A União, no exercício da competência estatuída no artigo 22, I, da Constituição Federal, promoveu, através da Lei n°. 11.300/06, vigente a partir de 11 de maio do ano em curso, a chamada minirreforma eleitoral.
Para tanto, alterou diversos dispositivos da Lei Federal n°. 9.504/97, conhecida como "Lei das Eleições", relativamente a propaganda, financiamento e prestação de contas das despesas com campanhas eleitorais.
Dentre as modificações legais, ressalta-se o novato § 10 do artigo 73, com a seguinte redação:
"Art. 73...
§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa."
Atento à norma do artigo 2° da Lei modificadora, o Tribunal Superior Eleitoral emitiu a Resolução n°. 22.205, de 23 de maio de 2006, pela qual entende ser aplicável às eleições de 2006 o preceito acima reproduzido.
Isso posto, ergue-se uma indagação:
quais os reflexos do citado § 10 para a Administração Pública, no tocante a concessões de benefícios tributários?
Em princípio, faz-se necessário um trabalho de exegese, ainda que raso.
A norma em comento:
1 – alcança eleições federais, estaduais, do Distrito Federal, e municipais;
2 - sob o aspecto temporal, tem sua incidência voltada ao ano no qual se realizar eleição;
3 – é proibitiva, e cria uma obrigação de não fazer para a Administração Pública, direta e indireta, vedando liberalidades no tocante a bens, valores ou benefícios;
4 – excepciona casos comprovados de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior;
5 – sem temer a redundância, salienta o papel institucional do Ministério Público;
6 – confere ao termo "distribuição" o sentido de: ato de distribuir, dar, conceder, efetiva ou potencialmente, bens, valores ou benefícios.
Ademais, é importante salientar que tanto "benefícios" quanto "Administração Pública" são expressões utilizadas em sentido amplo, isto é, são continentes em relação a favores específicos (benefícios financeiros, creditícios, tributários, etc.etc etc.etc.) e aos modos pelos quais se manifesta (Administração Pública de Defesa Social, Previdenciária, Tributária, etc...), respectivamente.
Quanto ao conceito de Administração Pública, vale buscar agasalho no Decreto-Lei n°. 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre "a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências".
Preceitua o art. 4° do Decreto-Lei n°. 200/1967 que a Administração Federal compreende a Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios, e a Administração Indireta, que abrange as autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas, dotadas de personalidade jurídica própria.
A Lei Federal n°. 10.683, de 28 de maio de 2003, ao tratar da organização da Presidência da República e dos Ministérios, reforça, em seu art. 49, que as "entidades integrantes da Administração Pública Federal indireta serão vinculadas aos órgãos da Presidência da República e aos Ministérios, segundo as normas constantes do § 1º do art. 4º e § 2º do art. 5º do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, e sujeitas à supervisão exercida por titular de órgão de assistência imediata ao Presidente da República ou por Ministro de Estado".
A organização acima, tendo em vista os princípios norteadores da Federação, deve-se repercutir nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, observadas as devidas proporções.
Segundo o instrutivo "Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa", benefício significa: vantagem, ganho, proveito, direito conferido a alguém, etc...
Sem dúvida, os benefícios fiscais são direitos conferidos pelo ente tributante (União, Estado, Distrito Federal ou Município) aos sujeitos passivos da relação obrigacional tributária correlata.
É nesse ambiente inerente a benefícios tributários, a cargo da Administração Pública Tributária, que se deve obter a resposta ora desenvolvida.
À luz da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, os benefícios tributários, mais conhecidos por benefícios ou incentivos fiscais, são concedidos em caráter geral ou limitadamente, condicionados ou não, e sempre decorrentes de lei específica, que regule exclusivamente a matéria ou o correspondente tributo.
A aludida lei específica, no que concerne à União, é de iniciativa privativa do Presidente da República, a quem compete o exercício do Poder Executivo; e, em conseqüência, a chefia máxima da Administração Pública Federal (CF/88, art. 61, § 1°, II, b, 76 e 84, II).
Tal arquitetura constitucional dirige-se aos Estados, Distrito Federal e Municípios, de acordo com o previsto nos artigos 5º, II, 25, 29, 32, 150, caput, início, todos da Lei Maior.
As disposições inerentes à lei específica mencionada são aplicáveis, no que couber, às Medidas Provisórias, federais ou estaduais (CF/88, artigos 25, § 2º, e 62).
