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Rudimentos de uma fundamentação principiológica para a proteção ambiental: a natureza como o sistema primordial com o qual o homem interage (entorno).

Por uma visão de mundo não-superlativamente-antropocêntrica

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2. DIFERENTES FORMAS DE PERCEBER A NATUREZA: DO QUE SE CONVENCIONOU CHAMAR PRÉ-MODERNIDADE, MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE:

2.1 Pré-modernidade: do Mito à Ciência Aristotélica

Digamos, antes de tudo, que o chamado paradigma pré-moderno teria predominado desde o findar de uma visão mítica de mundo até o final da Idade-Média, por volta dos sécs. XIV e XV, donde vingou a chamada Ciência Aristotélica. Cabe aclarar que tais marcos históricos nada mais são que balizas meramente didáticas. E que ainda não podemos precisar o tempo, porque uma tal coisa não conhecemos em inteireza! O tempo, a que sequer somos capazes de minudenciar as características mínimas, – que se dirá de definir apropriadamente – seccionamos em frações as mais diminutas ou amplas, atribuímos nomes a cada uma delas, por mais ínfimas ou colossais que sejam, e, por fim, julgamos com isso, num sonho tresloucado dos tolos, conhecermos algo acerca daquilo que simplesmente rotulamos!(E, todavia, ainda sentimos inexoravelmente o seu efeito feroz!). Assim, vale dizer, que essa transição (do mito à ciência rudimentar) não se deu uniformemente em todo o globo, eis que, todos os dias, homens transitam de um patamar a outro, o microcosmo (individual) reproduzindo o macrocosmo (histórico). E de tal modo, que não é raro haver homens cujo modo de ver a vida, o mundo e a natureza ainda renda considerável peso ao mito; havendo outros que se apóiem nos resultados científicos, por vezes, com um vigor tal, que nem mesmo se conseguiria distar muito esse proceder daquilo que hoje tomamos por dogma religioso; e apenas alguns é que estariam um pouco mais preparados para absorver as mudanças (naturais) sem muito conservadorismo.

Ora, aquele mesmo, com o perdão da redundância, "primeiro-homem-pensante", não conseguindo satisfazer de imediato o turbilhão de suas próprias indagações, recorreu inicialmente ao Mito para responder a muitos de seus questionamentos acerca da Natureza e do Mundo. Aponta-nos a professora Marilena Chauí (1995) que "a palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: o verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador." [31]

Por séculos, os fenômenos naturais (à época ainda desconhecidos e, portanto, ainda pertencentes – segundo o estreito olhar humano de então – à senda do sobrenatural) eram explicados por cosmogonias e cosmologias [32], bastante imbricadas, porém, de explicações mitológicas, quase sempre meras respostas dadas a que a mente humana (eternamente sequiosa de saber) pudesse prosseguir vivendo, realizando sua rotina diária, sem se abismar com a perplexidade das indagações que fazia e que – até hoje – ainda as faz, sem, todavia, encontrar respostas a contento.

Foi, pois, com o surgimento da Filosofia que o Homem passou a se debruçar conscienciosamente a responder tais indagações: O que sou? Donde vim? Quem criou todas as coisas? Por que existo? E para quê? Nesse meio termo, mesmo desde a fase mitológica, ou, quando do aflorar tímido da Filosofia ainda jovem, a ruptura do Ser Humano com o Mundo Natural, não se dera ainda de todo, não como a vemos hodiernamente.

O mundo era [para os gregos] um organismo vivo, a divina fonte de todos os seres vivos - e até dos deuses. (...) Os filósofos jônicos encaravam a própria natureza como uma divindade, um ser eterno em processo de contínua auto-regeneração. (...) não importa quão divergentes possam ter sido as diferentes concepções dos filósofos pré-socráticos, ainda assim, como salientou O. Gilbert, ´´toda a especulação dos jônicos e dos eleáticos, e até mesmo dos pitagóricos, nada mais é que a busca da divindade: isto é, da substância divina que determina e dirige o desenvolvimento do mundo´´. [33]

E por que, afinal, ao falarmos de Filosofia e desse primeiro esforço científico rudimentar, reportamo-nos diretamente aos gregos antigos? Bem, como já vimos, a primeira explicação do homem, de si para si mesmo, acerca da origem de todas as coisas foi o mito; contudo, a primeira tentativa de explicar racionalmente o Homem e a Natureza adveio da Filosofia. A Filosofia sempre teria existido, eis que sempre esteve presente enquanto simples "curiosidade" que se tem em relação ao mundo exterior e a si próprio. Tal curiosidade também estava lá quando o primeiro dos homens galgou o patamar racional (e, por conseguinte, atingiu a condição humana), então lá estava também a Filosofia, ainda que em forma bastante rudimentar, dando sentido à própria concepção que temos de homem: penso, logo existo [34] (o ‘cogito, ergo sum’, de Descartes). Poderíamos até dizer que a Filosofia seja inerente ao ser humano, confundindo-se com ele mesmo – afinal, foi ela que possibilitou esse pensar de si como algo diverso do Mundo Natural e que deu a consciência de que não havia sido o homem o criador de si próprio ou das coisas em derredor (ou seja, do entorno - contorno de Luhmann). Há, todavia, uma concepção mais restrita acerca da Filosofia, com limites mais bem definidos, e que teria surgido na Grécia Antiga, sendo a essa concepção que nos reportaremos daqui por diante.

Antes mesmo do surgimento da Filosofia como tal – não aquela que se expôs, mas a Filosofia que surgiu na Grécia, tal qual se concebe nos dias atuais – as preocupações dos gregos foram inicialmente cosmogônicas e cosmológicas, ou seja, num primeiro momento, suas explicações para si e para o mundo vertiam das orientações repassadas, via oral, através dos tempos, histórias de mitos e de deuses. Com o advento do saber Filosófico, voltaram-se à perquirição da origem das coisas, buscavam encontrar o princípio de todas as coisas, a unidade básica da natureza, o tijolo com que a Divindade teria criado todo o cosmos sem-fim.

Sendo a Cidade-Estado a característica organizacional mais marcante daquele povo à época, fruto talvez do determinismo geográfico, pois o território montanhoso dificultava a aproximação entre as gentes das diferentes localidades, inexistia uma unidade grega. E, assim, não podemos afirmar que as mudanças de enfoque, do plano mítico ao filosófico, se tenham dado em todo o território de uma maneira uniforme, eis que nalgumas cidades prevaleciam ainda explicações míticas, enquanto noutros locais já se explorava a tentativa racional. Por ser uma região de litoral recortado, polvilhado de ilhas, e com um sem-número de portos naturais, acorreram à Ática comerciantes e colonos de todo o mundo até então conhecido, vindo com eles todas as novas concepções de vida e mundo, sorvendo os gregos inúmeras de suas idéias da chamada sabedoria oriental (no que concebemos seja Filosofia Oriental), dos conhecimentos dos iniciados egípcios e mesmo dos frutos da Magna Grécia. Eis o que possibilitou assim todo o fervilhar do caldo cultural que deu origem à Filosofia Grega. Tal processo se principiou com as invasões dóricas, a partir do séc. XII a.C., havendo, em decorrência disso, a paulatina queda da civilização micênica (patriarcal, agrícola e centrada nas gens – gentílica pois), e o conseqüente advento das Cidades-Estado, primeiramente nas colônias gregas da Ásia Menor, para onde fugiram os aqueus, formando centros culturais e econômicos, e somente depois nas regiões mais centrais da Ática [35].

E, se não podemos precisar tenha a Filosofia como a conhecemos surgido efetivamente na Grécia, podemos dizer, seguramente, que, ao menos para o mundo ocidental, os filósofos pré-socráticos é que fundaram o marco da substituição do foco religioso-mítico pelo científico-filosófico. Ora, os primeiros pensadores gregos – e entendemos, aqui, por pensadores, os primeiros filósofos propriamente ditos, ou os precursores da Filosofia – centravam-se na busca da origem do universo, do mundo e, por conseguinte, deles mesmos, além das causas das transformações da Natureza. Estas vêm a ser as principais preocupações dos pré-socráticos, donde receberam a alcunha de Filósofos da Natureza, "porque se interessavam sobretudo pela natureza e pelos processos naturais. (...) A maior parte de tudo o que os filósofos da natureza disseram e escreveram ficou perdida para a posteridade. E a maior parte do pouco que sabemos está nos escritos de Aristóteles, que viveu duzentos anos depois dos primeiros filósofos." [36] E foi justamente sobre o pensamento aristotélico que se fundou o primeiro paradigma de mundo que vamos analisar, ora chamado, paradigma pré-moderno.

Vale dizer, de já, que a palavra Filosofia significa amizade ao saber, amor ao saber, e jamais sua detenção ou posse. Não se sabe precisamente se foi inicialmente usada por Pitágoras, de Samos, ou por Tales, de Mileto. Certo é que ambos são considerados os pais da Filosofia.

Apenas como mera notícia, já que não se constitui o objetivo central e imediato da presente perquirição, vale frisar que os pré-socráticos se agrupavam em quatro escolas, são elas: a escola jônica, a escola itálica, a escola eleática e a escola atomística. Não se considera os sofistas uma escola filosófica, uma vez que, os sofistas eram "indivíduos independentes, muito diversos por origem, cultura e procedimento didático" [37], diferentemente do que ocorria nas demais escolas. Na escola jônica, figuram, entre outros: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Empédocles e Anaxágoras. Segundo o Pe. Leonel Franca, os três primeiros são ditos jônios antigos, enquanto os três últimos jônios posteriores. [38] A escola itálica tem entre seus principais representantes Pitágoras, Filolau, Árquitas, Lysis, Hipasus, Cimias, Cebes, Hicetas e Alcmeon. A escola eleática possui como seus principais propagadores Xenófanes, Parmênides, Zenão, Melisso, entre outros. A escola atomística, por sua vez, é composta por Leucipo e Demócrito.

Tales de Mileto (624-548 a.C.), fenício de origem e fundador da escola jônica, procurava um princípio primeiro, um elemento gerador de todas as coisas na Natureza como forma de melhor caracterizá-la, ou seja, queria encontrar aquilo que une o homem e tudo o que há ao Mundo Natural. Na ausência de uma melhor palavra e/ou matéria para designar a physis [39] – esse elemento primordial do universo, princípio subjacente a todas as coisas na Natureza, substância básica a partir da qual tudo teria sido feito, consubstanciando mesmo o modo como os gregos viam a própria Natureza – propôs a água como substitutivo metafórico para aquilo que percebera presente em todas as coisas mais e que ligava o homem à natureza, sua origem comum. Todavia, não havendo palavra hábil a dar-lhe compreensão exata do que queria expressar, Tales se viu forçado a fazer uso da palavra e da idéia água para fornecer uma melhor aproximação daquilo que concebia como physis, fazendo-se compreender melhor, uma vez que a água, como ela, estava presente em tudo, unia a tudo. Assim, o fato de Tales dizer que a physis para ele era a água, trata-se apenas de uma metáfora. Antes de ser uma explicação material para o surgimento das coisas, como afirmara Aristóteles, era uma explicação metafísica. A cosmologia de Tales é, portanto, baseada na água como physis, ou seja, como elemento primordial eterno (hilozoísmo). Para Tales, "todas as coisas estão cheias de deuses [espíritos] [40]", nisso reside o termo ‘hilozoísmo’, que é matéria animada ou vivificada. Com a expressão ‘pelos espíritos ou deuses’ Tales quer dizer que regulam o mundo, que há vida na matéria, e não propriamente um retorno ao mito, apenas uma alusão à regulação da ordem natural, que ela é viva, e se rege através de normas e leis reguladoras.

Para Anaximandro e Anaxímenes (550-526 a.C.) a physis, enquanto elemento primordial da Natureza, seria, respectivamente, o infinito e o ar. Como em Tales, afirmações tão simples possuiriam um significado a mais do que o mero signo vocabular. "Para Anaximandro, o universo teria resultado de modificações ocorridas num princípio originário ou arché. Esse princípio seria o ápeiron, que se pode traduzir por infinito e/ou ilimitado. (...) Para ele, [Anaxímenes] resultaria das transformações de um ar infinito (pneuma ápeiron)" [41] que ora se condensava ora se rarefazia.

