivas de análise: o aspecto subjetivo, que o caracteriza como regra de procedimento, voltada às partes; e o aspecto objetivo, que o define como regra de julgamento e, portanto, voltado ao magistrado.

Por muito tempo, o aspecto subjetivo foi o único a merecer atenção da doutrina[12]. Considerava-se que o ônus da prova consistia na necessidade de provar para vencer. Esta visão, dentro de um modelo processual dispositivo, conferia a partes a responsabilidade pela demonstração daquilo que alegavam, objetivando convencimento do juiz que conduziria ao êxito da pretensão exarada.

É aos processualistas civis austríacos que a doutrina atribui o mérito da distinção entre ônus subjetivo e objetivo[13]. Através dos estudos por eles realizados, se passa a identificar o ônus da prova como um problema de aplicação do direito, de modo que o que efetivamente tem relevância para o processo é o que foi demonstrado nos autos e não quem o demonstrou, já que o juiz, ao decidir deve considerar todo o debate que foi travado.

É justamente a este aspecto do ônus probatório, que abstrai qualquer atividade das partes para a demonstração dos fatos controvertidos, sendo apenas relevante a existência da dúvida, que passou a se denominar de ônus objetivo.

Assim, enquanto o aspecto subjetivo se preocupa com quem vai suportar o risco da ausência da prova ou de uma eventual prova frustrada, voltado, portanto às partes, o aspecto objetivo, volta-se ao juiz, mostrando-se relevante no momento do julgamento, impedindo que ele deixe de julgar sob o argumento de que não restaram comprovados os fatos controvertidos.

E é justamente porque é as regras de distribuição do ônus da prova se mostram relevante no momento decisório, que este passou a ser identificado como regra de julgamento.

Dentro da visão de um processo dispositivo, não cabe ao juiz advertir as partes quanto as suas incertezas relacionadas as provas dos autos, tampouco dos riscos assumidos por cada uma. Finalizada a fase instrutória, o juiz recebe o processo como se encontra e deve proferir uma decisão com base naquilo que lhe foi apresentado, não lhe sendo lícito tomar qualquer iniciativa probatória, sendo vedado, ainda, o non liquet.

A distribuição do ônus da prova neste tipo de sistema processual, em que as partes deveriam preparar e levar a juízo o material de cognição, as regras de distribuição do ônus da prova que se baseavam no interesse que cada uma tem de ter sua pretensão acolhida em juízo, representava manifestação do princípio da igualdade[14] (em seu sentido formal).

E foi neste contexto que Chiovenda veio a afirmar que a teoria do ônus da prova estava intimamente ligada ao modelo dispositivo de processo, destacando, que em um sistema no qual fosse admitida a atividade instrutória do juiz, em o magistrado pudesse buscar, apurar, de oficio, a veracidade dos fatos, as regras de repartição do ônus da prova deixariam de ter sentido[15].

Esta ideia parece estar equivocada se analisarmos o ônus da prova do ponto de vista objetivo. Talvez consigamos extrair seu significado analisando apenas o aspecto subjetivo. Do ponto de vista subjetivo, precisamos identificar quem tem o ônus de provar o que. Isso não significa, todavia, como afirmamos, que aqueles fatos só podem ser provados pelo autor ou pelo réu: uma vez no processo, não tem relevância quem trouxe a prova (princípio da aquisição)[16], ela passa a pertencer aos autos.

Sob este aspecto, a afirmação feita por Chiovenda fazia sentido na medida em que estando o juiz limitado àquilo que existe nos autos, sem que lhe fosse legitimada qualquer iniciativa na busca da veracidade dos fatos, devendo julgar de acordo com aquilo que lhe foi apresentado pelas partes, a regras de distribuição do ônus probatório, grande relevância apresentavam, posto que aquele que não conseguisse convencer o juíz, arcaria com as consequências de seu comportamento, podendo ter contra si decisão desfavorável.

No entanto, do ponto de vista objetivo, a necessidade de regras de distribuição do ônus da prova subsiste, ainda que estejamos diante de um sistema inquisitivo. Isto porque objetivamente o juiz verifica o resultado da prova e se esse resultado forma seu convencimento. Nesta hipótese, convencido, profere uma decisão em concordância com o fato demonstrado; quem efetivamente o demonstrou não tem qualquer relevância.[17]

Vistos estes conceitos, cumpre-nos analisar quais as teorias que tratam da distribuição do ônus probatório.