Assim, qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativamente a impostos, taxas ou contribuições, deve ter como pressuposto disposições constantes de lei, cujo projeto originou-se no Poder Executivo, que se exprime através dos órgãos da Administração Pública.
Segue-se que, em razão do § 10, transcrito, a lei concessiva de favor tributário, publicada no ano de eleição, considerada a hipótese de envio do projeto de lei correlato em ano a este anterior, somente poderá ter eficácia a partir do ano subseqüente ao do pleito eleitoral.
É que, somente quando eficaz, a lei surte efeitos concretos; descabendo entender que sua publicação, por si só, implica incidência.
Silente a lei concessiva de favor tributário, publicada no ano de eleição, acerca de sua eficácia, ou quando mencione ocorrer esta no mesmo ano de publicação, o conflito de normas, em relação ao preceito comentado (§ 10), é apenas aparente.
Trata-se de situação em que, por força de uma norma voltada a regular um processo cívico, as eleições, a eficácia da lei tributária concessiva de favor fiscal fica contida durante o resto do ano do pleito.
A norma eleitoral, dessa forma, sobrepõe-se à tributária. E não poderia ser diferente.
A suspensão de outorgas de favores fiscais no ano eleitoral tem por fim assegurar uma disputa político-partidária equilibrada, onde todos os candidatos e eleitores sejam tratados com igualdade, tendo o sufrágio valor igual a todos, sob pena de frustração do exercício da soberania popular.
Através das eleições, constituem-se os mandatários do povo. Portanto, todas as atribuições de agente público que decorram, direta ou indiretamente (v.g.: concernentes a cargo em comissão, etc...), deste mandato popular são a ele subordinadas.
A lei eleitoral rege o fenômeno social da mudança do aludido mandato. Para esta transformação, oferecem-se candidatos com filiação partidária, na forma da lei aplicável, e se submetem a processo eletivo; que deve ser justo.
Nesta contingência, ganha em hierarquia a lei eleitoral, porquanto, admitido o exercício indiscriminado de qualquer das atribuições de agente público antes ressaltadas, inclusive no que tange à administração tributária, estar-se-ia a eliminar a justiça eleitoral, a descumprir a Lei Máxima.
A infringência da norma em apreço (§ 10) por agente público, notadamente no exercício de atribuições originadas, direta ou indiretamente, de mandato eletivo, representa desvio ou abuso do poder que emanou do povo.
É no exercício de mandato eletivo que o chefe do Poder Executivo envia ao Poder Legislativo correspondente projeto de lei concessiva de graça fiscal e, eventualmente, promulga a lei decorrente. Estas atividades, se representativas de outorga, efetiva ou potencial, de benefício fiscal, em ano eleitoral, são inadmissíveis por seu efeito lesivo ao equilíbrio do processo eleitoral.
Os candidatos a cargo de mandato eletivo, que, durante o processo eleitoral, encontrem-se alheios ao exercício do Poder Executivo, não têm como acenar ao setor privado com vantagens fiscais.
Interpretar o § 10 do artigo 73 da Lei Federal n°. 9.504/97 conforme a Constituição Federal é, também, enxergá-lo como bastante a conter a eficácia de lei concessiva de favor tributário, publicada no ano de eleição.
No tangente ao encaminhamento de projeto de lei concessiva de favor fiscal no ano eleitoral, tal conduta se encontra vedada pelo dispositivo legal em apreço, exceto nos casos comprovados de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, mesmo se do teor do aludido projeto exista cláusula de vigência para o ano seguinte.
E aqui, é esclarecido o entendimento pelo qual quis o legislador evitar, inclusive, a distribuição prometida (distribuição potencial) por agente público tendente a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos no pleito eleitoral.
Começado o ano de eleição, as leis tributárias vigentes, que estão produzindo efeitos, e advindas dos anos anteriores, que outorgam benefício fiscal, merecem especial atenção.
No caso das leis referidas no período anterior, sendo o benefício fiscal outorgado em caráter geral ou individual, subordinado a condições, objetivas ou subjetivas, não se enxerga óbice à fruição da graça pelo sujeito passivo, desde que, no último caso, cumpridas as condições previstas. Isto porque, ainda que condicionada a fruição do favor, resta afastado qualquer juízo de valor por agente público, cabendo-lhe, apenas, verificar a perfeita incidência normativa.
