1.Introdução:
Atualmente, as transformações mundiais oriundas do processo de globalização e de regionalização, bem como da ascensão do Direito Internacional Público, têm originado no mundo do direito um problema delicado. Tal problema tem como ponto fundamental as relações entre os Tratados Internacionais e o Direito Interno, ou seja, o seu posicionamento diante de uma lei interna ou lei local.
Por ser um instrumento de materialização dos acordos internacionais, isto é, da vontade dos Estados e Organizações Internacionais, a forma pela qual o tratado deve se relacionar com o Direito Interno dos países tem suscitado divergências na doutrina, existindo duas correntes principais, a dualista e a monista.
Em linhas gerais, a doutrina dualista considera o Direito Internacional e o Direito Interno distintos e separados, cada qual com suas normas próprias; a doutrina monista, por sua vez, considera o direito um sistema integrado tanto pelo Direito Interno como pelo Direito Internacional, constituindo um todo harmônico e homogêneo.
O presente trabalho consiste em uma análise das características e do posicionamento destas doutrinas quanto às relações entre os Tratados Internacionais e as leis internas (constituições e leis infraconstitucionais), bem como do processo de recepção dos Tratados Internacionais pelo ordenamento jurídico brasileiro.
2.A problemática do monismo e dualismo no Direito Internacional Público:
Diversas matérias são reguladas, simultaneamente, pelo Direito Internacional Público e pelo Direito Interno de cada país. Em conseqüência, quando as duas normas entram em choque surgem controvérsias. Frente a uma situação real, fica difícil para o Juiz optar por uma das duas normas conflitantes. Entretanto, o caso concreto posto em Juízo deve ser decidido e solucionado, não se admitindo mais o "non liquet" [01]. Assim, o Juiz deve decidir todas as lides e controvérsias que lhe forem postas.
Como exposto anteriormente, duas teorias tentam resolver essas possíveis controvérsias existentes entre o Direito Interno e o Direito Internacional Público.
A dualista, defendendo que o Direito Internacional Público e o Direito Interno são dois ordenamentos jurídicos independentes e distintos; a monista, afirmando que o Direito Internacional Público e o Direito Interno fazem parte de um único sistema jurídico.
A teoria dualista defende que o Direito Internacional Público e o Direito Interno são dois sistemas jurídicos independentes e distintos, não se confundindo. O primeiro regula as relações entre os Estados e o segundo, as relações entre os indivíduos. Defende, também, que não há supremacia de um sistema sobre o outro, pois atuam em esferas diferentes e específicas. Triepel [02], um dos defensores desta teoria, afirma que o Direito Interno e o Direito Internacional são dois ordenamentos totalmente separados, seja quanto às fontes (no Direito Interno, há a vontade do Estado; no Direito Internacional, a de vários Estados), seja quanto aos sujeitos (Estados no Direito Internacional; indivíduos e pessoas coletivas no Direito Interno). Devemos ressaltar, ainda, que, para os dualistas, a norma internacional vale independentemente da norma interna, só produzindo efeitos em um Estado quando for transformada em lei interna através do fenômeno da recepção, conforme explica Luis Ivani [03].
Refutamos a teoria dualista por não concordarmos, principalmente, com o argumento da diversidade dos sujeitos de direito, pois, como ensina Oliveiros Litrento [04], o Estado – sujeito direto do Direito Internacional na construção dualista – não existe fora dos indivíduos que o compõe, uma vez que são esses mesmos indivíduos, na ordem interna e internacional, os verdadeiros destinatários da ordem jurídica.
Diferentemente da teoria dualista, a teoria monista defende a tese de que o Direito Internacional Público e o Direito Interno são dois ramos de um mesmo sistema/ordenamento jurídico. Os autores monistas dividiram-se em duas correntes opostas: uma defende o primado do Direito Internacional e outra, o do Direito Interno.
Para os monistas que defendem o primado do Direito Interno, o Direito Internacional é parte do direito estatal, uma conseqüência da lei interna. Segundo Vychinshy [05], o Direito Interno é a origem e o fundamento da política e dos métodos que regem as relações dos Estados entre si, pelo que a política externa seria um prolongamento da interna. Um dos argumentos fundamentais dessa doutrina é a ausência da autoridade superestatal, ou seja, cada Estado determina livremente quais suas obrigações internacionais. A principal crítica feita a essa teoria consiste no fato de que, em ocorrendo mudança interna da Constituição de um Estado, este não se desvincula dos tratados que ratificou no âmbito internacional, ou seja, a validade do Direito Internacional não depende da validade do Direito Interno, contrariando o que diz a tese do primado do Direito Interno.