Pitágoras, de Samos (séc. VI a.C.), afirmara que a physis, para ele, seria o número. "As coisas manifestariam eternamente a unidade numérica que lhes é inerente." [42] Ele concebia o universo e a natureza regidos por leis matemáticas, nada muito diverso das concepções predominantes nos cientistas de hoje. Para Pitágoras, o número é o princípio universal que origina todas as coisas (physis).

Parmênides, de Eléia, (530-444 a.C.), principal corifeu da escola eleática, não cria, por sua vez, que a physis pudesse ser uma só coisa, mas um conjunto delas. Contudo, rejeitava a idéia de que houvesse transformações na natureza, afirmando serem essas transformações apenas ilusões dos parcos sentidos humanos – os sentidos que possuímos não nos traduziriam uma perfeita apreensão do real. Para ele, não deveríamos confiar em tais sentidos. Parmênides dizia que nada poderia surgir do nada, ou seja, nenhuma coisa poderia surgir do nada, ou ainda, mais especificamente, tudo o que há surge de outra coisa preexistente. Afirmava, ainda e, porém, que nada pode transformar-se em algo diferente do que já é, negando, assim, toda a transformação que nossos sentidos vêem na Natureza.

Para Parmênides, o movimento (a mudança) era uma contradição ao ser, eis que mudando, o ser deixaria de ser (o que era), passando a ser outra coisa, ou seja, passando a não-ser o que havia sido, o que – para ele – parecia um severo contra-senso, uma vez que, deixando de ser, não reconheceríamos as coisas como tais, muito embora as reconheçamos. Assim, a mudança seria aparente, uma ilusão dos sentidos. E como o não-ser não existe – isso na concepção do Ser Eleático –, não haveria falar-se em movimento (mudança). [43] Mais adiante veremos o quanto Parmênides havia se enganado e em que proporção suas reflexões faziam sentido.

Heráclito, de Éfeso (535-475 a.C. ou 540-480 a.C.), outro dos filósofos pré-socráticos, afirmava que tudo flui, ou seja, negava a estaticidade do ser parmenídico. Para Heráclito, tudo na Natureza muda a todo o instante e o que percebemos nas mudanças, de pronto, são somente os estados estanques — estágios mais ou menos perceptíveis ao homem —, havendo, porém, graduações entre eles. No entanto, haveria uma unidade na multiplicidade das coisas que há na Natureza, ou seja, tudo viria de uma só coisa: tudo é Um, na expressão exata de Heráclito. [44] Assim se daria com o dia e a noite, o claro e o escuro, o nascer e o morrer; sim, porque a morte é um processo o qual começa a se desenrolar com o nascimento. Uma frase condensadora do pensamento de Heráclito seria: um homem não pode banhar duas vezes no mesmo rio, porque o homem não é o mesmo e nem o rio [45]. Enfim, o que se observa é o contraponto entre estes dois últimos filósofos, seus pensamentos figuram nos pólos do diapasão: o devir [46]é ilusão (Parmênides) e o devir é real (Heráclito). [47]

Empédocles (c. 494-434 a.C.) "acreditava que a natureza possuía ao todo quatro elementos básicos, também chamados por ele de ‘raízes’. Estes quatro elementos eram a terra, o ar, o fogo e a água." [48]

A physis, para os atomistas, Demócrito e Leucipo, era, por sua vez, o átomo. E átomo significa exatamente "sem partes" ou "indivisível". Os atomistas viam no átomo a unidade básica de que se compunham todas as coisas.

O certo é que, com os pré-socráticos, os deuses e o mito deixaram de ser a medida de todas as coisas, passando a sê-lo, sim, o Homem, conforme bem exortara Protágoras. Vem daí a primeira noção de que o Homem figuraria como o ponto central de qualquer debruçar do conhecimento, seja sobre si ou sobre o Mundo Natural.

2.1.1 Do ‘conhece-te a ti mesmo’ ao Mundo das Idéias: as concepções de Platão e Sócrates acerca do Homem, da Natureza e do Mundo

Bem, seria por demais improfícuo querer retratar num só lance uma das páginas mais belas da história da humanidade, como é a que registrou o surgimento da Filosofia na Grécia Antiga; é imprescindível, porém, que exponhamos, ainda que em rápidas pinceladas, algumas nuances do pensamento grego, aquelas que se mostrem mais úteis à presente empresa: definir seu modo seu ver a Natureza, enquanto modelo de ciência anterior à modernidade. Mais inapropriada ainda seria qualquer tentativa de resumir ou condensar o pensamento de Sócrates. E aqui somos forçados a fazê-lo, não sem propósito, todavia; uma vez que sua Filosofia centrava-se no Homem e na Moral, bem pouco se reportando à Natureza e ao Cosmos, já que acreditava que, conhecendo o homem a si mesmo, conheceria a toda a Natureza, como que propondo, tácita e explicitamente, que a parte conteria o todo. Ora, bastaria ao Homem conhecer uma das partes da Natureza para conhecê-la por inteiro, tanto melhor seria se se dedicasse a conhecer-se a si próprio, eis que "a Divindade" sabiamente pusera o Homem mais perto de si mesmo, a fim de que fosse a si próprio, e não a qualquer outra coisa do Cosmos, que buscasse conhecer primeiro. Os pré-socráticos, já vimos, queriam vislumbrar seu elemento primordial da Natureza, ao passo que Sócrates julgava mais lógico desbravar a alma humana, eis que mais pertos fomos postos de nós mesmos, sendo por aí que deveria o homem começar a galgar a aventura do conhecimento: pelo conhecer-se a si mesmo. Mais que qualquer outro pensador grego, Sócrates consubstanciou o divisor de águas do saber que aquele povo legou à humanidade porvindoura.

Sócrates se contrapôs, quase como que numa antítese, ao pensamento sofístico. "A palavra ‘sofista’ designava o homem de ofício, aquele que sabe." [49] Isso em contraposição à Sócrates, que dizia _ "tudo que sei é que nada sei", sendo certo dizer, talvez, que os sofistas tenham tido este mérito na concepção do próprio pensamento socrático. Os sofistas dedicavam-se mais à retórica que à Filosofia. Cobravam pelo ensino, pelo saber que ministravam a toda a sorte de adeptos, ricos ou pobres; o que lhes rendeu muitas críticas de Sócrates e de Platão, que julgavam o saber impróprio para transações comerciais. Os temas ministrados pelos sofistas estavam intimamente ligados à política e à democracia ateniense, entre esses temas aparecem em destaque o direito público e privado, a justiça, a eqüidade, a moral, etc. Para os sofistas, não importava a tese propugnada, mas o "convencer", a eloqüência, a retórica, ainda que a tese fosse errônea. Por se preocuparem muito com a linguagem, são considerados os pais da gramática como ciência [50]. A verdade seria relativa, e era "possuidor" da verdade aquele que pudesse convencer que sua "opinião" era verdadeira.

Tudo o que sabemos de Sócrates devemos aos escritos de seus discípulos, pois, como Jesus, ele nada escreveu de si. Dentre seus discípulos, destacou-se Platão, e de um tal modo que fica muito difícil separar os pensamentos de um e outro. Em seus escritos, Sócrates é o personagem central, dialogando, em regra, com sofistas, que emprestaram seus nomes para as obras de Platão. Imperava nas conversas de Sócrates com os cidadãos (desde nobres a escravos, e, muito mais destacadamente, os sofistas) um método por ele chamado de maiêutica, que consiste em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensamento sobre uma questão que julgasse ser pleno conhecedor, o qual terminava pondo a si próprio em contradição, ao ver, por decorrência de seus próprios raciocínios, que nada sabia daquilo que julgara saber. Tal método consistia em fazer o próprio interlocutor olhar dentro de si. É que, para Sócrates, o verdadeiro conhecimento vem de dentro. Como vemos, pensamento de tendência marcantemente avessa à experimentação e sensivelmente inclinada a uma noção de ciência como saber racional, obtido pela razão cristalina, prescindindo de qualquer outra cousa, contrapondo-se, assim, à noção aristotélica de que a ciência deveria ser uma expressão da realidade e dos sentidos. Ao travar um diálogo com quem quer que seja, logo de início Sócrates afirmava nada saber sobre o tema, indagando ao interlocutor acerca de seus conhecimentos sobre o assunto; e, por fim, fazendo-o ver que a maioria deles não passava de pré-concepções, vazias de fundamento racional. O verdadeiro filósofo sabe que sabe muito pouco, e sabe que quanto mais se amplia a fronteira do que sabe, muito mais pululam as fronteiras do que desconhece e, conseqüentemente, as do que quer e precisa saber. Para Sócrates, as etapas do saber seriam: ignorar sua ignorância (não saber os limites do que não sabe, do que desconhece), conhecer sua ignorância (saber que não se sabe, saber os limites do que se desconhece), ignorar seu saber (não saber o que sabe, desconhecer os limites do que se sabe) e conhecer seu saber (saber o que se sabe, conhecer a extensão de seu conhecimento). As opiniões (a que Platão chamara doxa) não seriam verdades, posto não resistirem a um diálogo crítico, não se sustendo ante a maiêutica, revelando – não raro – completa ilogicidade. Conversar com Sócrates podia ser, quase que em regra, expor-se ao ridículo, e ser apanhado numa trama por si próprio criada de completa ilogicidade. O indivíduo que com Sócrates travasse diálogo iria, pouco a pouco, percebendo a falta de solidez de suas convicções. Sócrates, antes de mais nada, afirmava nada saber e, portanto, não ter convicções, preconcepções, preconceitos. Certo é que bem poucas coisas podemos afirmar por certas e, sabendo disso, de nenhuma delas fazia uso Sócrates, apenas do conhecimento que adviria da razão. Sua atividade era comparada à de uma parteira (arte de partejar), numa comparação à atividade de sua mãe. Uma parteira, embora não desse luz ao bebê, ajudava no parto. Ora, Sócrates apenas ajudava àquele com quem conversasse a ter ciência de que suas opiniões eram crivadas de preconceitos e que pouco ou nenhum fundamento racional possuíam. Tal qual ele ajudasse as pessoas a parirem suas próprias idéias. O estranho era que tais idéias possuíam solidez tal a ponto de nenhum homem tecer-lhes tese contrária; donde Kant se inspirara para fundar seu imperativo categórico, segundo o qual diria: "age de tal maneira que da razão impressa nesse teu agir se possa erigir uma lei universal", ou seja, conforma teu pensar ao um modo de agir irrepreensível e válido universalmente e, efetivamente, age em conformidade com o mesmo. À maneira da profissão paterna (seu pai era escultor), Sócrates propunha que todos se esculpissem melhor, quebrantando as formas grosseiras e as opiniões sem fundo racional, lutando, pois, contra os vícios morais. Sócrates afirmava haver um Deus único. E eis a razão de pouco ter se reportado a cousa que fosse diversa e/ou distante da alma humana. Ele cria que a Divindade nos teria colocado mais próximos uns dos outros que das estrelas, por exemplo, para que nos conheçamos primeiro antes de conhecê-las. Ou seja, por imposição lógica, mais próximos que estamos de nós mesmos, é a nós mesmos que devemos primeiro conhecer; em seguida àquilo ou àqueles que mais próximos nos cercam, e assim por diante. Contudo, bastaria conhecer a si mesmo para conhecer todo o Cosmos e a Natureza. Era qual se houvesse na alma humana todo o conhecimento que jaz no universo, enxerto nas almas apenas em estado de latência, pronto para despertar. E o trabalho de Sócrates não era outro, senão o de despertar uma pequena fagulha desse conhecimento que, latente no íntimo de todo e de cada homem, esperava sua eclosão. A razão que subjaz a Natureza encontraria, pois, similar naquela que queima no íntimo dos homens. Daí o porquê de percebermos no espelho da Natureza uma racionalidade, segundo a qual ela se rege, uma Ordem e uma Razão, porque fora segundo a mesma razão e segundo o mesmo regimento que teríamos sido forjados. Afinal, o homem é parte integrante da Natureza, conquanto haja quem se conduza ou pense de forma contrária [51].

