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Rudimentos de uma fundamentação principiológica para a proteção ambiental: a natureza como o sistema primordial com o qual o homem interage (entorno).

Por uma visão de mundo não-superlativamente-antropocêntrica

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3. HOLISMO – TRANSCENDENTALISMO – UNIVERSALISMO:

A teoria de hólon, de Arthur Koestler [126], é a que mais sintetiza, hodiernamente, ao menos para o Mundo Ocidental, essa contraposição ao Antropocentrismo dominante. Em matéria ambiental, chegou-se à terminologia biocentrismo, para fulcrar essa posição anti-antropocêntrica; todavia, mesmo ela, é parcelizadora e fragmentária, eis que apenas faz morrer um deus para erguer altar a outro em seu lugar [127] – retira o Homem de uma posição de primazia e põe a Natureza em seu lugar. O paradigma emergente preconiza, como veremos adiante, uma interdependência, ou mesmo uma transdependência das secções do real (ou das apreensões do real) que chamamos saberes ou ciências.

‘Holos’ é uma palavra de origem grega e quer dizer ‘totalidade’. [128] Enquanto o modelo apregoado pela ciência moderna é mecanicista, reduzindo o todo à mera soma das partes, o holismo propõe uma visão do todo como algo mais que a somatório de suas especificidades. O mecanicismo prima pelo reducionismo das complexidades, analisando sempre apenas o mais simples e o menor, despreza o todo; o holismo, em contrapartida, foca o complexo a que a ciência moderna parece haver relegado para o campo não-científico, alijando tudo o que se encontra além da fronteira do que conhecemos para o (pretenso) campo do sobrenatural, ou, quando pouco, para a esfera de tudo o que é tido como ‘não-científico’.

Vejamos a profícua explanação e o exemplo prático que nos oferta o professor Carlos Antônio Fragoso Guimarães:

