"- Adeus – disse a raposa. – Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
- O essencial é invisível aos olhos – repetiu o principezinho, para não esquecer.
(...)
- Os homens esqueceram essa verdade – disse ainda a raposa. – Mas tu não deves a esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa" [01].
EXPOSIÇÃO
É sabido que a Constituição Federal de 1988 traz explícito, em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana como diretriz e princípio nuclear do sistema jurídico nacional, significando, assim, fundamento da República Federativa do Brasil, ferramenta aglutinadora dos direitos e garantias fundamentais e elemento inerente à personalidade humana.
Sem dúvida, a expressa previsão constitucional do princípio-diretriz da dignidade da pessoa humana representa um grande avanço na busca pela efetividade do direito fundamental de todo ser humano de dispor e gozar da "sadia qualidade de vida", termo não só de uma beleza técnico-jurídica ímpar, mas, essencialmente, de múltiplos significados, seja no campo religioso, seja no campo filosófico.
Sem se desviar do tema, o direito à sadia qualidade de vida é bem analisado pelo Mestre Paulo Affonso Leme Machado, quando ensina que, ao lado da dignidade da pessoa humana, "seus alicerces estão fincados constitucionalmente para a construção de uma sociedade política ecologicamente democrática e de direito" [02].
Por sua vez, no tocante à Administração Pública, as políticas públicas têm por finalidade, em breve síntese da qual, de forma alguma, se pretende tratar o assunto de modo simplório, garantir aos cidadãos o atendimento e a efetividade do direito à sadia qualidade de vida, segundo preconizado constitucionalmente.
No Direito Ambiental, é de grande relevância o capítulo constitucional, especial à proteção do Meio Ambiente, por defini-lo como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Como frisado por Luís Roberto Gomes, a Lei Maior reconhece, categoricamente, que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é "direito humano do qual não se prescinde" [03].
De outro lado, no Direito Urbanístico, tem-se que a função sócio-ambiental da propriedade atende não só ao interesse público, coletivo, difuso, como também se impõe em detrimento do direito comunitário à sadia qualidade de vida. Nos termos do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), o Plano Diretor está definido como instrumento básico para orientar a política de desenvolvimento e de ordenamento da expansão urbana municipal. Objetiva-se, com isso, o "crescimento urbano equilibrado" e "o desenvolvimento sustentável das cidades brasileiras", "para que se evite ocupação irregular e informal do território do município", sendo necessário que se assegure "espaços adequados para a provisão de novas moradias sociais que atendam a demanda da população de baixa renda" [04], entre outros.
É fácil perceber, por conseguinte, a evidente interligação entre esses dois ramos do Direito Público, em verdade, uma real simbiose jurídica, haja vista que necessariamente convivem lado a lado, não se podendo pensar em um, preterindo o outro.
Ademais, no Estudo Propedêutico do Direito, é de conhecimento de qualquer jurista que as normas constitucionais não se colidem, não se abalroam; pelo contrário, vivem em conjunto dentro do mesmo sistema constitucional eleito por cada nação.
Assim, como exemplo claro, poder-se-ia ilustrar o desenvolvimento sustentado, previsto na Carta Magna, em seu Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira), art. 170, onde são apresentados os princípios gerais da atividade econômica. Para Paulo Affonso Leme Machado, os nove princípios não se situam dentro de uma hierarquia, isto porque "a receita de uma sociedade feliz não está contida só nesses princípios, pois também, em outras partes da Constituição, outros princípios podem ser extraídos. Mas esses princípios representam o mínimo que o constituinte indica para uma ‘existência digna’. Muitas vezes todos os princípios funcionarão em uníssono, e algumas vezes haverá tensão, dissonância e até enfrentamento" [05].
É oportuno salientar que o Estado Democrático de Direito não pretende subjugar a atividade econômica de quem quer que seja; noutro plano, não pode ser indiferente "diante do uso do meio ambiente, do tratamento do consumidor, da busca do emprego e da redução das desigualdades frente à liberdade profissional e empresarial" [06].
Noutra esteira, as normas editadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), através de resoluções, encontram-se plenamente de acordo com o Sistema Nacional do Meio Ambiente, inserido na legislação pátria pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente [07] (Lei Federal nº 6.938/1981), como competência deliberativa. Esse Conselho tem atuado de forma "digna de elogios" e, desde o início de suas atividades, o CONAMA "teve a competência de determinar a realização de Estudo de Impacto Ambiental e, portanto, de apreciá-la após sua elaboração [08]".
