I – O FATO
Desperta a atenção dos estudiosos recente ilícito que trouxe prejuízo coletivo em face de operações com criptomoedas, em “pirâmide financeira”.
Noticiou o jornal O Globo, em 25 de agosto do corrente ano, que segundo um registro do Ministério do Trabalho, em 2014 Glaidson Acácio dos Santos recebia cerca de R$ 800 mensais com emprego de garçom na Orla Bardot, em Búzios, na Região dos Lagos (RJ). Em alguns anos, a vida dele mudou radicalmente: ele virou um milionário que movimentou mais de R$ 2 bilhões na GAS Consultoria. Em fevereiro deste ano, Glaidson, de 38 anos, fez uma festa de aniversário em Angra dos Reis com direito a show do cantor João Gabriel. Ele foi preso em condomínio na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio, em operação da Polícia Federal (PF) para desarticular uma organização criminosa responsável por fraudes bilionárias envolvendo criptomoedas. Na garagem, Glaidson, que é casado com a venezuelana Mirelis Díaz Zerpa, ostenta carros de luxo. O empresário, entretanto, evita aparecer em público e não é afeito a redes sociais.
O empresário preso acusado de comandar um esquema de fraudes bilionárias envolvendo criptomoedas na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, movimentou R$ 38 bilhões em contas bancárias nos últimos seis anos. Um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) encaminhado à Polícia Federal aponta que, só nos últimos 12 meses, foram cerca de R$ 17 bilhões movimentados por Glaidson Acácio dos Santos.
Glaidson foi no dia 25 de agosto na Operação KryptosAgentes, da Polícia Federal. Na ação, foram apreendidos mais de R$ 15 milhões em espécie na casa dele.
De acordo com as investigações, a empresa funcionava em um esquema de pirâmide: o investimento de novos clientes alimentava os ganhos dos investidores mais antigos.
Essas operações financeiras só são válidas se estiverem cadastradas no Banco Central ou na CVM.
Segundo a Polícia Federal, a empresa prometia 10% de retorno mensal aos investidores, o que seria insustentável, já que a previsão era baseada no contrato sem registro aos órgãos regulatórios vinculado à especulação no mercado de criptomoedas.
II – A PIRÂMIDE FINANCEIRA E CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR
De acordo com as investigações, a empresa funcionava em um esquema de pirâmide: o investimento de novos clientes alimentava os ganhos dos investidores mais antigos.
Trata-se de pirâmide financeira.
Lembro a lei nº 1.521 que disciplinou os crimes contra a economia popular, tal prática de pirâmide financeira ficou tipificada como crime, dizendo a lei:
Art. 2º. São crimes desta natureza:
IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", “pichardismo"e quaisquer outros equivalentes);
Pois bem, como dito, não se trata de uma nova figura criminosa surgida recentemente, muito pelo contrário, sua existência e sua prática já é reprovável penalmente há muitos anos.
Disse bem Fabrício da Mata Corrêa (Pirâmide Financeira):
"O motivo desse verdadeiro “boom” é decorrente das muitas redes virtuais que passaram a servir de verdadeiros chamarizes para novos adeptos. Daí o nome que se tem atribuído de “marketing virtual”, haja vista que impulsionado pelos muitos meios virtuais, redes sociais e até mesmo canais abertos de TV, o alcance atingido com as publicidades desses meios possibilitaram atingir um número de pessoas nunca antes visto. Estima-se haver milhões de pessoas envolvidas nesses tipos de atividades.
De forma bem simples, pode-se dizer que tal prática normalmente tem seu início com poucas pessoas, que levam a promessa de investimento fácil e de retorno financeiro rápido e vantajoso. Algo que sem esforço é capaz de atrair várias pessoas. Ocorre que os responsáveis pelo início do esquema a medida que vão atraindo mais participantes, e estes por sua vez vão fazendo igual, passam a receber não só por aqueles que efetivamente tenham captados como também pelos demais e assim sucessivamente. Seria o mesmo que pensássemos em uma cachoeira de dinheiro que possui curso inverso.
Por isso que se diz que uma das características de tal esquema é que ele não sobrevive se não houver novos adeptos. Basta pensar, se não há um produto real a ser comercializado que seja capaz de manter financeiramente estruturado todo o grupo, não há como ele continuar. Por isso da necessidade de se ter sempre o máximo possível de novos adeptos.
É inclusive daí que surge o nome mais popular de pirâmide, posto que os mais antigos no “negócio” vão ficando sempre por cima em uma espécie de estrutura onde os dividendos só correm para a parte de cima da pirâmide. Normalmente, até para se camuflar o negócio e dar a ele uma aparência de legalidade, o ingresso do interessado normalmente se dá com o consumo de determinado produto ou então como investimento numa espécie de fundo de rendimento, mas que na realidade não passam de um engodo.
Deve-se dizer que a primeira vista parece ser algo tão vantajoso que as pessoas não pensam duas vezes antes de ingressar, principalmente porque a forma com que a ideia é passada, provoca verdadeira lavagem cerebral nas pessoas. E isso só contribui para o aumento em massa de novos participantes."
Nos crimes contra a economia popular a vítima é uma coletividade, com um número expressivo de vítimas, quando se tem o chamado estelionato massivo.
É o que se costuma denominar no mercado financeiro de “ciranda”, “corrente” ou “pirâmide”, por se tratar de negócio baseado sobre um conjunto crescente de investidores, que são ludibriados com a expectativa de ganhos irreais e impossíveis de serem gerados pelo funcionamento lícito e regular da economia.