Em brilhante metáfora, Atenas seria uma égua preguiçosa, e ele um pequeno mosquito a morder-lhe os flancos para provar que estava viva, intentando fazê-la sair da inércia; sim, porque era em estado de inércia que Sócrates via seu povo, inércia racional, inércia do pensar. Para ele, o motivo de estarmos aqui, neste orbe, é o de aperfeiçoarmos nosso espírito, melhorarmo-nos mais e mais. Afirmava ouvir uma voz interior, de natureza divina, seu Daimon pessoal. De se esclarecer que a palavra daimon grega significa demônio, sendo que para os gregos não havia a palavra anjo, somente cunhada na Idade Média. Assim, havia demônios bons (os quais hoje chamamos anjos) e demônios maus (demônios propriamente ditos). Quando Sócrates se reportava a seu daimon, falava como que a um anjo que lhe dirigia as ações, jamais lhe mostrando o que era certo (mesmo porque, para o pensamento socrático, o que é certo está impresso em nossa alma; caberia, pois, a Sócrates despertar em si mesmo o conhecimento do certo), mas alertando-lhe quanto ao que fosse errado ou moralmente reprovável. A Moral seria absoluta. Contudo, Dela não conheceríamos mais que fagulhas. Assim, não sem motivos, foi que a Pítia (vestal), do oráculo de Delfos, proclamou Sócrates como o homem mais sábio de Atenas, o homem mais sábio dentre o mais sábio povo da época, portanto, o homem mais sábio do mundo. Enfim, em honra a um dos Grandes que por aqui passou, basta dizer que viveu o que pregou, e mais que isso: que viveu antes de pregar. E não podemos, pois, separar a narração dos fatos de sua vida de sua concepção moral, lógica e filosófica [52].

O maior dos discípulos de Sócrates, já dissemos, foi Platão, cujo nome era Aristócles, mas que recebera a alcunha de Platão devido largueza e amplidão de seu conhecimento e/ou à sua notável força física e beleza estética. De Platão, seu principal divulgador, basta dizer que contrapunha o mundo material (físico, sensível) ao Mundo das Idéias (hyperurânio), que as construções materiais nada mais seriam que imagens imprecisas de um molde perfeito, que é o Mundo das Idéias, num paralelo quase que como o de uma fôrma para um bolo, que seria, em última análise, o mundo material (sensível). [53] Assim, tudo na Natureza rumaria para uma perfeição maior, aproximando-se de princípios (arché) ou paradigmas universais, eternos e imutáveis, existentes no Mundo das Idéias. A Divindade (por Platão chamada de Demiurgo) teria plasmado a matéria inerte (chôra), moldando-a à imagem e semelhança do mundo mais perfeito, que é o hyperurânio, ou o Mundo das Idéias. Para Platão, "a atividade humana desde que pretendesse ser correta e responsável, não poderia ser norteada por valores instáveis, formulados segundo o relativismo e a diversidade de opiniões; requeria uma ciência (episteme) dos fundamentos da realidade na qual aquela ação está inserida." [54]

2.1.2 Aristóteles: o pai da ciência primeira

Aristóteles, por seu turno, era discípulo de Platão, tendo sido justamente em bases aristotélicas que se fundou a primeira e mais rudimentar concepção de saber científico [55]. Colhendo os frutos dos pré-socráticos e de todos os filósofos mais que lhes sucederam, Aristóteles fundou a primeira tentativa de organizar e sistematizar a Natureza e o Mundo numa perspectiva racional; em melhor palavra, foi o primeiro pensador a tentar enxergar a racionalidade da estrutura Natural. Enquanto seus antecessores ficavam problemas pontuais, ele intentava abarcar o todo, encontrar uma ordem sistemática para o Cosmos. A visão grega que perdurou na Idade-Média em relação à Terra era, em síntese, a de que ela fosse o centro do universo ao redor da qual tudo giraria (muito embora incontáveis filósofos gregos já houvessem refutado tal pensamento, o qual não atendia aos interesses da Igreja). Observemos que, ao olharmos o céu, a impressão que nos fornece o sentido da visão é a de que nuvens, estrelas, lua e tudo o mais é que giram, estando a terra fixamente posta. Poderíamos dizer, assim, que nossos sentidos nos fornecem dados, muitas vezes, ilusórios. E Parmênides apostava exatamente nisso: que tudo o que se apreende dos sentidos é mera ilusão. A mudança presente na natureza seria, tão-somente, uma informação irreal fornecida pelos sentidos falhos de que nos valemos. Veja-se, foi preciso a perspicácia de um Colombo para notar que a Terra não é achatada, mas arredondada [56] — ou geóide como queiram. "Disse a esse respeito o poeta e ensaísta Paul Valéry: ‘Seria preciso o gênio de Newton para ver que a lua cai, embora toda gente saiba que ela não cai’." [57] Bem vemos que, para percebermos a verdade, pra além dos sentidos, seria necessário um esforço a mais da razão. E é exatamente na razão (e não inadvertidamente nos sentidos) que se vai fundar o paradigma moderno, também chamado newtoniano-cartesiano, como veremos no tópico a seguir.

Ora, Parmênides estava (em parte) certo, ao dizer que nossos sentidos nos fornecem imprecisas impressões do mundo que nos cerca. Afirmar que nada surge do nada é aceitável; de observar-se que tudo o que há surgiu de algo que havia anteriormente. Mas, ao que parece, equivocou-se ao dizer que nada muda, que não há transformação na Natureza. Bem se sabe, todas as coisas surgem de algo que lhes preexista. Contudo, Heráclito estivera certo ao dizer que tudo flui, tudo muda; e isso pode ser percebido pelos sentidos, os quais não são, de todo, presas da aparência. Fundado, por certo, nas divagações de Heráclito, Pascal diria no seu, Pensamentos: "nossa natureza está em movimento; o repouso completo é a morte." Todavia, foi no pensamento Aristotélico (devidamente adaptado pela Igreja) que se fundou a visão de mundo adotada na chamada Idade-Média, calcando todo o saber humano como um subproduto direto e quase que inarredável dos sentidos.

Aristóteles era macedônio de origem, nascido da cidade de Estagira, e, por isso, também conhecido como o Estagirita.

Ao contrário da Academia [de Platão], voltada fundamentalmente para as investigações matemáticas [eis que trazia em seu pórtico dizeres segundo os quais, não deveriam adentrar ao local aqueles que não soubessem Geometria – e o Universo, para Platão, era regido por princípios eternos, universais e imutáveis; e, além disso, matematizável], o Liceu [de Aristóteles] transformou-se num centro de estudos dedicados principalmente às ciências naturais. [58]

Como Platão, Aristóteles "apresenta uma concepção cosmológica de cunho finalista e teológico; mas, ao contrário do que propunha Platão, o universo é aí explicado não à semelhança de uma obra de arte – resultado da ação de um divino artesão, o demiurgo –, e sim como um organismo que se desenvolve graças a um dinamismo interior, um princípio imanente que Aristóteles denomina "natureza" (physis)." [59] Finalmente, de dizermos que, para complementar a visão que Aristóteles tinha da Natureza que, para ele, "o conjunto do universo físico estaria dividido em duas regiões distintas: a sublunar, constituída pelos quatro elementos herdados da cosmologia de Empédocles – a água, o ar, a terra e o fogo – e caracterizada por movimento retilíneos e descontínuos; e a supralunar, constituída por uma "quinta essência", o éter, e caracterizada por movimentos circulares e contínuos." [60]

"Para Aristóteles a lógica não seria parte integrante da ciência e da filosofia, mas apenas um instrumento (organon) que elas utilizam em sua construção." [61] Eis o porquê do conjunto de seus tratados de lógica ter recebido a denominação Organon.

"[Em] a Física, [Aristóteles] examina conceitos gerais relativos ao mundo físico (natureza, movimento, infinito, vazio, lugar, tempo, etc.); [em] Sobre o Céu (De Coelo) e o Sobre a Geração e a Corrupção (De Generatione e Corruptione), [tece] estudos sobre o mundo sideral e o sublunar; finalmente os Meteorológicos, [constitui estudos] relativos aos fenômenos atmosféricos." [62] O seu Tratado da Alma (De Anima) abre a série de livros sobre os seres e o mundo vivo, cuja principal obra é História dos Animais. As obras dedicadas à filosofia teórica ou especulativa, cujo conjunto perfaz catorze livros, a tratar da filosofia primeira, ou dos primeiros princípios e das causas primeiras de toda a realidade, recebem o nome de Metafísica. No campo restrito da filosofia prática temos: a Ética e a Política, sendo que a Ética recebeu diversos nomes: Ética a Nicômaco, por ter sido publicada primeiramente por seu filho, Ética a Eudemo, editada por seu discípulo Eudemo de Rodes, e Grande Moral (Magna Moralia) que seria um resumo da mesma Ética. [63] Todo esse conjunto de obras recebeu o nome de Corpus Aristotelicum e "apresenta o pensamento de Aristóteles com uma feição sistemática, como um vasto conjunto enciclopédico no qual os mais diversos problemas são elucidados de forma aparentemente definitiva. As soluções propostas por outros pensadores são previamente analisadas e criticadas – e dessas críticas Aristóteles parte freqüentemente para a formulação de suas próprias concepções" [64] "Esse levantamento das opiniões dos primeiros pensadores, chamado "doxografia", feito segundo pontos de vista aristotélicos, tornou-se uma das fontes principais para a recuperação das doutrinas dos pré-socráticos." [65] A meta a que visa atingir "pretende conter a razão de ser de todo o itinerário seguido pelas investigações humanas." [66] Eis o cerne de seu pensar.

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"O caráter sistemático que revestiu, desde a Antiguidade, o pensamento aristotélico, certamente contribuiu para que, sobretudo na Idade Média, Aristóteles passasse a ser encarado como a grande autoridade em matérias filosóficas e científicas: era o filósofo, que teria construído uma doutrina de âmbito universal e de validade permanente, intemporal." [67]

"Aristóteles concorda com Platão ao considerar que só pode haver ciência universal (...) A lógica, para não ficar restrita ao domínio das palavras e para atingir a realidade das coisas – constituindo um instrumento para a ciência da realidade – remete, portanto, a especulações metafísicas. As definições buscadas pelo conhecimento científico não devem ser simples esclarecimentos sobre o significado das palavras, mas sim enunciar a constituição essencial dos seres. Definir "homem" como "animal racional" significa, para Aristóteles, mostrar um liame necessário que, no caso da espécie "homem", liga determinado gênero ("animal"), o mais próximo daquela espécie, è diferença específica ("racional"). Justamente porque deve apresentar um elo essencial e necessário entre o gênero e a diferença é que não pode haver, por exemplo, definição essencial de "homem branco", já que "branco" é acidente, ou seja, um atributo não-essencial de "homem". Pela mesma razão não pode haver definição essencial de indivíduos: define-se "homem", mas não se define "Sócrates". Como qualquer indivíduo "Sócrates" pode ser descrito minuciosamente em seus caracteres peculiares – por isso mesmo não universais –, mas não pode ser jamais definido. O individual – Aristóteles concorda com Platão – não é objeto de ciência. (...) Platão, movido pela índole matemática de seu sistema, considerava os objetos particulares e concretos como cópias imperfeitas e transitórias de modelos incorpóreos e eternos, as idéias. Esses universais subsistiriam independentemente de seus reflexos passageiros e apenas aproximados. Aristóteles rejeita a transcendência dos arquétipos platônicos, considerando-os uma desnecessária duplicação da realidade sensível. Para ele, a única realidade é constituída por seres singulares, concretos, mutáveis. A partir dessa realidade – isto é, a partir do conhecimento empírico – é que a ciência deve tentar estabelecer definições essenciais e atingir o universal, que é seu próprio objeto. Toda a teoria aristotélica do conhecimento constitui, assim, uma explicação de como o sujeito deve partir de dados sensíveis que lhe mostram sempre o individual e o concreto, para chegar finalmente a formulações científicas, que são verdadeiramente científicas na medida em que são necessárias e universais. (...) A repetição das observações dos casos particulares permitiria uma operação do intelecto, a indução, que justamente conduzia a um encaminhamento contrário ao da dedução – do particular ao universal. (...) o universal existe apenas no espírito humano, sob forma de conceito, ele não é criação subjetiva: estaria fundamentado na estrutura mesma dos objetos que o sujeito conhece a partir da sensação. Os conceitos reproduziriam não as formas ou idéias transcendentes ao mundo físico, mas sim a estrutura inerente aos próprios objetos: a estrutura básica comum aos diferentes pássaros existentes é que estaria expressa, universalmente, no conceito "pássaro". Mas isso significa que os conceitos utilizados pelas diversas ciências estariam dependentes, em última instância, de uma investigação que fosse além dos respectivos campos dessas ciências e penetrasse a estrutura íntima dos seres enquanto simplesmente são." [68][destaques nossos].