Ora, mesmo um "primitivo" organismo unicelular, como uma ameba, por exemplo, por mais simples que seja, apresenta uma intrincada estrutura biológica (Complexidade) que nunca se encontrará em qualquer que seja o produto do engenho humano. Qualquer modificação sintética numa estrutura desse tipo sempre partirá da matéria-prima básica que o homem irá utilizar, ou seja, o próprio organismo unicelular já existente. Este mesmo organismo unicelular, em seu funcionamento interno, apresenta-se como uma grande cidade muito bem-organizada. Ela é formada por organelas muito especializadas que trabalham de forma altamente sincronizada para que o ser unicelular possa sobreviver, auto-renovar-se, locomover-se, alimentar-se, atacar, fugir e se reproduzir. As estruturas químicas que dirigem e controlam toda esta "cidade" minúscula encontram-se codificadas em moléculas localizadas no interior do núcleo da célula: o DNA. (...) O mais incrível é que os componentes elementares básicos de um sistema biológico qualquer são formados por átomos perfeitamente comuns, encontrados em toda a parte. Qualquer que seja o átomo que se encontre dentro da célula viva - quer seja um átomo de carbono, de hidrogênio ou de qualquer outro elemento - não apresentará ele diferença alguma de qualquer dos átomos do mesmo elemento que se encontrem no meio inanimado externo. Aliás, há uma corrente ininterrupta de trocas de componentes internos da célula com o meio externo e, apesar disso, a célula continua a ser e a se desenvolver como um organismo independente, de onde se deduz que a vida não pode ser reduzida a uma propriedade de mera junção ou união das suas partes constituintes. Estas partes constituintes estão em constante transformação. Seus átomos estão sempre sendo trocados, mas o padrão do conjunto se mantém. É este padrão, não a estrutura, que é responsável pela existência do conjunto. A vida não é um fenômeno cumulativo. Se o fosse, um biólogo poderia muito bem formar uma célula viva a partir da junção de todos os seus componentes. O máximo que ele conseguirá é um saquinho gelatinoso muito parecido com uma célula morta. (...) Ora, o interessante é que a ênfase na pesquisa científica, em geral, e, muito particularmente, em biologia, está em se isolar e classificar sempre mais e mais os chamados constituintes fundamentais dos sistemas vivos, ou seja, em se descobrir quais as moléculas - e sua composição - responsáveis pela manutenção e/ou ação dos processos biológicos. Pretende-se com isso ter uma visão compreensiva e mais aprofundada do que seja a vida. No final das contas, o que descobrimos é que enquanto aprofundamos mais e mais o conhecimento das estruturas microscópicas que constituem a base biofísica e bioquímica das células, perdemos a visão de relação ou a visão do conjunto da vida em si em suas manifestações dinâmicas. Cria-se, assim, a ilusão de que a superespecialização linear aumenta o conjunto geral do conhecimento. Na verdade, aumenta-se o conjunto de conhecimento sobre os detalhes de um determinado aspecto da vida. Pouco se faz para se ter uma idéia de relação funcional das partes com o todo. O erro fundamental reside no fato de a ciência não levar realmente em conta que um conjunto pode muito bem apresentar propriedades que não se encontram nos seus componentes individuais. Um exemplo clássico para demonstrar tal fato é o da fotografia de jornal que é constituída por inúmeros pontinhos. Ora, nenhum desses pontinhos, quando isolados, revela o que quer que seja sobre a figura que o conjunto representa. Só quando nos afastamos do nível dos componentes individuais e ascendemos ao todo, é que temos idéia da informação, da mensagem, da figura que surge da fotografia de jornal. Ou seja, a figura não é a resultante das propriedades dos pontinhos, mas sim a resultante do padrão do todo formado tanto pelos pontinhos, quanto pelo espaço entre eles. (...) as tentativas para explicar a nossa existência e a de todos os organismos vivos como se nada mais fossem a não ser aglomerados atômicos casualmente formados, levou a um processo de desvalorização moral e de uma supervalorização mercantil, egoísta e hedonista da vida, linearizando a própria existência como uma coisa fútil, acidental e sem sentido. (...) Como muito bem nos fala o físico Paul Davies, em seu livro Deus e a Nova Física, ninguém pode negar que um organismo é uma coleção de átomos, moléculas, tecidos, etc. O erro está exatamente em se supor que ele é nada mais que isso. Semelhante pretensão, logicamente, é tão ou mais ridícula quanto dizer que a Nona Sinfonia de Beethoven nada mais é que uma coleção de notas, ou que um poema de Augusto dos Anjos é apenas um conjunto de palavras, embora seja exatamente isso que muitos cientistas dizem quando falam dos processos biológicos e até mesmo psicológicos. A vida, o tema de uma sinfonia ou o enredo de um romance são qualidades que emergem do nível mais básico de seu substrato físico, e não podem ser percebidas no nível de seus componentes. [129]

A (pré) ordenação do universo, já sabemos, é o pressuposto científico da plausibilidade de sua própria compreensão. Todavia, a tendência de todas as coisas na Natureza é a desordem, a desagregação – nascer, crescer, evoluir, fenecer. A essa "tendência" a ciência deu o nome de entropia, que nada mais quer dizer que a propensão de que os sistemas "isolados" têm de se desestruturarem – tudo no Universo teria, segundo esta idéia, a pendor de sair de um estado mais organizado para um menos organizado, exceto que um fator exterior atue contra a desordem crescente. Este fator exterior é a vida. Somente a vida caminharia contra a entropia. Anaxágoras, filósofo pré-socrático a quem já nos reportamos, denominou ‘amor’ a essa força agregadora, que sustém os sistemas, rumando contra a tendência universal à desordem; e atribuiu o nome de ‘ódio’ àquilo que chamamos entropia, essa força que faz os sistemas tenderem à desordem.