As vítimas são induzidas e mantidas em erro quanto à situação da empresa, sendo-lhes sonegadas as informações, que são prestadas falsamente, além da conduta envolver veiculação, por intermédio dos meios de comunicação, de informações enganosas e, com isso, acarretam maior confiabilidade ao empreendimento, ludibriando, assim, centenas de consumidores, insuflando-os a ingressarem no negócio. A esse propósito, leia-se o artigo 2º, IX, da Lei 1.521/51.
Trata-se de crime material que exige o dolo como elemento do tipo penal.
Por não haver indicação de evasão de divisas ou lavagem de dinheiro em detrimento dos interesses da União, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é da 2ª Vara Criminal de Jundiaí (SP) a competência para conduzir as investigações sobre um caso de pirâmide financeira que envolve criptomoedas.
Segundo o colegiado, a jurisprudência pacífica considera que o esquema criminoso conhecido como pirâmide financeira não configura crime contra o Sistema Financeiro Nacional (SFH), mas sim contra a economia popular; por isso, nos termos da Súmula 498 do Supremo Tribunal Federal, é de competência da Justiça estadual.
As operações denominadas de "pirâmide financeira", sob o disfarce de "marketing multinível", caracterizam-se por oferecer a seus associados uma perspectiva de lucros, remuneração e benefícios futuros irreais, cujo pagamento depende do ingresso de novos investidores ou de aquisição de produtos para uso próprio, em vez de vendas para consumidores que não são participantes do esquema.
Nesse sentido, a captação de recursos decorrente de "pirâmide financeira" não se enquadrariam no conceito de "atividade financeira", para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular).
III – O DELITO ENVOLVENDO AS CRIPTOMOEDAS
Fala-se que há delito envolvendo criptomoedas.
A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976.
Como bem lembraram Luciana Martorano e Letícia Crivelin (Decisão do STJ não definiu natureza jurídica das criptomoedas, in Consultor Jurídico) “ao analisar a questão, o STJ considerou os posicionamentos emitidos pelo Banco Central e a CVM acima, adicionando que “a negociação de criptomoeda ainda não foi objeto de regulação no ordenamento jurídico pátrio”. Por tal motivo, os crimes relacionados a moedas virtuais seriam tidos como comuns e de competência da Justiça estadual.”
De acordo com o Banco Central (Comunicado 31.379/2017), "as criptomoedas ou moedas virtuais consistem em representações digitais de valor que “não são emitidas nem garantidas por qualquer autoridade monetária, por isso não tem garantia de conversão para moedas soberanas, tampouco são lastreadas em ativo real de qualquer espécie, ficando todo o risco com os detentores”.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) (Relatório Semestral – Supervisão Baseada em Risco. Julho-dezembro/2017), por sua vez, entende que as criptomoedas, como o bitcoin, não se submetem ao órgão regulador, uma vez que o ativo “não é considerado atualmente um valor mobiliário”.
O mercado de corretagem de criptomoedas é um mercado novo e é natural que decorra um lapso temporal entre o surgimento de novos mercados e sua regulamentação.
IV – A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
Pontuo, no entanto, que os investigados, para o caso, respondem por crimes de competência da Justiça Federal, pois respondem pelos crimes de gestão fraudulenta/temerária, instituição financeira clandestina, emissão ilegal de valores mobiliários sem registro prévio, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Tais crimes são previsto na Lei nº 7.492/86. Ali se diz:
Art. 26. A ação penal, nos crimes previstos nesta lei, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante a Justiça Federal.
Compete à Justiça Federal processar e julgar, de forma unificada, os crimes conexos de competência federal e estadual.
Bem disse a Ministra Laurita Vaz, em julgamento do Recurso Especial 1.015.971/PR, DJe de 3 de abril de 2012, que o crime de gestão fraudulenta é classificado como crime formal e visa tutelar a credibilidade do mercado e a proteção do investidor, buscando-se a estabilidade e a higidez do Sistema Financeira Nacional, para cumprir a finalidade de ̈promover o desenvolvimento equilibrado do País, e a servir aos interesses da coletividade ̈(artigo 192 da Constituição Federal). Aliás, no tipo penal discutido, eventuais prejuízos às instituições financeiras não são relevantes para a adequação típica.
A gestão temerária é observada pela impetuosidade com que são conduzidos os negócios, o que leva ao aumento do risco de que todas as atividades empresariais terminem por causar prejuízos a terceiros, ou por malversar o dinheiro empregado na sociedade infratora. Tal é o que assevera Paschoal Mantecca, em Crimes contra a economia popular e sua repressão, 1985, pág. 41.
Certamente, a acusação para firmar a competência da Justiça Federal vai alegar que há a conduta inserida no artigo 16 da Lei dos crimes do colarinho branco, que é o de fazer operar sem a devida autorização instituição financeira.
A objetividade jurídica envolve a boa ordem do Sistema Financeiro Nacional.
Instituição financeira é toda pessoa jurídica ou pessoa física(por equiparação) que tenha “como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros, como disseram Paulo José da Costa Jr., M.Elisabeth Queijo e Charles M. Machado(Crimes do Colarinho Branco, 2000, pág. 113).
Tal crime consuma-se com a coleta, intermediação ou aplicação de dinheiro como mercadoria na forma de reiteração. Trata-se de crime habitual, que exige uma repetição de conduta.