3. As teorias de distribuição do ônus da prova.

3.1. Teoria estática do ônus da prova.

No sistema do Código de Processo Civil de 1973, consagrando o princípio do interesse[18], o legislador atribuiu ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito (art. 333, inc. I) e ao réu os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor[19] (333, inc. II), por entender que cada um destes sujeitos pretende extrair dos fatos que trazem ao processo consequências favoráveis, no que verificamos a presença do aspecto subjetivo do ônus processual[20]

A conclusão, que em nosso sistema, está expressa no artigo 333 referido, foi conclusão lógica a que chegou a doutrina alemã por meio de uma teoria que ficou conhecida como Normentheorie. [21] Na Alemanha não existe regra expressa parecida com o disposto no artigo 333 do Código de Processo Civil de 1973, mas a distribuição do ônus probatório, segue igualmente o princípio do interesse, de modo que aquele que pretende ter a seu favor a aplicação de uma norma, deve provar os pressupostos fáticos de sua aplicação.

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Na doutrina alemã se fala no Interessenzwang, um constrangimento que decorre do interesse da parte, interesse este que justifica a ação, que objetiva dar ao processo um efeito útil, que está subordinado à sua realização. Logo, se o processo é de inciativa da parte, uma vez instaurado, sua inércia vai priva-la de atingir o que pretendia (se não baseado em fato notório ou incontroverso), trazendo, via de regra, consequências negativas em decorrência do não cumprimento, ou cumprimento infrutífero do ônus.[22]

Para além do aspecto subjetivo, quando o legislador define o encargos decorrente do ônus, precisamos verificar, no caso concreto, se os fatos controvertidos restaram demonstrados e na hipótese de não terem sido provados, remanescendo dúvida acerca dos mesmos, ante a obrigatoriedade do magistrado proferir um julgamento (vedação legal ao non liquid), a lei então lhe dá ferramentas para proferir sua decisão, podendo valer-se o juiz da regra geral de distribuição do ônus probatório, julgando em desfavor da parte que não se desincumbiu de seu ônus a contento, e que então vai suportar as consequências negativas de seu comportamento.

No entanto, estando os fatos controvertidos comprovados, não é relevante para o sistema se era incumbência do autor ou do réu ou tampouco quem efetivamente trouxe a comprovação dos mesmos para o processo, o juiz vai julgar de acordo com o convencimento alcançado, sem a necessidade de valer-se de regras acerca do ônus probatório, alcançando o escopo social do processo.

Ou seja, dentro do sistema do Código de Processo Civil de 1973 que adotou, a chamada teoria estática do ônus da prova[23], deve ser respeitado aquilo que o legislador estabeleceu, sem qualquer possibilidade de flexibilização, de modo rígido e desvinculado do caso concreto.

Para esta teoria, o aspecto subjetivo do ônus (regra de conduta das partes) está intimamente ligado à suficiência ou insuficiência probatória. E, sendo insuficiente, implicará em julgamento segundo as regras de distribuição do ônus probatório, em manifestação de seu aspecto objetivo.

Uma decisão proferida em observância a regra de distribuição do ônus probatório, acaba atingindo, por vezes, apenas o escopo jurídico do processo, não sendo tão justa quanto uma decisão proferida com base na prova produzida nos autos. Por esta razão, deve ser aplicada apenas excepcionalmente[24], o que implica dizer que o ônus subjetivo da prova deve ser valorizado como forma de se obter um julgamento mais justo.

A teoria estática de distribuição do ônus da prova sofreu severas críticas justamente por não considerar a situação concreta posta em juízo, o que pode acabar obstaculizando a efetivação da justiça, já que o magistrado, julgando com base na regra de distribuição do ônus probatório, decide de modo desfavorável àquela parte que não se desincumbiu a contento de seu ônus, o que não significa dizer que este litigante não era efetivamente o titular do direito afirmado, mas apenas que estava impossibilitado de produzir a prova necessária, seja por dificuldade técnica, seja porque se tratava de probatio diabolica [25].

Em razão de situações como esta, em que a distribuição estática do ônus da prova pode levar ao julgamento desfavorável a uma das partes, que se encontrava impossibilitada de trazer aos autos a prova necessária à suas alegações, ainda que esta fosse possível de ser facilmente produzida pela parte contrária, é que a doutrina começou a identificar que o previsto no artigo 333 conflitava, em algumas situações com o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, já que, ainda que de modo indireto, obstaculizava a apreciação pelo Judiciário de lesão ou ameaça de lesão a direito[26].