Camille Flammarion (1998) a respeito dessa força agregadora que rema contra a maré da entropia diria ainda:

Eis aqui uma forte trave de ferro (...) É sólida com certeza. (...) No entanto essa trave é composta de moléculas que não se tocam, que estão em vibração perpétua, que se afastam umas das outras sob a influência do calor e se aproximam sob a do frio. Diga-me, por favor, que é que constitui a solidez dessa barra de ferro? Seus átomos materiais? Certamente não, pois eles não se tocam. Essa solidez reside na atração molecular, isto é, em uma força imaterial. (...) Falando de modo absoluto, o sólido não existe. (...) O universo e as coisas e as criaturas, tudo quanto vemos é formado de átomos invisíveis e imponderáveis. O Universo é um dinamismo. Deus é a alma universal: in eo vivimus, movemur et sumus. (Nele vivemos nos movemos e existimos.) (...) O que constitui essencialmente o ser humano, o que o organiza, não é a sua substância material, não é nem o protoplasma, nem a célula, nem essas maravilhosas e fecundas associações do carbono com o hidrogênio, o oxigênio e o azoto; é a força anímica, invisível, imaterial. É ela quem agrupa dirige e retém associadas as inúmeras moléculas que compõem a admirável harmonia do corpo vivente. [130] [destaque nosso].

Pois bem, já vimos que o simples fato de darmos nomes a tais ou quais coisas não nos habilita a dizer que asconhecemos. A bíblia apregoa termos vindo do barro. Usemos, então, o barro como exemplo. Se perguntarmos a um oleiro o que vem a ser o objeto com que labuta, ele diria, simplesmente, que trabalha com barro. Porém, o que vem a ser o barro senão um nome que atribuímos a algo que desconhecemos e que, por termos nomeado, criamos a ilusão de conhecermos?! Se fizéssemos esta mesma pergunta a um cientista, ele daria uma resposta algo parecida com esta: substância silicosa, composta por determinada proporção de água e de matéria orgânica decomposta, além de uma outra tanta porcentagem de silício, etc; ou poderia dizer ainda que barro é um agrupamento de átomos de determinados elementos químicos, discriminando-os, um a um, em seguida. Ora, não importaria de que elementos químicos seja ou que tipo de átomos o componha. Átomo é, também, um nome que demos pra algo que desconhecemos. E ninguém se assuste se o Direito — denominação vazia de consenso quanto a uma definição e/ou conceituação unívoca — jamais vier a receber definição precisa, donde pulula ainda mais a vaguidão. Como vemos, o que chamamos sólido nada mais passa de uma ilusão fornecida por nossos sentidos. O que nos sustêm, em termos macro, palpáveis nãoé a matéria de que somos feitos, masuma força organizadora (e desconhecida) que mantém a "matéria"de que são feitos os átomos unida; força esta que, com o cessar da vida, pára de atuar, ocorrendo aí a desagregação dos corpos. Sabemos que há um sentido para onde a corrente do tempo faz correr. Já falamos de devir, da eterna mudança que permeia tudo o que — segundo a óptica humana — existe. A essa corrente chamamos entropia. Ela (a entropia) ruma no sentido da desagregação dos corpos e dos sistemas. Entretanto, há força outra que rema contra esta maré. A isto chamamos vida. Que força é essa que teima em fazer com que os corpos permaneçam agregados e com que os sistemas se tornem mais e mais complexos, quando — por força da lógica (humana) — seria inconcebível que do acaso surgisse a complexidade e a inteligência? Anaxágoras chamava-a de amor (vida), e, por correspondência negativa, a entropia não equivaleria à outra idéia que não à do ódio, que separa e desune.

