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Da viabilidade do uso de cartão de crédito para pagamento de serviços públicos

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SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do cartão de crédito. 2.1. Conceito. 2.2 Natureza Jurídica. 2.3. Figuras intervenientes no sistema de cartão de crédito. 2.3.1 Do emissor. 2.3.2. Do Titular. 2.3.3. Do Fornecedor. 3. Do uso do cartão de crédito para pagamento de serviços públicos. 4. Bibliografia


I – INTRODUÇÃO.

A massificação na prestação de serviços impôs a adoção de mecanismos que atendam com celeridade a formação das relações jurídicas contratuais. Um desses mecanismos é o cartão de crédito, porquanto seu titular pode remunerar os serviços em tempo posterior ao da contratação, prescindindo do prévio exame cadastral para obtenção de crédito.

Mas será que qualquer serviço disponibilizado no mercado de consumo pode ser remunerado por meio desse sistema? Entendemos que a resposta é negativa, considerando-se a natureza do serviço prestado.

Com efeito, num Estado de feição social, como o Brasil, a Constituição Federal de 1988, nos artigos 22 e 175, impõe ao Estado o dever de prestar uma gama de serviços para atender as necessidades dos cidadãos:

"O Estado existe para realizar o bem comum. Esta a sua razão teleológica, finalística. Daí se conclui não constituir ele um fim em si mesmo, mas instrumento, meio necessário para que os indivíduos evoluam e se aperfeiçoem, criando, no dizer de Cathrein, ‘as condições indispensáveis para que todos os seus membros, nos limites do possível, atinjam, livre e espontaneamente, sua felicidade na terra’.

Realizar a justiça, tutelar os direitos fundamentais, proporcionar o desenvolvimento econômico, cuidar da educação – tais se mostram entre outros, deveres de que o Estado não pode fugir, para realizar o bem comum ‘razão de ser da autoridade social’ no dizer de Leão XIII (...).

Na concretização do bem comum, o Estado dá condições de existência às demais sociedades, possibilitando a vida comunitária (...) Hoje, realmente, lhe incumbe cuidar do bem-estar social de seus súditos, com propiciar-lhes condições de vida compatível à dignidade humana. Fala-se numa atividade estatal reconhecidamente importante, que busca atender aos desejos e às necessidades básicas, v.g., de alimentação, higiene, moradia, educação, saúde, cultura, trabalho, transporte, para que o homem se realize em sua postura física e metafísica". [01]

E é exatamente a finalidade pela qual esses serviços são prestados que obstaculiza o uso do cartão de crédito.

Vejamos, em breve síntese, os traços característicos desse sistema que dão supedâneo à nossa posição.


II – DO CARTÃO DE CRÉDITO.

2.1. Conceito.

Cartão de crédito, diz a doutrina, é "Instrumento de crédito contratual que possibilita a livre aquisição de bens ou serviços, obedecido determinado teto do limite concedido, e dentro do âmbito dos fornecedores conveniados (...)." [02]

Pelo conceito extrai-se que o cartão de crédito não é um título de crédito, mas um cartão de identificação do titular, que o autoriza a comprar a prazo numa determinada rede de estabelecimentos comerciais.

2.2. Natureza Jurídica.

Titulariza um cartão de crédito quem celebra um negócio jurídico contratual atípico, misto, bilateral, oneroso, intuitu personae, de trato sucessivo, de adesão.

Atípico, em razão de o contrato de cartão de crédito não ser disciplinado nem pela lei substantiva civil nem por qualquer subsistema esparso.

Nada obstante a não-dogmatização, o artigo 425, do Código Civil, defere ao particular o direito subjetivo de auto-regular seus interesses, desde que observadas as regras da teoria geral dos contratos e as demais normas estabelecidas no sistema jurídico.

Portanto, as relações jurídicas instituídas por meio do contrato de cartão de crédito subsumem-se, a partir das diretrizes constitucionais, à teoria geral dos contratos, tratada no Título V, pelo Código Civil, e à linha principiológica sufragada pelo Código de Defesa do Consumidor, por envolver nítida relação de consumo.

