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A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão.

Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea

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09/12/2006 às 00:00
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O PAPEL DO AFETO NO CONCEITO DE FAMÍLIA

A moderna concepção jurídica de família, gradativamente construída, deslocou-se do aspecto desigual, formal e patrimonial para o aspecto pessoal e igualitários. Como conseqüência, a importância dos interesses individuais dos sujeitos da família, isto é, da busca da felicidade como mola propulsora, provocou a valorização da vários elementos anteriormente secundários, dentre os quais se encontra a afetividade.

Com a valorização das pessoas, seus interesses também o foram. Desta forma, os anseios relacionados a uma família construída sobre novos parâmetros se fizeram sentir e receberam ampla proteção constitucional, tendo a dignidade e a igualdade como princípios orientadores, assim como a possibilidade de tentar tantas vezes quantas forem necessárias a formação de uma família feliz.

Lembramos que o papel do afeto é constitutivo das relações interpessoais que formam a família. As pessoas se unem ou se separam em razão do afeto. Assim, sua existência deve importar principalmente àquele que estão nelas interessados.

Nesse contexto, o afeto deve ocupar lugar de destaque e merece maior atenção da área jurídica, pois como bem coloca Maria Berenice Dias, "[...] amplo é o espectro do afeto, mola propulsora do mundo e que fatalmente acaba por gerar conseqüências que necessitam se integrar ao sistema normativo legal". (Carbonera, 2000, p. 277).

Tal preocupação já pode ser localizada na doutrina que trata das atuais tendências do Direito de Família, onde o afeto já ocupa um lugar significativo, sendo este um ponto relevante, pois demonstra seu gradativo ingresso na esfera jurídica. A análise da jurisprudência também indica que, neste ponto, os julgadores já estão cientes do valor do afeto nas relações de família. Da mesma forma, a preocupação com o aspecto afetivo também já se faz sentir na legislação. (Carbonera, 2000, p. 277-278).

A adequação feita pela Carta Constitucional acabou revelando novos contornos jurídicos da família contemporânea. Baseada nos desejos de seus membros em satisfazer seus interesses de realização afetiva e crescimento pessoal, a noção de família foi ampliada e a proteção a todas as entidades familiares produziu efeitos benéficos há muito desejados.

Ademais, com a instalação da igualdade e da liberdade na família, o vínculo jurídico passou a ceder parte de seu espaço à verdade sócio-afetiva. Felicidade e afeto demarcaram seu espaço na noção jurídica de família em todas as esferas, a exemplo do que há havia acontecido na realidade sócia. "Da família matrimonializada por contrato chegou-se à família informal, precisamente porque afeto não é um dever de coabitação uma opção, um ato de liberdade. Da margem para o centro: os interesses dos filhos, qualquer que seja a natureza da filiação, restam prioritariamente considerados."(Fachin, 1996, p. 98).

Assim, a família contemporânea é tomada como a "comunidade de afecto e entre-ajuda", espaço onde as aptidões naturais podem ser potencializadas e sua continuidade só encontra respaldo na existência do afeto. (Oliveira; Muniz, 1990, p. 11).

É a família eudemonista, pois traduz o meio onde "acentuam-se as relações de sentimento entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais" (Oliveira; Muniz, 1990, p. 54).

A preocupação procede, uma vez que o afeto é um elemento indispensável para a formação da pessoa. Isto redundou no fato de que, embora continuem existindo famílias nos moldes patriarcais, a recepção de outras formas abriu espaço para famílias fundadas no afeto e no desejo de estar junto, forma uma comunhão de vida e fazendo com que este seja seu elemento central.

Mas só podem conviver pessoas que têm afeição e respeito mútuo, sendo ambos necessários para a continuidade da relação familiar. Somente a existência do afeto faz com que pessoas restrinjam sua esfera de liberdade, renunciando a determinados desejos, para que outras também possam crescer e se desenvolver, pois o desenvolvimento de uma produz efeitos benéficos a todas. Em que pese soar estranho tratar de renúncia ou restrição a liberdade ao mesmo tempo em que se fala de dignidade e igualdade, somente podem ser dignas e iguais as pessoas que respeitam as outras, e isto acontece de forma voluntária quando se unem em virtude do afeto. Se assim não fosse, certamente não estaríamos falando de família, onde as pessoas decidem permanecer unidas por vontade própria, buscando a realização própria e dos demais, respeitando a esfera da dignidade e da liberdade de cada sujeito. (Carbonera, 2000, p. 296).