Como vimos, incontáveis foram os legados da Grécia para a humanidade e, como não poderia deixar de ser, para a Ciência. De lá adveio a compreensão de que a Natureza opera regendo-se por leis e princípios necessários e universais, válidos para qualquer espaço e tempo no cosmos, abraçando inexoravelmente a tudo no Universo (arché). Legaram ainda a idéia de que tais leis e princípios necessários e universais são passíveis de serem compreendidos pelo pensamento humano, prescindindo das revelações dos deuses e desprovidos do clima de mistério presente nos mitos. De dizermos ainda que só compreendemos a racionalidade de tais leis e princípios por termos sido engendrados segundo e em conformidade com as mesmas, ou seja, o pensamento humano funciona, igualmente, sob os mesmos parâmetros lógicos e racionais, – uma vez que fazemos parte da mesma criação, engendrados segundo o mesmo princípio originário, a mesma arché (physis) – consistindo tal propugnação no mais claro retorno do homem ao seio da Natureza. Assim pensavam os gregos antigos.

Os gregos teriam sido, de fato, eles mesmos, os verdadeiros deuses a pisar nesta Terra, adorados, desde tempos imemoriais pelo Ocidente e por todo o Globo. Sim, deuses, eis que, sem um punhado de homens gregos que ousaram pensar, optando por construir seus próprios caminhos a aceitar os que lhes eram postos, e, com isso, rasgaram os véus do mito e da ignorância, sem eles, nada do que há sob os céus da percepção humana seria tal qual concebemos hoje!

Mas, como bem se viu, a "ciência" grega possuía alguns vícios que distanciaram o seu saber de um saber científico mais depurado. De observarmos que o excessivo apego à razão em depreciação aos trabalhos manuais (o chamado bom ócio), culminou com o não desenvolvimento da experimentação, tão necessária – senão imprescindível, dizem – a uma melhor delimitação das fronteiras separam o mundo científico das demais áreas do conhecimento.

A natureza era considerada como um poder semi-independente, e quando as coisas aconteciam de acordo com a natureza isso significava que seguiam um modelo que pareceria racional à mente humana, um modelo descoberto por Aristóteles. (...) A ordem regular da natureza era considerada como algo instituído por Deus, embora suscetível de ser anulada por Ele de forma sobrenatural (o termo é significativo), ao realizar um milagre. [69] (sic!)

2.2 O Cair das Trevas?!

Intentando firmar a exposição religiosa em bases racionais, despontaram na Idade-Média a Patrística e a Escolástica, as duas principais correntes filosófico-teológicas da Doutrina Católica; e vale dizer, Cristã. O termo Patrística advém de pater (pai), o qual serve de raiz a patris. Donde o vocabulário revela ter sido a Patrística desenvolvida por "Padres" da Igreja ou pelos Santos "Padres", como se costumava chamar. [70]

Entre os Santos Padres, destacam-se: Tertuliano, Latâncio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e, principalmente, Santo Agostinho. Este último por ser o mais significativo filósofo da patrística merecerá um tratamento diferenciado. Tertuliano acreditava na existência de uma lei comum para todos os homens, que é o Direito Natural. No entanto, devido à corrupção parcial da natureza humana, alguns preceitos naturais foram esquecidos. Necessita, então, o homem buscar restaurar esses preceitos, que emanam de Deus, e são essenciais a uma vida justa e digna. Segundo Latâncio, somente no mandamento de Cristo a justiça adquire sua plenitude: amar a Deus e o próximo. Santo Ambrósio distingue duas naturezas: uma empírica, como se dá na realidade existencial, cheia de falhas; e uma boa, criada por Deus. O homem deve procurar atingir a última, pois essa serve como medida do nosso agir (parâmetro). Percebe-se então, que o direito deve basear-se na natureza divina, nos seus preceitos. São João Crisóstomo, remontando à origem das leis, as aponta na tradição, e que elas se fixam na consciência, sendo claro, pois, que o legislador estabelece suas leis sobre a base da regra que Deus deu ao homem ao criá-lo (os ditames da consciência são reflexos da lei de Deus). Reside nesta lei fundamental a gênese dos tribunais. [71] Suas "principais preocupações são as relações entre fé e ciência, a natureza de Deus, da alma, a vida moral." [72] Santo Agostinho foi o principal expoente da Patrística; responsável igualmente pela retomada da filosofia platônica e sua adaptação a padrões aceitáveis ao pensamento Católico. Notando a incrível similitude entre o pensamento cristão e a Teoria das Idéias, de Platão, o bispo de Hipona, aparando eventuais arestas que afastassem Platão de Cristo, adaptou sua filosofia aos moldes Católicos.

Quanto à noção de Estado, Santo Agostinho apresenta dois conceitos e os confronta: o conceito helênico e pagão que corresponde à civitas terrena, e o conceito cristão que corresponde à civitas caelestis. A primeira povoada por homens vivendo no mundo (Estado Pagão), a segunda composta por almas libertas do pecado e próximas de Deus. O homem deve procurar o estabelecimento da cidade celeste (submissão do Estado à Igreja). Noutro aspecto, Santo Agostinho traça uma diferenciação sutil, contudo, extremamente útil e perspicaz, entre: lei eterna, lei natural e lei humana. Para ele, a lex aeterna de alçada Divina, seria aquela que, absoluta, eterna e imutável, brilha como um sol, fazendo refletir um mar de raios seus nos corações dos homens. De lembrarmos que o pensamento de Santo Agostinho adveio do de Platão, o qual, por sua vez, bebeu na fonte socrática. E Sócrates afirmava ser a alma humana qual um espelho do cosmos, poderíamos assim dizer. Para ele, todas as leis e toda a lógica e racionalidade inerentes ao dinamismo do Universo, encontrariam fácil espelho nos corações dos homens. O conhece-te a ti mesmo de Sócrates culminaria, em última análise, num conhecimento da Criação por inteiro, eis que a sabedoria da Divindade teria colocado todas as respostas dentro de nós mesmos. Cada mínima parte da Criação, incluindo aí o próprio Homem, conteria o germen de todo o edifício cósmico. E hoje, sabemos que uma simples célula epitelial, contém a informação genética para edificar todo o corpo, ou seja, ela possui a informação para reproduzir todos os tipos de células, muito embora só replique a si mesma. Não foi por outro motivo que o bispo de Hipona propôs seja a lex naturalis qual um reflexo da lei eterna no seio do ente criado. Ou seja, a lei natural seria a "gravação" da lei eterna nos corações dos homens. O homem, enquanto parte da Criação, integrante, pois, do Cosmos sem-fim, guardaria em seu seio todas as leis que regem o Universo; bastaria o simples esforço racional do homem para desvendá-las dentro e fora de si, daí podermos dizer que ‘percebemos’ tais leis, e não que as criamos. E só as percebemos porque a mesma lógica com que fora cunhado todo o Cosmos residiria no íntimo de cada ente humano, ou mesmo, em cada parcela menor da Criação. Eis a razão para Santo Agostinho chamar tal lei de lei íntima. Tertuliano, um outro pensador da Patrística, diria que, devido a uma parcial corrupção do gênero humano, muitos dos preceitos naturais teriam sido esquecidos. Bem assim, Santo Agostinho explica que a lei humana seria a manifestação do quantum apreendido pelo homem da lei natural que reside em seu âmago e da imagem siamesa dessa lei, fora dele, a lei eterna. Tanto mais perfeita será a humana lei quanto melhor apreensão se constituir das chamadas lei natural e lei eterna. Para Santo Agostinho, não haveria mal absoluto; havendo, tão-somente, ausência do Bem, distanciamento Dele e, por conseguinte, afastamento de Deus. Não haveria um equilíbrio de forças entre o Bem e o mal, já que o primeiro seria absoluto, enquanto este último contingente e transitório. Ora, se da árvore-boa não podem vir maus frutos, de Deus, a-Boa-Árvore-por-Excelência, não poderia advir o mal. E diante do homo medius muitas condutas tidas como certas ou justas seriam, ante o "parâmetro Crístico", condutas de alta reprovabilidade. Donde deduziria Agostinho, estar o Cristo mais próximo do parâmetro Divino que nós, por exemplo. Tudo seria uma questão de gradação. Tanto mais justa seria uma lei quanto maior proximidade guardasse com paradigmas eternos e imutáveis. Tanto mais perfeito tornar-se-ia o homem quanto mais próximo fosse seu conduzir do modo de agir do Cristo. O livre-arbítrio do homem poderia guindá-lo à Verdade Divina, bem como ao mal, o qual se traduziria como um distanciamento da Mesma. A Justiça consistiria, portanto, no respeito à vontade divina para a apreensão mais depurada possível da Verdade. A Natureza seria uma manifestação imperfeita do Mundo das Idéias (Hyperurânio, Mundo Espiritual), como o Homem seria uma fugaz lembrança de sua alma, no entender de Agostinho [73]. Santo Agostinho escreveu ainda ‘Contra os Acadêmicos’ e expôs a teoria de que os sentidos dizem algo verdadeiro, reabilitando-os como fonte de verdade. O erro proviria do juízo que fazemos das sensações, e não delas próprias. A sensação não seria falsa, o que seria falso é querer ver nelas uma verdade externa ao próprio sujeito. A sensação enquanto tal jamais seria falsa, segundo Agostinho [74].

A Escolástica, por sua vez, consistia na tentativa de dar fundamentação aos dogmas religiosos por meio da concepção de racionalidade aristotélica. São Tomás de Aquino constitui o principal nome da Escolástica, tendo sido o responsável pela adaptação do racionalismo aristotélico à Igreja de modo similar ao que fez Santo Agostinho com Platão. E não fosse a prevalência de São Tomás sobre Agostinho, teríamos todo o pensamento Ocidental calcado em bases outras [75].