Misto, por abranger mais de uma figura contratual. Assim, o contrato de cartão de crédito importa a outorga de crédito, financiando a aquisição de produtos e serviços, e a prestação de serviços, ao credenciar vários estabelecimentos comerciais, conferindo ao titular, destarte, facilitação e um amplo leque de opções de estabelecimentos para a aquisição dos mais variados produtos e serviços.

Bilateral, sob a perspectiva dos efeitos, pois ambos os contratantes têm deveres e direitos recíprocos.

Oneroso, pois ambos os contratantes obtêm vantagens patrimoniais.

Intuitu personae, só o titular está autorizado a usar o cartão de crédito.

De trato sucessivo. A execução do contrato de cartão de crédito é de trato sucessivo em razão de a obrigação das partes envolvidas renovar-se periodicamente, até que haja denúncia ou rescisão do contrato.

Adesão, em razão de as regras contratuais serem previamente estabelecidas pelo emissor do cartão de crédito, sem que o titular tenha qualquer margem para discutir ou alterar substancialmente o conteúdo do contrato.

2.3. Figuras intervenientes no sistema de cartão de crédito.

O cartão de crédito forma um sistema por abarcar vários interessados.

De um lado, o emissor – quem emite e administra o cartão – e o titular – quem utilizará o cartão de crédito - celebram um contrato de cartão de crédito estipulando, dentre outras cláusulas e condições, o limite de crédito e que o cartão só poderá ser usado nos estabelecimentos comerciais credenciados pelo emissor.

De outro lado, emissor e fornecedor celebram um contrato a fim de que este integre a rede credenciada daquele.

2.3.1. Do emissor.

O emissor, ou o administrador do cartão de crédito, é pessoa jurídica de direito privado.

A função do emissor não é a de comercializar produtos nem serviços, mas a de facilitar a operação de compra e venda, conferindo ao titular um cartão de identificação que o habilita a adquirir produtos e serviços sem que tenha de efetuar o pagamento de imediato.

Por essa atividade o emissor obtém lucro ao cobrar: a) juros do titular do cartão, como resultado do financiamento concedido e b) uma percentagem - de 5% a 10% - do fornecedor, incidente sobre o total das despesas feitas pelo titular do cartão, como remuneração pelo encaminhamento de clientes.

O emissor exerce suas atividades com ou sem a participação de instituição bancária. Se não houver participação desta, as empresas administradoras desenvolverão suas atividades com recursos próprios, respondendo com seu próprio patrimônio pelas despesas efetuadas pelo titular do cartão de crédito junto ao fornecedor filiado.

Esse sistema não é muito usual, porque o titular não tem a opção de pagar a fatura em parcelas. Só à vista.

Se houver participação de estabelecimentos bancários, o emissor concederá ao titular do cartão a opção de pagar a fatura no valor total ou em parcelas. Se o titular do cartão optar pelo parcelamento, o emissor, por não ser banco e não poder, por conseguinte, realizar operações privativas dos agentes financeiros, tomará empréstimo junto ao sistema financeiro, carreando ao titular do cartão a responsabilidade pelo pagamento dos juros e demais encargos cobrados pelo financiamento.

2.3.2. Do Titular.

O titular é o usuário do cartão de crédito.

Para titularizar um cartão de crédito, insta que o pretendente tenha higidez financeira, pois esta é a garantia para o emissor, na medida em que é este quem paga ao fornecedor pelos produtos e serviços adquiridos pelo titular do cartão.

Ao celebrar o contrato de cartão de crédito, o titular assume o dever de observar o limite de crédito, de efetuar o pagamento constante da fatura emitida pelo emissor na data estipulada no contrato, e de pagar uma taxa, renovável anualmente, pela adesão ao sistema. Nenhum outro valor lhe pode ser exigido.