O aspecto sócio-afetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento das pessoas que a integram, revela que talvez o aspecto aparentemente mais incerto, o afeto, em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efetivamente são os pais. A incerteza presente na posse de estado de filho questiona fortemente a certeza da tecnologia. Ademais a verdadeira paternidade decorre mias de amar e servir do que de fornecer material genético. (Carbonera, 2000, p. 304).

São certeiras as palavras de Eduardo de Oliveira Leite (1994, p. 120): "[...] se posso obrigar alguém a responder patrimonialmente pela sua conduta (alimentos ao filho) não posso obrigar, quem quer que seja, a assumir uma paternidade que não deseja.

Não se pode ignorar: ao mesmo tempo em que se torna possível conhecer a origem genética pela tecnologia, o afeto também ganha espaço e contornos jurídicos, revelando os pais do coração. Como bem aduz João Baptista Villela, o aspecto biológico cede espaço ao comportamento. A figura paterna é reconhecida pelo amor, desvelo e serviço com que se entrega ao bem da criança. Verdade e mentiras, noções relativas que se revelam conforme o momento e o enfoque apresentado. (Carbonera, 2000, p. 304-305).

Desta forma, a construção de um novo sistema de filiação emerge como imperativa, posto que a alteração da concepção jurídica de família conduz necessariamente à mudança da ordenação jurídica da filiação (Carbonera, 2000, p. 305), e o afeto, neste sentido, deve ocupar lugar de destaque. .

A doutrina tem se dedicado a estudar o afeto nas relações familiares, inclusive elevando-o ao patamar de princípio da afetividade, advogando a idéia de que:

O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, em fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. (Lobo, 2004, p. 1).

Ainda,

A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto. (Lobo, 2004, p. 1).

Assim, estamos diante da valorização da pessoa na família, em sentido diverso do encontrado no Código Civil brasileiro, nitidamente transpessoal. Esta valorização está coerente com as linhas gerais da Constituição Federal, uma vez que o artigo 1º, III, consagra como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.

Neste sentido, a proteção à pessoa, recebendo status constitucional, deve ser princípio orientador no seu tratamento em todas as esferas. A proteção aos componentes da família não constitui exceção à regra, o que conduz à sua priorização em relação ao grupo.


FAMÍLIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

É importante consolidar a noção de família como uma comunidade, constituída em razão da vontade, onde as pessoas buscam a realização pessoal própria e daqueles que a cercam.

Como dito acima, o afeto, que começou como um sentimento unicamente interessante para aqueles que o sentiam, passou a ter importância externa e ingressou no meio jurídico. Possui, mais do que nunca, extremo valor jurídico nas relações familiares, sendo instrumentalizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente garantido (CF, art. 1º, III).

Cabe a nós destacarmos a importância do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista, entre outros, pela intimidade existente com o direito de família constitucionalizado. Tal princípio exerce importante função instrumental integradora e hermenêutica na ordem jurídica como um todo e, especialmente, no direito de família como veremos.

[...] na medida em que serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico. De modo todo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana [...] acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico-sistemático. (Sarlet, 2002, p. 83).

Constata-se, pois, um importante papel do princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive nas relações intersubjetivas. O critério hermenêutico, servindo como fundamento basilar para solução de algumas questões controvertidas.

Dentre as funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, destaca-se, pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional. Confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana. (Sarlet, 2002, p. 79).

Ainda, possui caráter cogente, comparado em importância e abrangência ao direito à vida, precedendo ambos aos demais princípios capitulados no caput do art. 5º. Não é admissível o direito à vida dissociado da dignidade sem o comprometimento do Estado de Direito. Porém, o direito à vida encontra exceção, art. 5º, inciso XLVII, alínea "a", onde a pena de morte é permitida em caso de guerra declarada, não cabendo exceção à dignidade. (Nascimento, 2004, p. 15).

Desse modo, entendemos que cabe ao poder público não apenas se abster de violar a dignidade de cada uma das pessoas, mas também atuar positivamente no sentido de efetivar e proteger a dignidade de cada um e, conseqüentemente, de todos os particulares. Nesse sentido, como já destacado e argumentado acima, há a função legislativa que deve ser exercida e preenchida com o fito de construir uma ordem jurídica que permita a efetiva implementação da dignidade da pessoa humana.