As Áreas de Proteção Permanente (APP), de mais a mais, representam um importantíssimo instrumento de zoneamento ambiental, equiparável, dentro do sistema urbanístico, ao Plano Diretor Municipal.
E é justamente em busca da efetividade do direito à sadia qualidade de vida que se afirma, sem sombra de dúvida, que o uso irregular de um espaço, de uma moradia, de uma construção, à luz do Direito Ambiental e do Direito Urbanístico, enfim, não pode ser fonte de Direito e não configura qualquer direito adquirido, "considerando que o direito de propriedade só é protegido à medida que a propriedade cumpre sua função social" [09].
JUSTIFICATIVA
Perguntar-se-ia onde o Ministério Público entraria na defesa do direito à sadia qualidade de vida. A resposta a essa pergunta, indubitavelmente, é em todas as suas atribuições e em todas as suas prerrogativas constitucionais, consoante lhe confere a Constituição Federal, com fulcro nos arts. 127 e 129.
Assim, não basta conceder direitos, os quais se encontram elencados no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), mas também "se abandona, na nova Carta, a tripartição das funções essenciais do Estado, expressa nos tradicionais Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para criar-se uma quarta função, exatamente igual a esses chamados ‘Poderes da República’, com a finalidade de aperfeiçoar a democracia, garantir a ordem jurídica, e os interesses sociais e individuais indisponíveis, todos os valores necessários a um Estado rico em recursos naturais" [10].
O desempenho das importantes funções do Ministério Público "visa adequar nosso ordenamento jurídico à tendência contemporânea de todo o Direito Constitucional universal, que é impedir, de todas as formas possíveis, o desrespeito sistemático às normas constitucionais, que conduz à erosão da própria consciência constitucional" [11].
Conforme entendimento do emérito Doutor Diaulas Costa Ribeiro, o Ministério Público deve ser compreendido como uma magistratura social, uma vez que, cada vez mais, "acentua-se a independência recíproca dos magistrados judiciais e da magistratura do Ministério Público, olvidando que ambas as magistraturas têm missão substancialmente idêntica, como órgãos de justiça – a realização da justiça" [12].
Por sua vez, o intenso fortalecimento do Ministério Público na nova ordem constitucional tornou natural que fosse essa "Instituição também legitimada pela Constituição para promover a tutela dos interesses e direitos coletivos e que a ela fosse conferido o instrumental investigatório necessário à obtenção de elementos de convicção para a fundamentação de sua atuação" [13].
O dia-a-dia de qualquer Promotor de Justiça tem demonstrado que diversos conflitos, de ordem coletiva, difusa, ou individual homogênea, são resolvidos não pela atuação judicial do Ministério Público, mas, sim, por meio de sua atuação extrajudicial, por exemplo, mediante a instrução de inquéritos civis e a tomada de compromissos de ajustamento de conduta, na hipótese de tais problemas não serem resolvidos imediatamente, em atendimento a solicitações ministeriais informais, voltados à reparação ou prevenção de danos.
De fato, na área ambiental e na tutela dos interesses e direitos transindividuais, em geral, o "compromisso de ajustamento de conduta cumpre o constitucional princípio da prevenção, na medida em que é instrumento de excelente resultado prático na composição dos conflitos, inclusive evitando a longa espera pelo provimento jurisdicional no caso de ajuizamento de ação competente" [14].
Nunca é demais ressaltar que o instrumento de participação democrática, traduzido no conceito de audiência pública, significa um recurso básico ao acesso à informação e uma vigorosa arma da cidadania brasileira, as quais concedem real legitimação popular à atuação do Ministério Público como Promotor da Qualidade de Vida.
Como observou Hugo Nigro Mazzilli, as audiências públicas presididas pelo Ministério Público são "um mecanismo pelo qual o cidadão e as entidades civis (as entidades chamadas não governamentais) podem colaborar com o Ministério Público no exercício de suas finalidades institucionais, e, mais especialmente, participar de sua tarefa constitucional consistente no zelo do interesse público e na defesa de interesses transindividuais" [15].
Na minha experiência como Promotora de Justiça da Comarca de Mucugê [16], cidade tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e situada dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina [17], deparei-me com a situação fática de casas e construções irregulares, às margens do leito do córrego do Lava-pés, dentro de uma Área de Preservação Permanente, portanto, e em Município cujo Plano Diretor dizia, expressamente, ainda, que aquela localidade era "zona não edificável".