2.3.3. Do Fornecedor.

É a pessoa física ou jurídica que, após celebrar um contrato com o emissor do cartão de crédito, passa a integrar a rede credenciada, ficando habilitado a vender produtos ou prestar serviços para o titular do cartão de crédito.

No contrato celebrado entre o emissor e o fornecedor, denominado contrato de filiação, aquele assume a obrigação de pagar a este o valor dos produtos e/ou serviços adquiridos pelo titular do cartão. O fornecedor, por seu turno, obriga-se a aceitar o cartão e a ceder para o emissor seus direitos creditícios, no ato em que este pagar a conta pelo titular do cartão. Destarte, em razão desta cessão de direitos, fica o emissor munido de documento hábil para exigir do titular do cartão o reembolso daquilo que ele, emissor, pagou ao fornecedor.

Como se deflui, a responsabilidade pelo pagamento perante o fornecedor é o emissor do cartão e não do titular. O emissor paga ao fornecedor e após cobra do titular. É por isso que o emissor faz rigorosa seleção dos pretendentes à obtenção do cartão de crédito, porquanto se o titular for hipossuficiente sob o ponto de vista financeiro, o emissor terá de pagar ao fornecedor e suportar o prejuízo.


III. Do uso do cartão para pagamento de serviços públicos.

Vimos que, embora o cartão de crédito seja um instrumento facilitador para aquisição de produtos e serviços, não é qualquer pessoa que a ele tem acesso.

É por isso que, no nosso entendimento, não seria possível utilizá-lo para pagamento dos serviços públicos.

Consideremos, à guisa de exemplo, o serviço funerário.

A Constituição Federal determina, nos incisos V e VII, do artigo 30, que o Município preste serviços de interesse local, dentre os quais, os ligados à saúde. Pode-se dizer que o serviço funerário é ligado à saúde, logo, tem natureza jurídica de serviço público.

A doutrina traz vários critérios para conceituar serviço público.

Numa simbiose desse sincretismo, podemos apontar que "(...) serviço público corresponde a toda atividade desempenhada direta ou indiretamente pelo Estado, visando solver necessidades essenciais do cidadão, da coletividade ou do próprio Estado". [03]

Dessa conceituação extrai-se que a prestação dos serviços públicos é afeta ao Estado por ser sua a tarefa de perseguir e realizar o bem comum.

Partindo da premissa de que a razão dos serviços públicos deriva da atividade precípua do Estado quanto à satisfação das necessidades não atendidas pela iniciativa privada, tudo no desiderato de atender ao bem comum, parece ínsito que a desincumbência desse dever constitucional concretize pari passu os interesses da sociedade e os direitos fundamentais.

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Embora o serviço público seja prestado em atendimento ao interesse público, daí ser titularizado pelo Estado, a Constituição Federal, em seu artigo 175, faculta sua execução pela iniciativa privada por meio de contratos de concessão ou de permissão.

Mas, independentemente de o serviço funerário ser prestado diretamente pelo Estado ou por meio de empresas concessionárias, entendemos não ser possível o uso do cartão de crédito.

Em primeiro lugar, por obstar o acesso a certa categoria de usuários. Isto porque o emissor do cartão de crédito seleciona quem poderá utilizar seus serviços a partir de um critério eminentemente econômico, ou seja, são a higidez financeira e a situação do pretendente no mercado de consumo fatores decisivos para a contratação do sistema do cartão de crédito

E é natural que assim seja, pois, consoante vimos, o emissor assume, perante o fornecedor, a obrigação de efetuar o pagamento do valor dos serviços e produtos adquiridos pelo titular do cartão e, só após, poderá exigir o reembolso perante o titular. Se este não tem lastro financeiro não cumprirá sua obrigação junto ao emissor, e, este, por sua vez, terá de suportar o prejuízo.

Nesse diapasão, um serviço de natureza pública, como o funerário, tornar-se-ia seletivo e excludente, pois na hipótese de o cidadão não atender aos padrões econômicos estabelecidos pelo emissor do cartão de crédito, ficaria interdito de utilizar serviços, cujo cerne é o de atender ao interesse coletivo.