Os monistas que sustentam o primado do Direito Internacional explicam que o Direito Interno deriva daquele e, por isso, o Direito Internacional deve prevalecer no caso de um conflito. Apóiam seus argumentos em princípios como: os tratados pactuados pelos Estados passam a fazer parte de sua legislação; quando um tratado contém cláusula contrária a uma lei interna anterior, esta é revogada; e, ratificado um tratado, ele não pode ser revogado por lei interna ulterior.
Surge, entretanto, um questionamento no tocante aos desacordos entre um tratado e as normas constitucionais. Nesse ponto, concordamos com o que diz Luis Ivani [06]: "se a Lei Maior é ulterior ao convênio, este deveria ter sido previamente denunciado, sob pena do estado incidir em responsabilidade de deixar de aplicá-lo; se, no entanto, a Constituição é anterior ao pactuado, este, por contrariar a lex legum, não deveria ter sido assinado".
Atualmente a tese do primado do Direito Internacional é a que tem sido mais aceita, em especial pela jurisprudência internacional e pela doutrina na Corte Internacional de Justiça que têm sido unânimes em afirmar a supremacia do Direito Internacional sobre o interno.
3.A recepção dos Tratados Internacionais pelo ordenamento jurídico brasileiro:
Depois de concluída a negociação em nível internacional, com a conseqüente assinatura do tratado, este passa a ser discutido no plano interno pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Caso concordem com o teor do tratado, podem aprová-lo (com ou sem modificações) através de um decreto legislativo que funciona, apenas, como uma espécie de autorização para o Presidente ratificar o tratado.
Após a publicação do decreto legislativo, compete ao chefe do executivo a ratificação do tratado, tendo, porém, a "liberdade de ratificá-lo ou não, conforme julgar conveniente" [07]. Caso seja ratificado, deve ser obrigatoriamente respeitado nas relações entre os Estados signatários.
A análise e referendo dos tratados internacionais pelo Congresso Nacional limita e diminui o poder do Presidente da República, na medida em que cabe ao Congresso Nacional a deliberação definitiva "sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional" (art. 49, inciso I da Constituição Federal brasileira de 1988).
Em relação ao nível interno brasileiro, consoante ensinamentos de Sérgio Mourão [08], para que os tratados internacionais tenham vigência, faz-se necessária a promulgação e publicação de um decreto do Presidente que, via de regra, é acompanhado do texto ratificado.
"A publicação é o ato pelo qual a lei é levada ao conhecimento de todos os que lhe devam obediência, tornando-se obrigatória" [09], assim, para que o tratado internacional tenha validade e obtenha efetividade interna, sendo respeitado pelos nacionais a ele subordinados, faz-se necessário que estes o conheçam.
Diga-se de passagem, que um tratado internacional pode vir a ser incorporado ao Direito Interno sem que tenha vigência internacional, situação esta que ocorre quando não é alcançado o quorum de ratificação predeterminado.
Diante o exposto, ao analisarmos as relações entre os Tratados Internacionais e o ordenamento jurídico brasileiro, constatamos a recognição dos tratados internacionais; porém, a Constituição Federal de 1988, embora tenha consagrado que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, cooperação entre os povos e pela busca da integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americano da nações, não definiu de maneira específica e rígida o posicionamento dos tratados internacionais em relação a lei interna brasileira.
Todavia, quando se trata de contradição entre um tratado e o disposto na Constituição, nossa Magna Carta possibilita a declaração de inconstitucionalidade do tratado pelo Supremo Tribunal Federal (Art. 102, Inciso III), situando-o, com isso, em um patamar infraconstitucional, ou seja, atribuindo-lhe implicitamente o valor de uma Lei Federal. Quando se trata de conflito entre tratado e uma lei infraconstitucional devemos nos guiar, de acordo com o que diz Sérgio Mourão, por dois critérios: primeiro, prevalece a norma de hierarquia superior; quando esse critério não for suficiente, prevalecerá a norma posterior, obedecendo o princípio cronológico lex posterior derrogat legi priori; muito embora, "Leis Federais posteriores não revogam os tratados internacionais anteriores, mas tão somente afastam a aplicação destes" [10].
Na legislação brasileira, no que diz respeito a matéria tributária e a de direitos humanos, encontramos poucos conflitos com os tratados internacionais, caracterizando a supremacia deste. Ambas as matérias contemplam uma possível complementação por parte dos tratados.