Santo Tomás afirma, contradizendo mesmo o pensamento comum, que a construção racional de Aristóteles não guarda grandes antagonismos com as concepções dogmáticas da Igreja, inobstante não tenha conhecido a revelação cristã e o fato de sua obra estar pautada em um saber estritamente racional e mesmo antagônico a qualquer dogmatismo, ela estaria – segundo São Tomás – perfeitamente em consonância com o saber revelado pela fé contido na Bíblia. Afirma ainda que na essência reside a igualdade e que as desigualdades são meramente acidentais e fadadas a findarem com correr do tempo. ‘Sede perfeitos como o Pai’, eis o imperativo e o destino dos homens. Iguais na criação (criados simples e ignorantes) e fadados à igualdade final (perfeição). A essência de tudo o quanto há seria, para Santo Tomás, imaterial, possuindo forma, enquanto que a "substância composta" possuiria forma e matéria. A alma, por seu turno, seria imortal posto que imaterial. Tal essência seria passada por Deus e igualmente com ela uma capacidade natural de distinguir o certo do errado, o justo do injusto, o bom do mau. Nisso residiria o direito natural e a idéia de moral autônoma (íntima). [76]

A lei eterna seria, em sua concepção, a Razão (Divina) que coordena todo o Cosmos. Deus não agiria na criação, antes teria engendrado o Universo em conformidade com leis (eternas e imutáveis) e que tais leis — perfeitas como o Ente que as possui despertas em si — bastariam para bem reger toda a Criação. Tal concepção da ordem universal põe por terra a existência de milagres, a quebra das leis que a tudo regem. O dito sobrenatural e miraculoso, como já se expôs, constituiria somente denominação (impropriamente) dada àquilo que desconhecemos; muito embora, a lei natural, nos mesmos moldes que em Santo Agostinho, seja o reflexo da lei divina no homem. Seu maior imperativo seria o de conhecê-la, posto em a conhecendo, conheceria o Criador. As Leis regem; Elas são invioláveis. Não há exceções, milagres ou quebras das mesmas. As nossas leis nada mais seriam que aproximações Daquelas. O que se afiguraria como uma quebra de Leis não traduziria cousa outra que não o nosso conhecimento parcial, imperfeito e falho Delas. [77] Tal teria sido o que ocorreu com Galileu, ao julgar que a inércia dos corpos terrenos fosse uma quebra da lei de movimento dos corpos celestes, desconsiderando o modo de atuar da mesma Lei em circunstâncias diversas (atmosfera terrena e vácuo). Ora, afirmar que há Leis (entenda-se, absolutas) não é o mesmo que afirmar que as conheçamos. O propugnar que as leis humanas fossem prolongamentos válidos das eternas engendrou também os mais odiosos abusos por parte dos povos. Foi calcado em tal idéia que se fundamentou o Nazismo e é calcado em tal idéia que campeia a dominação meramente dogmática e desprovida de bom senso. Se se quer dar crédito, repitamos, em interpretação mais prudente a Santo Agostinho e São Tomás, que as humanas leis nada mais são que apreensões imperfeitas das Eternas; e, enquanto permeadas de imperfeição, igualmente passíveis de falibilidade. E, uma vez mais, abrindo-se o abismo entre o que É e as convenções humanas, que só viria a ser percucientemente abordado com Kant em seu, A Crítica da Razão Pura [78]. O certo é que perdurou aí um paradigma científico, calcado em bases aristotélicas, e que previa uma alguma aproximação entre o homem e a natureza, eis que as Leis encontrariam assento no ente racional, residindo nisso a plausibilidade de que possamos compreender as Leis (eternas, universais e imutáveis) que regem o Cosmos.

2.3 Modernidade: Um Novo Antropocentrismo (?!) – A Luz sob o Alqueire

2.3.1 A invenção (?!) da Ciência enquanto modelo convencionalmente aceito de representação da Natureza:

Deu o Homem o nome krónos (tempo, em grego) ao que de abstrato rege a mudança no mundo da matéria, ao que flui e faz correr consigo as leis do devir. [79], ao que precedeu ao Homem, mas – cremos – só teria sido visto como tal, após o Homem; ou ao menos após o Homem ter galgado uma razão que compreendesse Aqueloutra que subjaz a dimensão temporal. O tempo precede, acompanha e possibilita a vida de tudo o quanto está presente naquilo que Platão chamara mundo sensível, desde o seu surgimento até a sua destruição. Consubstanciaria, ele mesmo, aliás, o próprio surgimento e a inexorável destruição, condição singular de tudo o quanto jaz sob sua égide. Ele nos precede, acompanha-nos e, por certo, nos excederá; todavia, só teria sido visto como tal pelo olhar racional, só seria o que é pela vistas daqueles que, dotados de razão, encontram-se sob seu jugo (e, se possível for, fora dele, um dia).

A ciência, como tudo o quanto há na dita dimensão temporal, também há de haver surgido em dado momento, ainda que esse pretenso surgimento se aplique, tão-somente, à percepção e à razão humanas, eis que, conforme a abordagem objetivista axiológica, já expressa em linhas supra, o tempo, enquanto objeto de apreciação humana, não teria alterada qualquer das características que de fato efetivamente tenha, pela simples visão humana pesar sobre ele, ou pela melhor ou pior percepção (apreensão da idéia) que dele tenhamos, o qual, mesmo que sequer tivéssemos existido, ainda persistiria a correr inadvertidamente quanto isso.

Em tais termos, melhor seria dizer que o Homem também somente descobriu ou percebeu a Ciência em certo grau de sua maturidade evolutiva sobre a Terra, não cabendo aqui a palavra criação. E, tendo fincado o presente labor nas bases cunhadas pelo gênio grego (sobretudo Parmênides, Heráclito, Sócrates, Platão e Aristóteles), a qual Antoine Laurent Lavoisier, baseado em reações químicas, condensara, com sua Lei de Conservação da Matéria, segundo a qual: "na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." Bem assim, o homem jamais teria efetivamente criado, no sentido adequado do termo [80], mas apenas percebido. A matéria está e sempre esteve aí para que com ela o Homem labutasse. O simples deitar de idéias e pensamentos sobre ela permite modificá-la, torná-la mais apta aos fins que lhe quer dar o Homem, o que não o habilita a dizer de si que cria o que quer que seja, apenas molda, modifica e transforma, conforme seja o depurar de seu pensamento e a aptidão de suas mãos ou os instrumentos de que se utilize — sendo que até mesmo estes últimos são frutos, também, de uma modificação da Natureza. Assim, mais prudente e acertada visão seria a de que mesmo a Ciência não fora criada pelo Homem, antes por ele percebida, qual uma racionalidade que subjaz a tudo o que existe no Cosmos, eis que foi percebendo o que de racional há nas estruturas da Natureza que o Homem erigiu a sua Ciência.

Porém, mesmo que neste prisma mais restrito que ora delineamos, a Ciência há de haver "surgido" (ainda que a nossos olhos) em dado contexto e momento, e com certas características próprias, mesmo que em sua forma rudimentar. Nos termos acima propostos, – e eis a nossa hipótese – podemos dizer, ainda, que a Ciência não está posta, que ela não está colocada de forma definitiva e final, e que, portanto, não é perfeita, mas perfectível, qual o Homem. Eis que ela muda e cresce e se modifica e progride, tendendo à perfeição a que tanto almeja. E digamos mais, não que este dizer seja inferição lógica dos acima expostos, mas que se sobrepõe e sucede sistematicamente ao anterior, que a Ciência não encerra a única, tampouco a mais perfeita visão da realidade, apenas uma das quais — se enfeixadas em conjunto — poderia nos legar melhor percepção do real, conforme reza a recente tendência a uma visão holística do pensamento (Teoria de Hólon, de Arthur Koestler), a qual figurará em análise mais percuciente em momento propício.

De rendermos crédito à prudente conclusão do Sociólogo e professor, Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual:

A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos fenómenos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação científica dos fenómenos é a autojustificação da ciência enquanto fenómeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica (...) A consagração da ciência moderna nestes últimos quatrocentos anos naturalizou a explicação do real, a ponto de não o podermos conceber senão nos termos por ela propostos [81].

E, se não a criamos mas apenas percebemos, o doutor em Física, Paul Davies (1986), em seu "Deus e a Nova Física", diria:

A ciência só é possível porque vivemos num universo ordenado, que se conforma com leis matemáticas simples. A tarefa dos cientistas é estudar, catalogar e relatar a ordenação da natureza, não indagar a sua origem. Mas os teólogos têm argumentado, desde há muito, que a ordem do mundo físico é uma prova da existência de Deus. Se isso assim for, então a ciência e a religião adquirem um objectivo comum que é revelar a obra de Deus. Na realidade tem-se afirmado que o aparecimento da cultura científica ocidental foi efectivamente estimulada pela tradição judaico-cristã, com sua ênfase na organização intencional do cosmos por Deus - uma organização que poderia ser discernida pelo uso da pesquisa científica racional [82] (sic!).

E completa, em outro ensaio seu, a dizer:

Por que razão nasceu a ciência na Europa? Na época de Galileu e Newton a China era muito mais avançada tecnologicamente. Contudo, a tecnologia chinesa (como a dos aborígenes australianos) foi alcançada por tentativa e erro, refinados ao longo de muitas gerações. O boomerang não foi inventado partindo da compreensão dos princípios da hidrodinâmica para depois conceber um instrumento. A bússola (descoberta pelos chineses) não envolveu a formulação dos princípios do magnetismo. Estes princípios emergiram da (verdadeira, segundo a minha definição) cultura científica da Europa. Claro que, historicamente, surgiu também alguma ciência de descobertas acidentais que só mais tarde foram compreendidas. Mas os exemplos mais óbvios da verdadeira ciência — tais como as ondas de rádio, a energia nuclear, o computador, a engenharia genética — emergiram, todos eles, da aplicação de uma compreensão teórica profunda que já existia — muitas vezes há muito tempo — antes da tecnologia que se procurava [83] [grifos nossos].

Através da mera tentativa e erro foi que muitos povos cunharam técnicas para si, as quais, em se revelando verdadeiras, constituíram-se tão úteis ao lidar do homem com a Natureza quanto àquelas provindas de um conhecimento científico. Então, qual seria, pois, a característica a poder diferençar o produto dessas sabedorias do conhecimento científico, quando ambas atingem resultados (utilitariamente falando) tão similares? Ora, sabemos que não bastou, porém, que um xamã de uma tribo indígena qualquer, através de incontáveis tentativas e erros, perpassando diversas gerações, descobrisse o poder de cura de dadas plantas, para que lá surgisse o conhecimento científico. Se é que o conhecimento do referido xamã foi engendrado assim, por tentativas e erros, dado que os indígenas das Américas conheciam quase quinze vezes mais plantas medicinais que a Europa à mesma época – um número bastante expressivo, para dizer pouco. É que imaginando um tal processo de descoberta, concluiríamos que culminaria num prognóstico de mortes incontáveis a cada tentativa que se sucedesse em erro. Cada tentativa aleatória que fosse efetuada no intuito de descobrir o poder curativo de dada erva, causaria perdas inumeráveis, uma vez que, certamente, haveriam de se deparar com plantas venenosas e, para saber seu potencial lesivo ou curativo, haveriam de testar em alguém, em animais talvez. Como vimos, essa forma de perceber a realidade (que denominamos científica) surgiu com a apreensão dos princípios que regem dados fenômenos. O saber científico surgiu da percepção dessas leis e da interligação das mesmas umas com as outras formando teorias. No exemplo dado acima, o conhecimento obtido por um xamã acerca do poder de cura de dadas ervas adviria de muitas tentativas práticas e — até onde possamos dizer — aleatórias, das quais se obteria, a posteriori, um saber teórico. Já com o conhecimento científico a faceta teórica do conhecimento é obtida a priori, sendo que sua maior "utilidade prática", ou mesmo a tecnologia necessária, muitas vezes, só vem a ser "descoberta" anos e anos depois, qual se deu com a genética, de Gregor Mendel [84]. Assim, um saber científico adviria de primeiro descobrir os ‘princípios-chave’ do saber, para, com isso, vislumbrar sua aplicabilidade geral (ou mesmo universal). O conhecimento científico pré-existe, pois, à sua aplicabilidade técnica, enquanto, com outras formas de saber (eminentemente empíricas), a técnica viria primeiro. Platão e Aristóteles – já vimos – de há muito haviam dito não haver ciência sem pretensões universais, advindo tal conclusão de uma ordem pré-existente no Mundo Natural, a que o Homem, tão-somente, percebe e vislumbra. Doutro modo, acabaríamos como Crátilo, a desdenhar toda e qualquer tentativa de conhecer o real, como inútil e fugaz [85].