Em segundo, porque os contratos firmados entre a Administração e as empresas concessionárias estão submetidos às regras de direito público, o que significa dizer que prevalece a satisfação do interesse público e não a da atividade especulativa do exercente do serviço concedido. Ademais, a prestação de serviço público é informada pelos princípios constitucionais insertos no caput do artigo 37, notadamente o da impessoalidade.

Esse princípio indica que a finalidade de o Estado prestar certa gama de serviços é a de atender ao interesse coletivo. Também é expressão desse princípio, a modicidade do preço do serviço público, exatamente para não discriminar o usuário.

Cuida-se, como se nota, de prestar um serviço ao usuário considerado in abstracto.

A modicidade do preço indica que os serviços públicos não envolvem atividade econômica, mas com conteúdo econômico.

Com efeito, a doutrina [04] faz distinção entre atividade econômica e a com conteúdo econômico, elucidando que aquela é desenvolvida, titularizada e orientada pela iniciativa privada. Portanto, nada obstante a Constituição gizar a atuação do empreendedor aos ditames da justiça e da função social da propriedade, a atividade econômica resulta da decisão de o particular desenvolver um empreendimento lícito com finalidade lucrativa.

Situação diversa ocorre com a atividade com conteúdo econômico, por ser afeta ao ente público e incompatível com o regime de direito privado. Os serviços públicos, cuja prestação é um dever do Estado, estão nessa categoria, porque embora a execução possa ser deferida à iniciativa privada, a titularidade é exclusiva do Estado, razão por que está sujeita ao regime jurídico de direito público.

Essa distinção reforça nosso entendimento acerca da incompatibilidade da adoção do uso de cartão de crédito para remunerar o serviço funerário e qualquer outro serviço de natureza pública.

Além de o emissor selecionar o universo de futuros titulares, não podemos olvidar que o exercício dessa atividade é voltado exclusivamente para obter lucro, tanto que o emissor é remunerado pelo titular do cartão e pelo fornecedor.

E, no caso do Estado, este teria que, em tese, arcar com o pagamento do percentual sobre o valor do serviço prestado ao usuário, o que redundaria em maior prejuízo para toda a coletividade. Seja por implicar no aumento generalizado do custo final do serviço, ofendendo, inclusive, a modicidade prescrita no parágrafo 1º do artigo 6º, da Lei 8987/95, que regulamenta o artigo 175, do texto constitucional, seja por impor ao contribuinte mais este ônus, pois, é bom lembrar, que os cofres públicos têm por fonte de receita precípua a carga tributária.

Portanto, podemos afirmar que o uso do cartão de crédito não atende aos interesses da coletividade, não sendo lícito ao Estado, nem à empresa concessionária, utilizar esse sistema.


BIBLIOGRAFIA

ABRÃO. Carlos Henrique. Cartões de Crédito e débito. Ed. Juarez de Oliveira. São Paulo. 2005.

Elias Rosa, Márcio Fernando. Direito Administrativo. 4ª ed., São Paulo: Saraiva.

MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 9ª Ed. Rio de Janeiro. Ed. Forense. 1988

SALVETTI NETO, Pedro. Curso de Teoria do Estado. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1981.

Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed., Editora Malheiros.


NOTAS

01 PEDRO SALVETTI NETO. Curso de Teoria do Estado, p. 57-8.

02 CARLOS HENRIQUE ABRÃO.Cartões de Crédito e débito. p. 8.

03 Márcio Fernando Elias Rosa. Direito Administrativo, p. 120.

04 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Pg. 781

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Sobre a autora
Viviane Mandato Teixeira Ribeiro da Silva

advogada, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Viviane Mandato Teixeira Ribeiro. Da viabilidade do uso de cartão de crédito para pagamento de serviços públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1259, 12 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9252. Acesso em: 19 abr. 2024.

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