A ciência moderna afirma ter o orgânico surgido do inorgânico, que os primeiros seres vivos, dos quais evoluímos, teriam sido os coacervados. O nome era usado para representar nada mais que um amontoado, um grumo de células que, em meio ao ‘caldo primitivo’ de uma Terra ainda rude, galgou o patamar organizacional de vida. Podemos ver que não seria uma afirmação muito diversa daquela segundo a qual o homem teria surgido do barro, já que o barro nada mais é que matéria inorgânica – uma metáfora analogicamente muito bem aplicável ao caldo primitivo dos primórdios de nosso planeta. Todavia, não podemos afirmar sequer o que venha a ser vida, por ser também um simples nome que demos a algo que desconhecemos. Entretanto, movidos pelo mesmo egoísmo e antropocentrismo (velado ou não) o Homem nega mesmo a existência de vida em outros planetas que não na Terra, quando não sabendo o que seja vida, também não pode precisar onde haja ou deixe de haver. Ainda hoje a ciência moderna reluta entre admitir, ou não, a "vida" de um simples vírus, ora porque ele precisaria parasitar outras células para reproduzir-se e/ou alimentar-se, ou não tendo desenvolvido organelas respiratórias, etc. Mas, como vimos, sequer sabemos o que seja vida, e julgamos não havê-la em outros orbes de nosso sistema solar, ou de outros sistemas, simplesmente, por não terem condições semelhantes às de nosso planeta (como se vida só houvesse nas condições que imaginamos, curvando-se à pretensa vontade humana), ou por — mesmo usando as poderosas lentes dos satélites — nada conseguirmos ver de vida similar à nossa. Ora, olvidam nossos ilustres cientistas que, ignorando o que seja a vida, igualmente ignoramos as condições em que ela se dá. Esquecem-se também quão pequeno e estreito é o limite da faixa de freqüência visual dos homens terrenos, nada podendo ver aquém do infra-vermelho ou além do ultra-violeta? Assim sendo, muita coisa há que não vemos e — exatamente por não sabermos o que seja vida — desconsideramos que, dentre as muitas coisas que não vemos, vida pode haver, e em condições possivelmente bem diversas daquelas que, movidos pelo antropocentrismo, julgamos sejam as únicas em que a vida seja possível. Inumeráveis seriam as implicações desta simples constatação para o mundo jurídico. Para não citar muitas, indagaríamos então: como tipificar o aborto ou a eutanásia, por exemplo, se — desconhecendo o que seja vida — desconhecemos quando ela principia e quando cessa por completo? É essa a visão de todo proposta pelo paradigma emergente: a de questionar o inquestionável, a de não opor limites àquilo que desconhecemos, a de não se permitir prender nas amarras de dogmatismos similares aos que a ciência tanto combate. Quanto à vida universal, Flammarion, novamente, nos oferece melhor palavra neste afã:

A vida é o fim da criação inteira. Se não houvesse vida, nem pensamento, tudo isto seria como que nulo e não acontecido. A Criação é um poema, do qual cada letra é um sol. Estás destinado a assistir a completa transformação da Ciência. (...) — A vida universal! disse eu. Os planetas do nosso sistema solar serão todos habitados?... São habitados os milhares de mundos que povoam o infinito?... Essas humanidades assemelhar-se-ão à nossa?... Conhecê-las-emos algum dia? [131]

3.1 Noções de Sistema:

Falamos, há pouco, sobre desagregação de sistemas, sem ao menos desanuviar o que viria a ser sistema. E uma visão holística (de todo, total) de mundo pressupõe quase que naturalmente a noção de sistema, que lhe é basilar. "A palavra sistema nos remete a inúmeros conceitos em princípio bastante distintos: o sistema solar (sistema físico), o sistema nervoso (sistema biológico), o sistema computacional (sistema eletrônico), entre outros." [132]

Um sistema é um conjunto (ou grupo) de elementos organizados, inter-relacionados ou interdependentes que forma um complexo ou todo unitário (coordenado) e diferente e (de certa forma) destacado do exterior que o cerca. [133]

Os elementos são os componentes do sistema e, ao contrário do que a priori poder-se-ia supor, não caracterizam o sistema. (...) O que caracteriza um sistema estelar não são o número de planetas, o tamanho dos corpos celestes, sua composição química ou mesmo sua temperatura. (...) O que caracteriza um sistema é sua organização. (...) A organização é a relação entre os elementos do sistema que permite ao observador isolar o sistema de seu ambiente. (...) Assim, a força de gravidade faz com que todos os corpos celestes de um sistema estelar girem em torno de um centro comum (no caso do sistema solar, o Sol). A organização de um sistema estelar é, pois, de inúmeros corpos celestes girando em torno de uma estrela. (...) Se, por hipótese, ocorre alguma alteração nesta organização (a gravidade deixa de existir, verbi gratia) o sistema deixa de existir ou torna-se um novo sistema com natureza absolutamente diversa do anterior. [134] [destaque nosso].