Neste ponto, o direito do sujeito passivo ao favor fiscal é daqueles que o seu titular pode exercer ou cujo começo do exercício tenha condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem, a teor dos artigos 5°, XXXVI, CF/88, e 6º, § 2°, Dec.-Lei n°. 4.657/42- LICC.
A atenção especial sobredita diz respeito a eventual despacho de autoridade administrativa, em requerimento com o qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei para concessão, a exemplo do artigo 179 do Código Tributário Nacional - CTN.
Como dito, ao agente público compete, simplesmente, observar se o interessado atende aos reclamos da lei para efeito de obtenção do benefício fiscal perseguido; proibida totalmente qualquer submissão da emissão de despacho administrativo concessório a influência eleitoral, sob pena, entre outras, de suspensão imediata dos efeitos do ato administrativo, por invalidez, e sujeição do responsável a multa no valor de cinco a cem mil UFIR (Lei Federal n°. 9.504/97, art. 73, § 4°).
Aliás, diga-se de passagem, o § 4° do art. 73 da Lei Federal n°. 9.504/97 incide quando descumprido qualquer mandamento do artigo a que pertence.
Desse modo, o despacho administrativo concessório de benefício fiscal de caráter individual não gera direito adquirido, devendo ser anulado de ofício, quando se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumpria ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor (art. 155, CTN), ou que tenha o agente público incorrido na norma do § 4° do art. 73 da Lei Federal n°. 9.504/97, inclusive por descumprimento do dispositivo analisado (§ 10).
Em substituição à revogação estabelecida no artigo 155, caput, CTN, defende-se a anulação do ato administrativo concessório de benefício fiscal incompatível com a lei. E isto se justifica pelo fato de a revogação corresponder a atos discricionários da administração, emitidos por conveniência e oportunidade; ao passo que a anulação diz respeito aos eivados de ilegalidade.
A vedação constante da previsão legal em análise atinge, também, os atos do Poder Executivo voltados a alterar alíquotas dos impostos sobre: importação de produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; produtos industrializados; operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (CF/88, art. 153, § 1°).
A natureza extrafiscal dos impostos indicados no § 1° do art. 153 da Constituição Federal vigente, e sua exclusão dos efeitos do princípio da anterioridade (CF/88, art. 150, III, b), em nada impedem a aplicação da norma eleitoral em destaque.
Os casos de calamidade pública e de estado de emergência, exceções estatuídas no § 10, reproduzido, guardam perfeita harmonia com o Código Tributário Nacional.
Estados de calamidade pública ou de emergência são contingências que deixam determinada região do território da entidade tributante em condições especiais, particulares, nas quais as ações do Poder Público se devem realizar imediatamente, independentemente do momento eleitoral vivido.
Assim, v.g., os artigos 176, p. único, e 181, II, c, ambos do Código Tributário Nacional, a qualquer tempo, são instrumentos públicos de promoção do bem estar social.
A exclusão dos "programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior", fechando o elenco de situações salvadas da proibição legal, denota a preocupação do legislador em proteger programas de duração continuada, cuja realização ultrapassa um exercício financeiro.
Aliás, tendo as exceções da norma sob comentário um cunho eminentemente social, conformam-se com a busca, que deve ser permanente, do alcance dos objetivos traçados no artigo 3º da Carta Magna. E tal busca, realmente, não merece sofrer limitações em virtude do processo eleitoral.
O Ministério Público poderá/deverá promover o acompanhamento da execução financeira e administrativa do programa social referido, até mesmo para inibir o desvio de atividades administrativas a este inerentes.
Vale lembrar que compete ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (art. 129, II, CF/88). Em corolário, a ação do Ministério Público não se limita às exceções do § 10 do artigo 73 da Lei Federal n°. 9.504/97.
Eventual concessão de benefício fiscal, que tenha como justificativa um programa social de duração continuada, há de refletir uma correspondência biunívoca, em que o programa social e o favor fiscal se mostrem conexos.
De mais a mais, os reflexos do bastas vezes citado § 10 para a Administração Pública Tributária, enunciados acima de forma sucinta, chamam a atenção para a integração do direito, exemplificada no art. 108 do CTN.
O preceito legal objeto deste artigo não representa invasão da União na competência tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e sim, uma tentativa de garantir que o voto tenha valor igual para todos (CF, art. 14, caput).