A doutrina passou a afirmar que a sistemática de distribuição do ônus da prova introduzida visava muito mais impedir o non liquet (art. 126), permitindo que seja proferida uma decisão ao final do processo, do que efetivamente assegurar o direito material discutido no processo.[27]

E, diante disso, passou a ser defendida a possibilidade de repartição do ônus da prova a depender da situação concreta, de modo diverso do fixado na lei. Ainda que não expressamente prevista a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova, a luz das garantias constitucionais do contraditório real, de busca por igualdade de tratamento entre as partes, já seria possível sua adoção, sustentando-se, ainda, que a teoria estática é fundada em um liberal individualismo, em um suposto privatismo que não mais se justifica pois não leva em consideração a situação individual de cada parte, a situação concreta submetida a julgamento.[28]

Dentro do sistema legislativo brasileiro, já tratando de modo diverso a questão, identificamos no Código de Defesa do Consumidor a distribuição dinâmica do ônus do prova. Se extrai do art. 6º, VIII do diploma referido que o ônus da prova não deve ser tratado de modo estático, de modo que terá o ônus de demonstrar determinado fato quem estiver em melhores condições de fazê-lo.

E, apesar de não haver dentro do sistema do Código de Processo Civil de 1973 esta possibilidade de distribuição não estática do ônus probatório, em algumas situações práticas a jurisprudência vinha admitindo esta modificação, justamente em razão da peculiaridade da situação concreta submetida a julgamento[29], trazendo para a realidade brasileira a teoria dinâmica do ônus da prova.

3.2. Teoria dinâmica do ônus da prova.

Sistematizada no final do século XX por juristas argentinos coordenados por Jorge W. Peyrano[30], inicialmente objetivou solucionar situações envolvendo responsabilidade civil por culpa, em especial decorrentes de erro médico em que a distribuição estática do ônus probatório com frequência provocava situações latentes de injustiça, em que não era possível provar a negligência médica[31], sendo posteriormente ampliado seu leque de aplicações.

Rompendo com a concepção tradicional, por meio da distribuição dinâmica do ônus probatório, o ônus incumbe a parte que reúne melhores condições de produzi-la, independentemente de sua posição no processo ou de qual fato controvertido que deve ser provado.[32]

A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova segundo Danilo Knijnik[33] tem encontrado duas ordens de fundamentação: a primeira delas deriva o ônus dinâmico do princípio da igualdade das partes em bases materiais; a outra a radica nos deveres de lealdade e colaboração entre as partes, destacando neste ultimo caso que se deve diferenciar se a ausência de colaboração apenas dificultou a prova, o que deve ser punido como ato improbo, ou quando efetivamente impede sua produção, quando passa a ser caso de dinamização do ônus efetivamente.

Segundo o autor a regra de distribuição do ônus da prova continua sendo estática, se admitindo a dinamização sempre que a regra conduzisse a uma probatio diabolica, vindo a inutilizar a ação judiciária e o acesso útil ao Estado – Jurisdição. Sustenta, ainda, que o ônus dinâmico não pode ser utilizado como forma de suprir a inércia ou a inatividade processual do litigante que pela regra geral é a quem a lei incumbiu daquele ônus, mas apenas com a finalidade de evitar a formação da prova diabólica diante da impossibilidade material que venha a recair sobre uma das partes, à luz da natureza do fato e da previsão legal, o que é seu limite, pois na hipótese de se provocar probatio diabolicareversa, também seria inaplicável.

Knijnik defende a aplicação da distribuição dinâmica do ônus probatório a luz do ordenamento vigente, por meio de uma interpretação sistemática e à luz dos poderes instrutórios do juiz[34] e sempre que a aplicação da teoria estática se mostrar desconforme previsões constitucionais, o que conduziria a uma inadmissível inutilidade da ação judiciária e a vedação oculta de acesso efetivo ao Poder Judiciário.

Inovando neste aspecto, o legislador, no novo Código de Processo Civil trouxe expressamente a possibilidade de aplicação da distribuição dinâmica do ônus probatório que vem prevista nos parágrafos 1º e 2º do art. 373.

Atendendo a principal crítica dirigida à teoria estática, que permanece como regra geral, constando do caputdo dispositivo, permite ao juiz, à luz do caso concreto, em razão de determinadas circunstâncias relacionadas a impossibilidade ou excessiva dificuldade ou maior facilidade de uma das partes, distribuir o ônus de provar determinado fato de modo diverso do previsto no caput, objetivando dar efetividade ao princípio da igualdade real.

Seguindo esta linha de raciocínio, verificamos que diante de determinado fato, cujo ônus probatório seja do autor, por ser constitutivo de seu direito, em se verificando que ao réu é muito fácil faze-lo, o juiz pode determinar a inversão do ônus, objetivando restabelecer a igualdade das partes no processo, visando atingir um processo justo, fornecendo-se uma tutela jurisdicional adequada[35], o que se coaduna com os princípios que orientam o processo civil, em grande parte positivados pelo novo código, tais como, solidariedade, veracidade, boa-fé, lealdade processual, cooperação.

O legislador, ainda, quis evitar a probatio diabolica, inclusive vendando-a no parágrafo segundo do art. 373, permitindo ao juiz, na análise do caso concreto, identificar esta situação e atribuir a parte contrária o ônus probatório.