Não seriam, pois, as partes que caracterizam um sistema, mas aquilo que o mantém unido, aquilo que garante que dado sistema mantenha sua estrutura organizacional, aquilo que faz com que seja um sistema, algo diverso da multidão dos elementos dispersos no ambiente, muito embora possa ter composição exatamente idêntica à do próprio ‘exterior’, porém, numa conformação organizada. Quando o homem se percebeu diverso da Natureza, foi que notou haver fronteira entre si e ela, foi que teve noção (ainda que muito rudimentar) de ser, ele próprio, um (sub)sistema – diverso, pois, do ambiente em derredor. "Etimologicamente, ‘ambiente’ vem do latim entis, que significa rodear, envolver. É o meio em que vivemos." [135] Algo muito similar à noção de entorno, no obscuro pensamento de Niklas Luhmann (1997). O ambiente (a natureza) é, de fato, o mais amplo sistema com o qual interagimos, seja a nível coletivo ou individual; a idéia de ambiente tem mais a ver com um supra-sistema cósmico no qual nos inserimos [136] que com uma criação cultural e terminológica humana, afeita a atender nossos interesses e necessidades, como pretensamente erigida para a satisfação humana.

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Podemos perceber, ainda, haver algo em todo e qualquer sistema que se perpetua, sob pena de o próprio sistema deixar de ser o que é, passando a ser outro; algo se mantém, algo que o define e caracteriza, algo que constitui o cerne do que ele é (sua essência, por assim dizer). No caso do sistema solar seria a lei ou princípio da gravitação universal que garantiria a unidade sistêmica, muito embora suas partes componentes possam ser alteradas sem que isso afete o sistema, enquanto unidade organizacional, eis que tal lei permanece.

Aquilo que não participa da estrutura organizacional do sistema, aquilo que não constitui parte dele, tudo o que não é mantido por seu princípio organizador, estando, pois, fora do sistema, é denominado ambiente. Em verdade, podemos afirmar que existem sistemas concêntricos, como conjuntos que contém conjuntos menores, sendo que o sistema maior, aquele que engloba todos mais, seria o sistema primordial, donde todos os outros seriam apenas subsistemas seus. Assim, por preciosismo da linguagem, só haveria realmente Um Único Sistema Verdadeiro: O Sistema Universal. Todos os demais sistemas nada mais seriam que subsistemas do Cosmos. Os subsistemas, ou sistemas isolados, só seriam admissíveis, enquanto simples tentativas didáticas de apreendermos a parte, por nossa impossibilidade atual de divisarmos (ou pelo menos não com a minúcia necessária) o Sistema Maior e suas inter-relações com suas subpartes. Um sistema (subparte) está sempre inserido num sistema maior (subtodo), e com ele está em constante troca, bem como com os outros subsistemas, sem que, por isso, perca tal condição. A troca de um sistema (subsistema) com o ambiente ou com outros subsistemas, em regra, nada altera sua estrutura organizacional, ou seja, quer permute elementos, componentes seus (suas partes), quer troque matéria ou mesmo energia com o meio ou outros sistemas, se sua conformação organizacional não se altera, o sistema persiste [137]. Não haveriam, pois, sistemas plenamente fechados, ou seja, todos os sistemas se encontram em constante troca, sendo, pois, abertos – o que não quer dizer que percam sua identidade. "Cada parte (ou sub-parte) é, pois, um possuidor de tendências auto-afirmativas (indivíduo) e integrativas (em relação a um subtodo que lhe está imediatamente acima na hierarquia do sistema [maior] a que pertence)." [138] De todos os subtodos (ambientes) com os quais interagimos, seria exatamente a Natureza o maior sistema a que nos vemos atados.