2.3.1.1 Determinismo Mesológico (?!) e o Papel da Intuição na Percepção das Leis Naturais:

Eis o que diferenciaria o conhecimento vulgar do conhecimento científico: no primeiro a técnica surge desprovida de saber teórico prévio, engendra-se ametódicamente por meio de inúmeras e aleatórias tentativas, advindo da simples experiência; já o saber científico perquire, antes do advento da técnica, as semelhanças entre os fenômenos, averiguando a existência de princípios comuns que os regem. Mas por que isto se deu inicialmente na Europa do século XVII e não em outro lugar do globo, na China, por exemplo? O surgimento da ciência muito deveu, pois, ao contexto social, econômico, político e cultural em ebulição, à época, na Europa. Diríamos que, assim como as leis que atuam na Natureza, os saberes não se encontram indissociados entre si. E se não se poderia interpor um muro de concreto entre o saber científico e os demais saberes, não se poderia fazer o mesmo entre este e o contexto sócio-político-econômico do período em que fora sendo construído. Digamos mais: como não pode haver cisão absoluta entre o pesquisador e o objeto de sua pesquisa, não pode havê-la igualmente entre a Ciência e as ciências ou entre a Ciência e o contexto em que fora cunhada. Aliás, seu surgimento muito mais dependeu da conjuntura em que surgiu do que um olhar apressado possa julgar. A Ciência, como a conhecemos, é produto de uma época, a visão de mundo que aquela sociedade escolheu como a tradução do que julga verdadeiro, real e natural. É exatamente o que nos confirma o filósofo da ciência e pós-doutor em Epistemologia [86], Hilton Jupiassu (1981):

"A ciência", se não nasceu na China, mas na Europa do século XVII, não foi porque os chineses não tivessem tido a idéia de experimentação ou porque teriam imaginação curta, mas porque, socialmente, não possuíam as condições favoráveis à sua emergência, posto que viviam num feudalismo burocrático que não comportava a existência de uma classe de negociantes. [87]

As idéias, as tradições filosóficas, as técnicas e a tecnologia chinesas eram, em muitos aspectos, superiores às da Idade Média européia, o que tornaria perfeitamente plausível tivessem eles percebido uma noção de mundo científica, uma noção de interconectividade entre os fenômenos vários a que observavam, um rudimento, pois, de pensamento "mecanicista". Todavia, faltou-lhes algo. O homem ainda é movido por interesses. E foram interesses que deram o motor necessário ao surgimento da ciência como a conhecemos hoje. Nem sempre, porém, eles foram os mais nobres, isentos e despojados.

Jupiassu (1981) e Davies concordam neste aspecto e fornecem maiores esclarecimentos acerca do mesmo, ao dizerem que:

As razões que determinaram que tenha sido a Europa a dar à luz a ciência são complexas, mas têm certamente muito a ver com a filosofia grega e a sua noção de que os seres humanos podiam alcançar uma compreensão do modo como o mundo funciona por intermédio do pensamento racional, e com as três religiões monoteístas — o judaísmo, o cristianismo e o islamismo — e a sua noção de uma ordem na natureza, ordem essa que era real, legiforme, criada e imposta por um Grande Arquitecto. Apesar de a ciência ter começado na Europa, é universal e está agora à disposição de todas as culturas. Podemos continuar a dar valor aos sistemas de crenças das outras culturas, ao mesmo tempo que reconhecemos que o conhecimento científico é algo de especial que transcende a cultura. [88] [destaque nosso].

As condições históricas reais que possibilitaram o nascimento da Ciência Moderna foram: o surgimento do primeiro capitalismo, o progresso do sistema bancário, a aceleração rápida da técnica (de navegação, das minas, da artilharia, da imprensa), a promoção social dos "engenheiros" e dos artistas, as grandes expedições marítimas, a Reforma e a Contra-Reforma, etc. Eis o solo real sobre o qual nasceu a ciência moderna. [89]

Bem, muito já mencionamos acerca de não se poder separar o pensamento do homem de ciência do mundo em que vive, não havendo como pretender cisão plena entre um e outro. Exemplo mais pungente não haveria que o de Arquimedes, como nos exortam as professoras Maria de Lúcia Arruda Aranha e Maria Helena Pires (1986):

Quando Siracusa, sua cidade natal, encontrava-se assediada pelos romanos, Arquimedes, para ajudar a defendê-la, construiu engenhos mecânicos (catapultas) para lançar pedras que surpreenderam os exércitos inimigos e também incendiou navios que sitiavam a cidade, por meio de um sistema de lentes de grande alcance. Por meio dessa atividade técnica, pôde descobrir princípios fundamentais da mecânica (observe a passagem do nível puramente técnico ou prático para o nível teórico e científico). (...) Um exemplo conhecido é o caso da coroa do rei. Arquimedes, chamado para verificar a suspeita de que o ourives teria inescrupulosamente substituído parte do ouro por prata, e não podendo derreter a coroa, pensou muito no problema. Um dia, ao entrar na banheira e observar o conseqüente deslocamento de água, teve a famosa "intuição súbita" de um dos mais fecundos princípios da hidrostática, que consiste em saber que o peso da água deslocada por um corpo imerso é igual à força de empuxo que o líquido aplica no corpo. [90] [destaques nossos]

Como vemos, intuição e necessidade hão guiado sempre os grandes gênios científicos, desde Arquimedes, passando por Newton, e até mesmo Einstein. A intuição não encontra, porém, assento preciso em quaisquer áreas do saber humano. Muita vez, sequer merece menção dentro dos quadros da ciência, quando fora ela, a intuição dos grandes gênios, que permitiu inúmeros avanços, outrora intangíveis. E a Ciência Moderna teima em querer cindir o pesquisador, o cientista, da pesquisa que realiza, como não fosse, ele também, parte da experiência. Despreza o papel da intuição e/ou dos juízos valorativos, quando não se pode separar, no Homem, o racional do emocional, como não podia Arquimedes separar o ouro da prata na coroa do Rei, sem destruí-la.

Acerca do lugar próprio que cabe à intuição, Fritjof Capra (1995), em o "Tao da Física", afirma:

Considero a ciência e o misticismo como manifestações complementares da mente humana, de suas faculdades intelectuais e intuitivas. O físico moderno experimenta o mundo através de uma extrema especialização da mente racional; o místico, através de uma extrema especialização de sua mente intuitiva. As duas abordagens são inteiramente diferentes e envolvem muito mais que uma determinada visão de mundo físico. Entretanto, são complementares, como aprendemos a dizer em Física. Nenhuma pode ser realmente compreendida sem a outra; nenhuma pode ser reduzida à outra. Ambas são necessárias, suplementando-se mutuamente para uma compreensão mais abrangente do mundo. Parafraseando um antigo provérbio chinês, os místicos compreendem as raízes do Tao mas não os seus ramos; os cientistas compreendem seus ramos, mas não as suas raízes. A ciência não necessita do misticismo e este não necessita daquela; o homem, contudo, necessita de ambos. A experiência profunda da mística é necessária para a compreensão da natureza mais profunda das coisas, e a ciência é essencial para a vida moderna. Necessitamos, na verdade, não de uma síntese, mas de uma interação dinâmica entre intuição mística e a análise científica. (...) o reconhecimento das semelhanças entre a física moderna e o misticismo oriental faz parte de um movimento muito maior, de uma mudança fundamental de visões de mundo, ou paradigmas, na ciência e na sociedade, que agora estão se manifestando por toda a Europa e América, e que implica uma profunda transformação cultural. Esta transformação, esta profunda mudança de consciência, é o que as pessoas sentiram intuitivamente nas últimas duas ou três décadas, e é por isso que O Tao da Física tangeu uma corda tão sensível.[destaque nosso] [91]

Na Grécia tínhamos o bom ócio, o labor intelectual era supervalorizado em relação aos trabalhos manuais, o que facilitou – muitos diriam que determinou mesmo – o surgimento de todo o gênio grego, mas, igualmente, foi o que impediu aos gregos de pensarem em moldes de experimentação, o que viria a ser a base de toda a Ciência Moderna – enquanto elemento que garantia a reprodução dos fenômenos em condições similares. Na chamada Idade Média, o regime servil não divergia muito da escravidão grega, o que igualmente influenciou o modo de pensar e a ciência da época. Haveria como que uma indissociabilidade entre a produção científica de dada fase e os interesses em jogo durante a mesma. Como já afirmamos, houve uma mudança paradigmática a se processar entre as chamadas, Idade Média e Idade Moderna. Mudança esta, senão guindada pelo capitalismo nascente, ao menos principiada conjuntamente com ele, sendo ambos os fatos reflexos de uma leva de mudanças maior, a qual culminará em conseqüências de tal modo semelhantes, que se cogitaria — talvez mui certamente — tratar-se de uma só mudança e de um só processo.

Em verdade, tudo o que se chamou teocentrismo em período anterior, nada mais era que um antropocentrismo mascarado. A sutileza de se colocar a Terra como centro do universo e de supor todas as preocupações do infinito serem voltadas a seres tão pequenos diante da imensidão negra do Cosmos polvilhada de infinitas estrelas, infinitos sóis, e de tamanhos tão mais vários, não seria outra coisa senão mascarar um antropocentrismo velado. Com a Modernidade, porém, este antropocentrismo às nuas deixa bem maior abertura à livre reflexão, donde não mais o Deus (cunhado à imagem e semelhança do homem, diga-se) seria a medida de todas as coisas, mas o Homem efetivamente passa a querer sê-lo. O paradigma anterior (ao menos em suas feições eclesiásticas) punha as explicações para tudo no mistério, o paradigma moderno, por sua vez, deixa aberta a possibilidade do conhecimento, sendo o mesmo resultado do esforço e do trabalho, rendendo claros votos ideológicos ao capitalismo recém-nascido. Laissez faire, laissez passer [92], repetiram os homens de ciência o brado da burguesia emergente. E o apego burguês aos interesses práticos, ao lucro que se pudesse auferir com a ciência, teriam feito com que um dado saber, para se dizer científico, devesse ser provado na fornalha da experimentação, sob método propício e convencionado. A observação metódica da Natureza passou a ser o estandarte maior da Ciência, em detrimento da especulação puramente racional. O universo concebido como escrito em linguagem matemática poderia e deveria ser medido, desmontado e remontado. E a tal ponto que há quem diga até não haver ciência sem medição.

Com o Renascimento, inúmeras foram as fronteiras em que se operaram as referidas mudanças paradigmáticas. Houve o advento do humanismo; a propugnação do individualismo (donde se apregoava a igualdade, todavia, tal igualdade não unia, antes apartava); surgiu também o experimentalismo (a razão não poderia estar dissociada da experimentação, da reprodução dos fenômenos observados em condições dadas); concedeu-se demasiada importância ao método científico, e, notadamente, o predomínio da razão (jamais dissociada da experimentação fulcrada na observação). A ciência, apartando-se dos rigores do racionalismo grego, passou a valer-se da observação e da experiência como elemento de validação do saber tido como científico. O advento da técnica promovia, assim, a modificação da realidade e da natureza; servindo, pois, de instrumento eficaz a melhor conhecê-las e dominá-las.

Galileu em sua obra Duas Novas Ciências intentava verificar a correspondência, ou não, entre o purismo racional e a realidade, concluindo a favor da imprescindibilidade da experimentação.

Galileu não só ridiculariza e ataca a teoria aristotélica tradicional dos elementos, mas propõe uma alternativa metodológica baseada na observação e no experimento como principal critério da verdade. É interessante o uso de experimentos para refutar argumentos verbais apresentados pela teoria aristotélica. [93]

"Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do conhecimento vulgar, são ilusórias." [94]

Em conformidade com essa mesma linha de pensamento Galileu assevera em seus escritos:

Penso que discussões sobre problemas da Física devem tomar como ponto de partida não a autoridade de passagens das Escrituras, mas, sim, experiências sensíveis e suas necessárias demonstrações. Deus não é revelado com menor excelência nos atos da Natureza do que nas afirmações sagradas da Bíblia. [95]

Como vemos, a Modernidade propõe – o que, em alguma monta, foi decerto um avanço – uma completa cisão entre o labor científico e as demais áreas do atuar humano, seja suprimindo-se ao purismo racional dos gregos ou ao dogmatismo que era imposto pela Igreja.