A dificuldade estará em se delimitar qual o real significado de peculiaridades da causa, impossibilidade de produção ou excessiva dificuldade prevista no dispositivo em análise diante da situação concreta, o que só poderá ser resolvido casuisticamente.

Considerando o ônus da prova apenas do ponto de vista objetivo, ou seja, exclusivamente como regra de julgamento, poderia se afirmar que o juiz não precisaria anunciar previamente a decisão que inverteria o ônus probatório, quando da aplicação da teoria dinâmica já que ele não teria condições de saber se isto seria ou não necessário antes de julgar o processo, de modo que ao faze-lo, estaria, de certa forma, antecipando o resultado.

No entanto, Cândido Rangel Dinamarco[36], já antevendo regra que restou expressa no novo código de processo civil, afirma que embora o aspecto objetivo do ônus probatório seja de fato o que merece maior destaque, identificando-o como regra de julgamento, se a parte é informada, antes do julgamento, que sobre si recairá o ônus de provar determinado fato, que pela regra geral não recairia, vai se empenhar em fazer a prova, conferindo ao contraditório maior realidade, maior igualdade, permitindo àquele que normalmente não teria o ônus de provar possa se comportar no processo à luz desta inversão probatória operada, efetivando o contraditório, concretizando o primado constitucional da isonomia[37] e conduzindo o processo para que se atinja seu escopo social.

Exatamente com o este enfoque, o novo Código de Processo Civil exarou no artigo 10 o princípio que veda que sejam proferidas decisões surpresa, assim entendidas aquelas baseadas em fundamento sobre o qual às partes não foi oportunizado o contraditório. Neste contexto, ainda que não houvesse previsão legal de que o juiz deve definir no saneador (art.357,III) a distribuição do ônus da prova, se a inversão se desse apenas na sentença, isto poderia vir a configurar uma decisão surpresa, o que é vedado pelo ordenamento.

Ratificando este entendimento, o legislador inseriu, ainda, no parágrafo primeiro do artigo 373, a necessidade de a inversão ser fixada por decisão fundamentada, dando-se a oportunidade para aquele que passa a ter de se desincumbir do ônus, que em regra não era seu, de faze-lo, o que deve ser feito por meio de decisão fundamentada para que seja dada oportunidade a parte que passa a ter um ônus que antes não tinha, a oportunidade de faze-lo, em respeito ao contraditório.

Bedaque[38] afirma que talvez o ideal fosse que o legislador tivesse dito que o juiz deveria informar as partes acerca da possibilidade de inversão naquela situação concreta, dizendo por exemplo: “aparentemente estão presentes os requisitos do artigo 373, §1º, manifestem-se as partes”; de modo que elas teriam a oportunidade, inclusive, de convence-lo de que os requisitos não estão presentes, debatendo sobre a viabilidade ou não da inversão. Sustenta que a decisão que apenas impõe a inversão, sem debate prévio, pode vir a caracterizar-se como decisão surpresa, contra a qual a parte pode se insurgir por meio de agravo de instrumento nos termos do § 11 do art. 1.105.

A luz de tudo o que analisamos, podemos concluir que a distribuição dinâmica do do ônus probatório será muito mais útil naquelas situações em que o juiz, mesmo exercendo seu poder instrutório, pouco pode ajudar, de modo que, efetivamente se dando tratamento formalmente desigual, substancialmente se consiga igualar as partes[39], conduzindo o processo ao seu escopo social.

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Sobre os autores
Cristhiane Bessas Juscelino

Doutoranda em Direito Processual na Universidade de São Paulo, Mestre em Direito Processual na Universidade de São Paulo(2018). Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2004), pós graduação "lato sensu" em Direito e Relações do Trabalho pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2012), pos gradução "lato sensu" em Direito Processual Civil (2014). Atualmente é coordenadora do Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Segurança Privada e Curso Superior de Tecnologia em Serviços Jurídicos, Cartorários e Notariais da Universidade Santo Amaro (UNISA), professora titular de Direito Civil e Processo Civil na mesma instituição, professora convidada dos cursos de Pós Graduação da Escola Superior da Advocacia(ESA). Atuou como membro do Programa de Ensino Aprendizagem da Universidade de São Paulo (PAE - USP), tendo sido professora Assistente de Prática Civil I na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho atuando principalmente nos seguintes temas: indenização, prova, reclamação trabalhista. Mantendo escritório próprio desde 2008.

Gilberto Kenji Futada

Advogado. Professor. Coordenador Adjunto do curso de Direito na Universidade Santo Amaro (UNISA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUSCELINO, Cristhiane Bessas ; FUTADA, Gilberto Kenji Futada. Inversão dinâmica do ônus da prova. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6623, 19 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92250. Acesso em: 24 abr. 2024.

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