Sem saneamento básico, mas com acesso a toda infra-estrutura urbana, como rede de abastecimento de água, luz e coleta regular de lixo, por exemplo, os residentes e construtores daquele local burlavam usualmente todas as leis e normas, federais, estaduais e municipais pertinentes, por acreditarem no famoso "jeitinho brasileiro" e não se conscientizarem da importância da preservação de qualquer leito de rio, seja ele dentro de cidade tombada historicamente ou não.
Desta forma, necessárias se fizeram as audiências e reuniões públicas, promovidas pelo Ministério Público do Estado da Bahia, em conjunto com o IPHAN, Poderes Executivo e Legislativo Municipais, o Centro de Recursos Ambientais (CRA), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) e demais autoridades locais, a fim de se discutir a problemática da questão, sugerir a conscientização e o chamamento à responsabilização pública de toda a comunidade mucugense.
Das parcerias que se surgiram e da análise da legislação concernente, principalmente, da Resolução CONAMA nº 369/2006, de 28 de março de 2006, a qual dispõe sobre "os casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente – APP", o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado pelo Ministério Público com o Município de Mucugê, tendo como órgão interveniente o CRA, denotou em resultado e desfecho naturais, os quais, em muito atendem ao interesse público e à responsabilização comunitária, cuja cópia do referido TAC disponibilizamos no Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente (CEAMA) do Ministério Público do Estado da Bahia.
CONCLUSÃO
Para cumprir a sua atribuição de Promotor da Qualidade de Vida, o Ministério Público é importante ator, quiçá protagonista, vocacionado pela Carta Constitucional de 1988 para a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, executando o seu inigualável papel público de resgatar a cidadania e, fundamentalmente, de garantir a efetividade do direito à sadia qualidade de vida.
NOTAS
01 SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 72 e 74.
02 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.121.
03GOMES, Luís Roberto. O Ministério Público e o controle da omissão administrativa: o controle da omissão Estatal no direito ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 177.
04 BRASIL. Ministério das Cidades. Plano diretor participativo: guia para elaboração pelos Municípios e cidadãos, 2ª Edição/ Coordenação Geral de Raquel Rolnik e Otile Macedo Pinheiro, Brasília: Ministério das Cidades, Confea, 2005, p. 15.
05 MACHADO, op. cit., p.141.
06 MACHADO, op. cit., p.141.
07 "Art. 6.º Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, assim estruturado:
(...)
II – órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida".
08 MACHADO, op. cit., p.155.
09 GASPARINI, Audrey. Tombamento e Direito de Construir. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 98.
10 GUASQUE, Luiz Fabião. O ministério público e a sociedade / Luiz Fabião Guasque, Denise Freitas Fabião Guasque. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p.100/101.
11 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.573.
12 RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p.131/132.
13 PROENÇA, Luis Roberto. Inquérito Civil: atuação investigativa do Ministério Público a serviço da ampliação do acesso à Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 11.
14 AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de Ajustamento de Conduta Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 140.
15 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil: investigações do Ministério Público, compromissos de ajustamento e audiências públicas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 403.
16 A evolução urbana da sede de Mucugê teve seu início de urbanização na margem esquerda do rio Mucugê, com o acampamento dos primeiros mineradores. O crescimento descontrolado, sem qualquer planejamento, como ocorreu na maioria dos municípios brasileiros, trouxe a dispersão dos garimpeiros para outras lavras como as de Campo de São João, Lençóis, Arraial das Palmeiras, Andaraí e Xique-xique do Igatu. Com a crise do ciclo do diamante, o dinamismo urbano sofreu violenta regressão em toda a região da Chapada Diamantina. Entretanto Mucugê, em função de seu papel de entreposto viário e da sobrevivência das atividades agropecuárias, não chegou a sofrer uma fase tão aguda de recessão quanto à vizinha cidade de Lençóis.
17 A ocupação da Chapada Diamantina no Estado da Bahia está estreitamente ligada à exploração do ouro e do diamante. Antes da descoberta dessas duas riquezas, a região era dominada pelos índios Maracás, que repeliam com violência os estranhos que invadiam seu território. Em meados do século XVIII, a região sul da Chapada viveu uma época de grande prosperidade econômica, com tradicionais famílias esbanjando e ostentando toda riqueza extraída da atividade mineratória. Conta-se que até mesmo pó de ouro era lançado sobre as pessoas na procissão do Divino Espírito Santo. Toda essa prosperidade começou a decair por volta de 1800, primeiramente, com a escassez do ouro, agravando-se com a notícia da descoberta de diamantes na região de Mucugê, quatro décadas mais tarde.