Ora, a demarcação de um método, dito científico, é que definiria o que seria ciência e o que não seria. Tal foi o que propugnara Francis Bacon. O método e a experiência tanto foram enaltecidos que as preocupações com a razão e o transcendente terminam por quase desaparecer dos meios científicos. No livro I de seu Novum Organum (Aforismos sobre a Interpretação da Natureza e o Reino do Homem), Bacon (1999) declara: "O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos e pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais." [96]

Nada mais fez Bacon que desabonar o papel da razão no processo do conhecer, firmando toda a possibilidade do saber no simples debruçar-se sobre a Natureza e no dominá-la (não como parte dela, mas como seu senhor), tamanho foi o papel que dado à experimentação. E aí o distanciamento máximo do Homem frente à Natureza: a experimentação requeria uma certa abstração, um não-apostar juízos de valor em relação ao objeto analisado. A olhos vistos, a culminância das mudanças processadas no Renascimento se deu, sobremaneira, no tocante ao método. E é exatamente sobre o primado do método em matéria de ciência que Karl Popper (1987) ousa afirmar:

Começo, regra geral, as minhas lições sobre Método Científico dizendo aos meus alunos que o método científico não existe. Acrescento que tenho obrigação de saber isso, tendo eu sido, durante algum tempo, pelo menos, o único professor desse inexistente assunto em toda a Comunidade Britânica. (...) Tendo, então, explicado aos meus alunos que não há essa coisa que seria o método científico, apresso-me a começar o meu discurso, e ficamos ocupadíssimos. Pois um ano mal chega para roçar a superfície mesmo de um assunto inexistente. [97] (sic)

Tal afirmação tem certa razão de ser em face de que o método passou a tomar ares de fim último da ciência e não – o que precisamente é – somente um meio para alcançar as verdades a que a ciência pode fornecer. Ainda hoje, porém, pensamento similar é endossado pelos "homens de ciência". Reduzir a ciência ao método por ela utilizado assimila-se, em linhas gerais, ao mesmo rigorismo racional dos gregos ou ao dogmatismo da Patrística e Escolástica, com a diferença apenas do pilar em que se sustenta. E o que era luz verteu-se em treva, o que era meio, fez-se fim último. Deita mais prudente palavra o professor, PHD em Física, José Andreeta, ao dizer:

As teorias científicas são, no entanto, importantes em diversas etapas do nosso desenvolvimento. Elas, por exemplo, podem ser comparadas a um barco que utilizamos para atravessar um rio. Mesmo que não tenha sido construído por nós, ele é importante para ajudar a nossa travessia. Depois que chegarmos novamente em terra firme, no entanto, ele não possui mais utilidade para a nossa jornada, podendo inclusive dificultá-la. Ele deve, portanto, ser deixado à margem para ser utilizado por quem dele ainda precisar! [98]

2.3.2 Do Método Científico e do Mecanicismo a imperar na Ciência Moderna:

Muito falamos até aqui sobre o método; pouco, porém, sobre o que ele vem a ser. "Etimologicamente, método vem de meta, ‘ao longo de’, e hódos, ‘via, caminho’. É a ordem que se segue na investigação da verdade, no estudo feito por uma ciência, ou para alcançar um fim determinado." [99] Método científico seria "um conjunto de concepções sobre o homem, a natureza e o próprio conhecimento, que sustentam um conjunto de regras de ação, de procedimentos prescritos para se construir conhecimento científico" [100]; "é um procedimento regular, explícito e passível de ser repetido para conseguir-se alguma coisa, seja material ou conceitual" [101] "um conjunto de procedimentos por intermédio dos quais a) se propõe os problemas científicos e b) colocam-se à prova as hipóteses científicas" [102]

Não só o método, mas a visão de mundo fornecida pela Ciência ganharia, da Modernidade em diante, nuances mecanicistas, cuja influência inicial teria vindo de Descartes, ou pelo menos da interpretação que deram a seu pensamento. Mas o que viria a ser esse mecanicismo proposto pela ciência moderna. Ora, a ciência moderna adicionou ao pensar aristotélico a experimentação. Para a ciência aristotélica teria bastado a proposição racional da ordenação do cosmos, para que ela fosse aceita; já, para a ciência moderna, toda e qualquer proposição só encontra fundamento se puder ser provada através da experimentação, ou seja, se houver a possibilidade de que os fenômenos analisados possam, em condições idênticas, serem passíveis de reprodução e repetição universalmente válidas [103]. Todavia, mesmo a ordem universal, sustentada por Aristóteles e proposta pelos pré-socráticos, enquanto critério garantidor da possibilidade de que se conheça algo da Natureza, foi modificada pela ciência moderna, na figura do mecanicismo. Para os gregos a natureza era qual um organismo, já a ciência moderna vê a Natureza como uma máquina. E apregoa isso, alegando-se fulcrada em Descartes, quando o mesmo já havia alertado em sua obra, O Discurso do Método, para os perigos de que viessem a dizer ser seu tal ou qual argumento, ou sua tal ou qual idéia, assim se expressando:

O que é tão verdadeiro nesta matéria que, apesar de haver muitas vezes explicado alguns de meus conceitos a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las muito claramente, contudo, quando as repetiam, percebi que quase sempre as mudavam de tal maneira que já não podia considerá-las minhas. Com essa intenção, prezo muito pedir aqui, às futuras gerações, que jamais acreditem nas coisas que lhes forem apresentadas como provindas de mim, se eu mesmo não as tiver divulgado. E não me surpreendem de maneira alguma as extravagâncias que se atribuem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo, por isso, que seus pensamentos tenham sido muito disparatados, porquanto eram os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal referidos. [104] [destaque nosso]

Para Descartes, da dúvida e da negação é que se conheceria o saber verdadeiro, ou seja, pondo em questão tudo o que se julgava saber, é que se poderia averiguar quais conhecimentos persistiriam como reais e fundados [105]. E, com fulcro em igual princípio, é que Karl Popper desenvolvera a tese da falseabilidade (refutabilidade), segundo a qual um conhecimento só se enquadraria no gênero científico, se contra o mesmo se pudesse elaborar tese contrária, do contrário, se trataria de dogma, mera imposição de opinião, doxa, portanto [106].

E, se se quer dar crédito, é prudente a análise de Descartes, in locu, como fora por ele próprio sugerida:

E, como a grande quantidade de leis fornece com freqüência justificativas aos vícios, de forma que um Estado é bem mais dirigido, quando, apesar de possuir muito poucas delas, são estritamente cumpridas; portanto, em lugar desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tomasse a firme e inalterável resolução de não deixar uma só vez de observá-los: (...) O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele. (...) O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. (...) O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. (...) E o último, o de efetuar em toda a parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir. (...) Mas a ordem que guardei nisso foi a que segue. Em princípio, procurei encontrar os princípios, ou causas primeiras, de tudo quanto existe, ou pode existir, no mundo (...) [107]

O mecanicismo se teria fundado exatamente no dizer de Descartes, segundo o qual se deveria "repartir cada uma das dificuldades que (...) [se] analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las." [108] A ciência moderna teria olvidado, porém, em alguma proporção, o ter de "conduzir por ordem (...) [os] pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para [elevar-se], pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros" [109], eis que desprezou o conhecimento do complexo e do composto, abandonando a metafísica, os saberes humanos, sociais e culturais. "Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas." [110] Em contrapartida, causa estranheza que a ciência moderna se diga fulcrada em Descartes, negando, a um só tempo, as abordagens metafísicas, quando, "Descartes, por seu turno, vai inequivocamente das ideias para as coisas e não das coisas para as ideias e estabelece a prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência." [111] Feyerabend (1989), em seu Contra o Método, nos aclara que:

Todas as teorias do saber [científico] decorrem da pergunta: que é conhecimento e como ele pode ser conseguido? (...) Em conseqüência, o contato entre a Ciência e a epistemologia torna-se mais tênue e, finalmente, desaparece por completo. (...) Ninguém reconhece que podem existir formas várias de conhecimento e que talvez seja preciso fazer uma opção. [112]

Conforme a óptica cartesiana, haveria dois pólos, duas substâncias primordiais no Universo, quais sejam: matéria e espírito. Tamanha seria a disparidade entre as naturezas de ambos os pólos, que a ciência moderna os tomou como imiscíveis e propôs que jamais interagissem, nada havendo de racional ou justificável nessa proposição, senão sendo isso apenas um dogma ideológico a mais da ciência moderna. Pela observação conscienciosa, seguida da experimentação, poderíamos conhecer as leis que regem a matéria, mas não se poderia dizer o mesmo das leis que regulam os fenômenos do espírito, o que teria oposto severa dúvida quanto ao podermos labutar com o segundo pólo. Foi então, por esse motivo, que a ciência moderna abandonou as lides metafísicas, e as de cunho humanista, social e psicológicas, entre outras mais, tomando aquilo que não se pautasse conforme os métodos e padrões da ciência moderna como não-científico (em regra o não-matematizável e o não-quantificável). Eis que o princípio material seria passível de compreensão, já o princípio espiritual não poderia (nas condições que pressupunha Descartes, diga-se) ser conhecido. A Modernidade — reflexo, em grande parte, de apropriações e modificações dos pensamentos de Descartes e de Newton — cunhou, assim, um paradigma mecanicista para aquilo que se poderia apreender da realidade. A Natureza seria fracionável em partes diminutas a serem analisadas em suas especificidades, quase que desprezando por completo o todo. Como escrevem os professores Goode e Hatt, "o universo apresenta uma variedade infinita de fenômenos a serem estudados, mas a ciência abstrai da realidade selecionando certos aspectos do fenômeno (como massa, velocidade, valência, intensidade de atitudes, etc), não estudando assim todo o fenômeno" [113], não estudando, pois, o real, apenas uma parcela sua.

Einstein e Infield (1943) também trazem à baila um pensamento que ainda estreitamente ligado a uma visão mecanicista de mundo, resumindo-a por assim dizer, contudo, ainda assim expressando uma ema consciência das limitações desta forma de ver o mundo e a realidade:

Em nosso esforço para compreender a realidade, a nossa posição lembra a de um homem que procura adivinhar o mecanismo de um relógio fechado. Este homem vê o mostrador e os ponteiros, ouve o tic-tac, mas não tem meios de abrir a caixa que esconde o maquinismo. Se é um homem engenhoso, pode fazer idéia do mecanismo responsável por tudo que ele observa exteriormente, mas nunca poderá ter a certeza de que o maquinismo que ele imagina seja o único que possa explicar os movimentos exteriores. (...) Não poderá nunca comparar a idéia que forma do mecanismo interno com a realidade desse mecanismo — nem sequer pode imaginar a possibilidade ou a significação de tal comparação. Mas realmente crê que, à medida que o seu conhecimento cresce, a sua representação da realidade se torna mais e mais simples e explicativa de mais e mais coisas. Ele pode ainda crer na existência de limites para o conhecimento, e admitir que o espírito humano aproxima-se desses limites. Esse extremo ideal será a ‘verdade objetiva’. [114]

E, por fim, assim nos exorta Camille Flammarion:

Tudo quanto vemos não é mais do que aparência. A realidade é outra. (...) O sol parece girar em torno de nós outros, levantar-se pela manhã e recolher-se à tarde, e a Terra em que estamos parece imóvel. O contrário é que é verdade. Habitamos em torno de um projétil turbilhonante (...) O som não existe não passa de uma impressão de nossos sentidos, produzida por vibrações de ar, de uma certa amplitude e com uma certa velocidade, vibrações silenciosas por si mesmas. Sem o nervo auditivo e sem o cérebro não haveria sons. Na realidade não há senão movimento. Tudo é ilusão no testemunho dos nossos sentidos. A Terra não é o que nos parece ser: a Natureza não é o que supomos. (...) A impressão direta e regular dada pela observação da Natureza é a de que habitamos na superfície de uma Terra sólida, estável, fixa no centro do Universo. (...) A Criação universal é uma imensa harmonia na qual a Terra é um insignificante fragmento, bastante pesado e incompreensível. [115] [destaque nosso]