O Código Tributário pátrio, em seu art. 98, estabelece que "os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha".
Já a própria Constituição Federal, em seu texto original, estabelecia, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", dando a entender que os tratados internacionais superiores às leis internas. Nesse particular, a questão restou pacificada com a promulgação da Emenda Constitucional n.° 45, de 2004, que incluiu o §3º ao art. 5° da Constituição Federal com a seguinte disposição: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".
Assim, e desde que observado o procedimento e o quorum especial de aprovação pelo Congresso Nacional, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos têm hierarquia de emenda constitucional, sendo, por isso, hierarquicamente superiores às leis infraconstitucionais. Nesse caso, se um tratado internacional for aprovado nos termos do art. 5°, §3º, da Constituição Federal, a sua entrada em vigor implicará na retirada do ordenamento jurídico pátrio, de forma automática, das leis e demais normas infraconstitucionais que lhe forem contrárias, dada a incompatibilidade com a Constituição Federal. Portanto, as normas infraconstitucionais contrárias ao tratado internacional serão revogadas pelo fato de não serem recepcionadas pela nova ordem constitucional implementada por este.
4.Conclusão:
Diante de toda essa problemática exposta, constatamos que nenhuma doutrina é completa, todas são passíveis de questionamentos; entretanto, a que, no nosso entendimento, se apresenta de forma mais válida é a teoria monista com primado do Direito Internacional. Esta tese oferece uma maior segurança e harmonia nas relações internacionais na medida em que sobrepõe os tratados internacionais aos direitos internos dos Estados membros.
Sendo os tratados oriundos da vontade coletiva dos Estados, aos quais é permitido o instituto das reservas, os tratados exprimem os anseios de seus subordinados. Assim, consideramos ser um tanto incompreensível e inconcebível um Estado defender a nível internacional um posicionamento e no âmbito interno outro.
No tocante a realidade brasileira, os Tratados Internacional subscritos pelo Brasil são recepcionados pela legislação interna; porém, nossa legislação ainda é um pouco falha no que diz respeito a resolução dos conflitos entre normas de Direito Internacional e de Direito Interno, já que poucas são as situações em que, havendo confronto entre elas, saberemos, pela legislação, qual dos Direitos prevalecerá, se o interno ou o internacional.
Desta maneira, inferimos do presente ensaio que ao firmar um Tratado Internacional o Estado deve adequar o seu Direito Interno para a recepção daquele, evitando assim, conflitos que perturbem a ordem interna e internacional.
Referências:
ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim. Curso de Direito Internacional público. 9ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998;
DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 3ª ed. rev.. São Paulo: Saraiva, 1998;
DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 7ª ed. Atual.. São Paulo: Saraiva, 2001;
LIMA, Sérgio Mourão Correia. Tratados Internacionais no Brasil e Integração. São Paulo: LTr, 1998;
LITRENTO, Oliveiros. Curso de Direito Internacional público. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997;
MATTOS, José Dalmo Fairbanks Belfort de. Manual de Direito Internacional público. São Paulo: Saraiva: EDUC, 1979.
MELO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 10.ed.. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1994;
MENEZES, Margareth Régia de Lara, CARVALHO, Eliane Galdino de. Referências bibliográficas: NBR6023. Natal: UFRN / BCZM / Coop. Cultural, 1999;
REZEK, J.F. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 7. ed. ver. São Paulo: Saraiva, 1998;
SEITENFUS, Ricardo e VENTURA, Deisy. Introdução ao Direito Internacional Público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999;
SILVA, G. E do Nascimento e, ACIOLLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
Notas
01 Art. 126- O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito
02 Triepel apud Oliveiros Litrento. Curso de direito internacional público. 3ª ed.. Rio de janeiro: Ed. Forense, 1997. p. 99.
03 Luis Ivani de Amorim Araújo. Curso de direito internacional público. 9ª ed.. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1998. p. 44
04 Oliveiros Litrento. op. cit..p. 100.
05 Vychinshy apud Luis Ivani de Amorim Araújo. op. cit.. p. 45.
06 Luis Ivani de Amorim Araújo. op. cit.. p. 47.
07 Sérgio Mourão Correia Lima. Tratados internacionais no Brasil e integração. São Paulo: Ed. LTR, 1998. p. 31.
08 Ibdem. p. 33
09 Maria Helena Diniz. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 7ª ed.. São Paulo: Ed. Saraiva, 2001. p. 46.
10 Sérgio Mourão Correia Lima. op. cit.. p. 40 e 41.