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A dignidade constitui a um só tempo pressuposto e condição para que se viva em sociedade, e exige limitação ao poder de toda autoridade ou mesmo pessoa de atingi-la ou desrespeitá-la, ainda que a pretexto de zelar pelo bem estar de todos.

A dignidade da pessoa humana, na perspectiva das relações intersubjetivas cria dever geral de respeito pela pessoa (como valor intrínseco), consistente num conjunto de deveres e direitos recíprocos, de natureza material, voltados ao resguardo e à promoção dos bens indispensáveis ao desenvolvimento da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana, também vista sob o enfoque das relações intersubjetivas, merece ser reconhecida e devidamente tutelada pela ordem jurídica na perspectiva de igual respeito e igual consideração de toda pessoa humana, tanto pelo Estado, como pela sociedade. Desse modo, imprescindível se faz compreender a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva inter-relacional e comunicativa, "constituindo uma categoria de co-humanidade de cada indivíduo (Mitmenschilichkeit dês individuums), de tal sorte que, na esteira da lição de Peter Haberle, a consideração e reconhecimento recíproco da dignidade pode ser definida como uma espécie de ‘ponte dogmática’, ligando os indivíduos entre si". (Gama, 2003, p. 145-146).

Destarte, acreditamos que a Constituição elevou a dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento da sua personalidade ao posto máximo do ordenamento jurídico, constituindo opção metodológica oposta a do individualismo das codificações.

A pessoa humana, no que se difere diametralmente da concepção jurídica de indivíduo, há de ser apreciada a partir da sua inserção no meio social, no âmbito de sua convivência e desenvolvimento pessoal, que é no seio da família em que vive.

Por outro lado, tampouco há que se falar apenas em "direitos" (subjetivos) da personalidade, mesmo se atípicos, porque a personalidade humana não se realiza somente através de direitos subjetivos, mas sim através de uma complexidade de situações jurídicas subjetivas, que podem se apresentar, sob as mais diversas configurações: como poder jurídico, como direito potestativo, como interesse legítimo, pretensão, autoridade parental, faculdade, ônus, estado – enfim, como qualquer circunstância juridicamente relevante. (Moraes, 2003, p.118).

Daí sustentar-se que a personalidade humana é valor, um valor unitário e tendencialmente sem limitações. Assim, não se poderá, com efeito, negar tutela a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência para o qual não haja previsão específica, pois aquele interesse tem relevância ao nível do ordenamento constitucional e, portanto, também em via judicial. Eis aí a razão pela qual as hipóteses de dano moral são tão freqüentes, porque a sua reparação está posta para a pessoa como um todo, sendo tutelado o valor da personalidade humana. Os direitos das pessoas estão, assim, todos eles, garantidos pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e vêm a ser concretamente protegidos pela cláusula geral de tutela da pessoa humana. Em seu cerne encontram-se a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade. Nesse sentido, deve-se inibir ou reparar, em todos os seus desdobramentos, a conformação de tratamentos desiguais – sem descurar da injustiça consubstanciada no tratamento idêntico aos que são desiguais [...]. A cláusula geral visa proteger a pessoa em suas múltiplas características, naquilo "que lhe é próprio", aspectos que se recompõem na consubstanciação de sua dignidade, valor reunificador da personalidade a ser tutelada. Assim, cumpre reconhecer que, evidentemente, também se abrigam sob o seu manto os demais direitos que se relacionam com a personalidade, alguns deles descritos pelo próprio legislador constituinte no artigo 5º da Constituição Federal. (Moraes, 2003, p.127-128).

Visto que a dignidade está intimamente ligada à vida e à liberdade, como regra geral daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as relações privadas, inclusive nas relativas à família, nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, entendemos, juntamente com Maria Celina Bodin de Moraes, (2003, p.120) que a primeira deverá prevalecer em todos os aspectos, obedecidos, assim, os princípios constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como o valor cardeal do sistema.

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Sobre o autor
Douglas Policarpo

advogado, especialista em Direito Empresarial e mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), bolsista do CAPES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLICARPO, Douglas. A incompatibilidade da dignidade afetiva e o direito à sucessão.: Uma abordagem do reconhecimento da paternidade extemporânea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1256, 9 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9257. Acesso em: 27 abr. 2024.

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