O professor e filósofo, Carlos Antônio Fragoso Guimarães também se expressa de modo similar, ao dizer que:

O atual paradigma [moderno], que já nós deu inúmeras mostras de esgotamento e de incapacidade de solucionar inúmeros problemas básicos e existenciais do ser humano, vem dominando amplamente nossa cultura e educação há quase 400 anos, desde que Copérnico conseguiu, graças a Deus, enfrentar os dogmas rígidos e ultrapassados da Igreja Católica, abrindo espaço para a Revolução Científica de fins da Idade Média, e que, com o tempo, nos legou nomes como Galileu, Descartes e Newton... Este paradigma atual, que Capra chama de newtoniano-cartesiano, teve um impacto benéfico ao libertar a razão das amarras da superstição e do controle eclesiástico, mas foi, com o tempo, hipertrofiado. Ele consiste numa série de idéias e pressupostos, com determinados valores implícitos, que acaba por ser o referencial subliminar de nosso modo de entender o mundo já que é a base filosófica pelo qual a ciência se apóia e é o modelo usado na educação de nossos filhos. Um segundo ponto fundamental, que está correlacionado com o primeiro acima descrito, é que o modo como nós, seres humanos, interagimos com o mundo, dentro de uma determinada visão de mundo, acaba por influenciar nas respostas que este nos dá. [116] [grifo nosso]

2.3.3 Das Esferas do Natural e do Sobrenatural: a ciência moderna enquanto modelo ideológico dominante

Como já observamos, o pensamento científico não mais se junge (ou não mais se deve jungir) à — egoística e egocêntrica, diga-se — idéia de criação (humana), mas à de percepção (humana). Acaso as maçãs já não caíam antes de Newton?! Todavia, foi preciso o gênio de um Newton para perceber que havia um porquê para aquilo e que esse porquê consubstanciaria uma lei (princípio), estando interligada a outras mais — como o é a gravitação universal, por exemplo — engenhosamente percebendo a estreita ligação entre o movimento dos astros e o dos pequenos corpos, formulando, pois, toda uma teoria ao enfeixar essa gama de leis. Certo e intrigante é que todas estas leis precederam a Newton e continuarão a existir mesmo depois de sua breve passagem por este orbe, pois não foi Newton que as inventou. O objeto sobre o qual se debruça o saber científico está presente na Natureza (não importando se se trate de ciência exata, natural, humana, social ou outra, como veremos adiante), e tal objeto teria, pois, princípios (perdoem a redundância) universais. Todavia, agem os homens para com aquilo que percebem na natureza como se tais "coisas" inexistissem antes de eles haverem deitado seu olhar por sobre elas, como se o existir de tais "coisas" não prescindisse da humana percepção para que existam — todavia existiram antes mesmo de nós e continuarão a existir quando nos tivermos ido. Noutras palavras, por certo plagiando Alguém mais sábio, afirmemos que Newton teve olhos de ver e ouvidos de ouvir. O que se quer dizer com isso é que Newton, tão-só, percebeu uma (preexistente) ordenação do Cosmos. Ele não criou tais leis e princípios, apenas os anteviu no limiar da racionalidade que se oculta por trás da Natureza, como bem apregoavam os gregos e, depois deles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Em tais condições, poderíamos dizer que antes de um Newton, tais leis, posto que desconhecidas, teriam composto a esfera daquilo que o Homem chamara de sobrenatural. Sim, porque, egoisticamente, também só cedemos o título de natural apenas àquilo que compõe a parcela do que conhecemos da Natureza. Nisso, uma vez mais, vemos grassar espaço a postura Antropocêntrica e o quanto ela pode nos levar a conclusões apressadas e incertas. Certo é que muitíssimo pouco conhecemos da Natureza. E desconhecendo grande parcela dela, como então poderíamos afirmar o que a excede? Como poderíamos dizer, com pretensão de certeza, o que esteja acima dela (sobrenatural) e o que não faria parte de suas fronteiras? E mais: nestes limites estreitos, como dizer o que é Natureza? Mais humilde e prudente visão seria a de afirmar que não podemos determinar como fronteiras do Natural os lindes do que efetivamente conhecemos. Newton, em sua conduta prática, e Lavoisier, com sua formulação teórica já citada, legaram-nos uma importante lição: a de que nada é sobrenatural, apenas talvez se oculte para além do estreito círculo daquilo que o Homem conhece. Assim, uma vez desvendado o "mistério" de que se acercam dados fenômenos, eles passam a fazer parte da esfera Natural conhecida. O fato de desconhecermos algo não nos habilita a dizermos que este algo não exista, tampouco, a rotulá-lo de sobrenatural, eis que tão-somente o fazemos por se encontrarem além horizonte conhecido. Tal propugnação estaria conforme tendência marcadamente subjetivista-axiológica, eivada, portanto, de influência antropocêntrica — não muito dispare, diga-se, do antropocentrismo mascarado que constituiu o teocentrismo medievo. Um outro erro, não de menor monta, seria o de, enxergando o homem como produto acabado, opor limites ao que ainda há por conhecer. E tal pensamento não possui qualquer assento de cientificidade, antes reflete a influência das concepções ideológicas de quem "faz" ciência. Pierre Simon Laplace diria, em sua proposição conhecida como o Demônio de Laplace, que, se conhecêssemos todas as variáveis que atuam em um objeto pontual ao deslocar-se de uma posição ‘X1’ para uma posição ‘X2’, poderíamos prever o futuro [117]. E, precipitadamente, concluem nossos "homens de ciência" hodiernos, que: ‘como (ainda) não podemos conhecer todas as variáveis atuantes em dado fenômeno, impera a lei do caos, tudo é caos’, expressando aí um outro erro que se funda em medir o Universo, a Natureza e a Ciência a pés humanos, opondo limites ao que ainda há por conhecer. Uma postura que se revela totalmente avessa à Ciência, mesmo à proposta estritamente objetiva da ciência moderna. Ora, tudo o que podemos dizer quanto ao desconhecimento das variáveis que atuam em dado fenômeno, é que ainda não temos meios de conhecê-las. Não se poderia, pois, separar de pleno o objeto em análise do ser que analisa.

A este título, tal ciência toma o lugar das concepções mitológicas, místicas e religiosas que, no passado, desempenharam o papel ideológico de racionalização dos interesses da classe dominante. (...) Muito embora a atividade científica se apresente como a-ideológica, através do mito da "objetividade científica". Como se um dos primeiros efeitos da ideologia não residisse no fato de pretender ocultar-se a si mesma. (...) O que pretendemos afirmar é a existência de uma interação flagrante entre o sistema científico, produtor de conhecimentos e de meios de ação, e o sistema político que se apropria desses meios. [118]

Temos, pois, um retorno ao mito, não um mito como aquele anterior à construção filosófica, mas um outro bem mais elaborado: o de que somente a Ciência (e a ciência moderna) pudesse atingir a verdade.

A Ciência convenientemente apregoa os mitos da objetividade (possibilidade de o Homem conhecer a verdade sem mácula alguma dos sentidos ou de juízos valorativos) e da neutralidade (distanciamento pleno entre o pesquisador e o objeto de sua pesquisa – em última análise, propondo um afastamento completo da Natureza enquanto repositório de seus objetos), age exatamente como um sistema autopoiético [119], em defesa contra outras formas de pensar e expressar, o que, em última análise, consubstanciaria uma postura eminentemente ideológica, nada mais. "Nossos sistemas de idéias (teorias, doutrinas, ideologias) estão não apenas sujeitos ao erro, mas também protegem os erros e ilusões neles inscritos. Está na lógica organizadora de qualquer sistema de idéias resistir à informação que não lhe convém ou que não pode assimilar. As teorias resistem à agressão das teorias inimigas ou dos argumentos contrários." [120]

E ideologia, segundo a professora Marilena Chauí (1983), seria:

"um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador." [121]

A função da ideologia seria ocultar o modo como as relações sociais são produzidas e a origem das formas de dominação [122], valendo-se de um discurso racional (ou de mera racionalização) que apresente essas relações como naturais, perpétuas, indiscutidas e indiscutíveis, nublando tenham sido elas postas pelo grupo dominante, com o intuito claro de fazer prevalecer suas idéias e interesses, como se fossem advindos da coletividade como um todo. E, para a sustentação do paradigma moderno é imprescindível a conformação ideológica de que:

é total a separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que não é contemplativo, mas antes activo, já que visa conhecer a natureza para a dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana «o senhor e o possuidor da natureza» [123]

Tal visão, como podemos depreender de toda a presente explanação, nada mais reflete que a prevalência de uma ideologia dominante. E o professor Boaventura de Sousa Santos (2001) acrescenta:

A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria. (p. 14). (...) Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. (...) O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. (...) o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou. (...) O determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar. [124]

Vemos o homem atual trazer ainda consigo o mesmo estranho e egoístico "dom" de pôr-se acima de sua condição. Fala de si qual o único ser racional a habitar o imenso vão do infinito, o ser mais evoluído do globo, o topo da cadeia alimentar, termo final da evolução, etc. Olvida, decerto, a infinda fronteira do que desconhece. O que conhecemos representaria um grão de areia em meio a toda uma praia desconhecida. Foi o orgulho (egoísmo)que fez um dia o homem ter posto a Terra como o centro do Universo e foi o mesmo orgulho (egoísmo) que o fez, em demovendo-a, ter posto a si próprio no bojo do mesmo. Entretanto, o tênue deslocar-se do geocentrismo para o antropocentrismo às claras, não constituiu grande mudança. Não enquanto não permitir que divisemos a inexistência de sistemas isolados (como os que são propostos pelos modelos científicos, como se de verdades incontestáveis se tratassem), a interdependência da vida humana à vida do planeta, deixando de crer no pensamento engessado segundo o qual o mundo é qual uma máquina, passível de ser dividida em suas partes e analisada pelas especificidades. Assim procedendo não logrará o Homem compreender a racionalidade que se traduz sob tudo o que há no Cosmos e a unidade maior que há na multiplicidade de variáveis que agem sobre dado fato (fenômeno), seja ele histórico, científico, social ou mesmo jurídico. A exemplo disso é que:

...só em nosso século a Ecologia começou a ser aceita - ainda que como inimiga para o sistema industrial, em especial o que se calca na exploração e poluição do meio ambiente. De qualquer modo, a Biologia, adotando um determinado modelo mecanicista da vida, está dando retorno a um segmento social que a financia e espera, de qualquer modo, algo em troca, se possível algo que dê lucro. Desta forma, fazendo dos organismos vivos "máquinas", não é preciso ter uma ética "humanista" de pleno respeito a estes organismos, que podem ser plenamente explorados comercialmente. Da mesma forma, a indústria farmacêutica, visando mais o lucro do que a ajuda humanitária, pouco se importa se quem pode comprar seus produtos constitua apenas um setor mínimo da população. [125]

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Sobre o autor
Francisco de Sousa Vieira Filho

Advogado, militando sobretudo na área trabalhista, em Teresina-PI, Especialista em Direito Constitucional pelo LFG e Mestre em Direito pela Universidade Antônoma de Lisboa. Professor nas faculdades AESPI e FAPI, e professor substituto na UESPI (Campus Clóvis Moura). Autor dos livros: Lira Antiga Bardo Triste (2009); Lira Nova Bardo Tardo (2010) e Codex Popul-Vuh - ramo de folhas (2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA FILHO, Francisco Sousa. Rudimentos de uma fundamentação principiológica para a proteção ambiental: a natureza como o sistema primordial com o qual o homem interage (entorno).: Por uma visão de mundo não-superlativamente-antropocêntrica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1277, 30 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9340. Acesso em: 4 mai. 2024.

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