3.1.1 Sistemas Alopoiéticos e Sistemas Autopoiéticos:

"A alopoiese é um processo pelo qual uma determinada organização produz algo diferente de sua própria organização. Um exemplo de sistema alopoiético seria uma linha de produção de uma indústria automobilística. (...) Uma linha de produção é capaz de produzir carros, mas não as máquinas usadas na própria linha de produção. (...) Por outro lado, sistemas autopoiéticos são literalmente aqueles que se auto-produzem." [139] Um organismo vivo possui células que se auto-reproduzem, a fim de manter o organismo, como um todo, vivo. Os sistemas autopoiéticos são, portanto, auto-referenciais.

A idéia de autopoiesis é a mesma que pressupõe tenham os ditos coacervados percorrido o caminho evolutivo até a condição humana, movidos pelo mero acaso e pelo caos, através de um sem-número de tentativas aleatórias, quando, como já concluímos, primu conspectu, se todo efeito tem uma causa, todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. Em tais condições, portanto, o acaso não existiria, e esse rumar contra a tendência entrópica seria guindado por um princípio organizador. Anaxágoras chamava isso de ‘amor’; há quem chame ‘vida’; outros preferem o nome ‘alma’ (a fazer a matéria ‘cheia de deuses’, como pretendia a metáfora de Tales, a dizer que algo imperecível persistia); outros mais a isso denominam ‘razão’. Nós, porém, chamamos ‘princípio’ (organizador). O certo é que, como também já vimos, nomes são apenas nomes, pouco dizendo sobre os objetos por eles rotulados [140]. Todavia, a importância da conclusão acima vai além do mero interesse filológico. Seria ‘isto’, independente da indumentária vocabular que adotemos, a propugnação mesma do fim do materialismo, eis que aquilo que garantiria a união e a organização das células de um corpo (mesmo o dos primitivos coacervados), aquilo que manteria a organização de todo e qualquer sistema, por assim dizer, seria uma força, imaterial e invisível, qual é para os corpos celestes a gravitação universal [141], não sendo produto, pois, da mera soma das partes, do mero amontoado de células, nada devendo à matéria em si (ou pelo menos àquilo que chamamos de matéria). A ciência moderna tendo esquadrinhado a matéria, parcelado o todo em suas partes mais ínfimas, não logrou encontrar respostas para os sentimentos, para a vida ou mesmo para a inteligência; não na matéria, não no mero amontoado de átomos; mas naquilo que os mantém unidos sob dada conformação sistêmica, ou seja, naquilo que os faz serem – em conjunto – algo novo, algo diverso do meio que os cerca, algo diverso dos mesmos átomos, muitas vezes similares e de elementos químicos iguais, que bailam no exterior, separando-os, pois, do ambiente (enquanto categoria diversa), mas não obstaculizando, de todo, as trocas com o ‘exterior’ ou mesmo com outros sistemas.

A característica mais peculiar de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis. (...) O que lhes é peculiar é que sua organização é tal que seu único produto são eles mesmos. Donde se conclui que não há separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização. [142]

O único objetivo de um sistema autopoiético seria, assim, a manutenção da organização sistêmica, ou seja, evitar a morte do sistema e a dispersão de seus elementos. Duas situações poderiam culminar com o fim de um sistema (sua morte, por assim dizer): 1° - a perda de seu princípio organizacional (seu cerne, sua alma), com a conseqüente mudança completa do sistema, seguida de sua desagregação, ou seja, quando ele permute algo mais que seus simples elementos, perdendo sua capacidade organizacional, seu princípio, aquilo que o faz diferente do ambiente em derredor; 2° - quando perca, pois, seu princípio organizador para adotar um outro, assumindo, assim, feições de uma nova ordem, tornando-se um novo e diverso sistema.

3.1.1.1 O Direito e a Sociedade como Sistemas:

Niklas Luhmann (1997) propõe sejam o Direito e a Sociedade qual sistemas autopoiéticos, modelos organizacionais cuja única função seria, em última análise, manter-se, perpetuar-se; sistemas auto-nascidos (?!), auto-mantidos e auto-organizados. Como vemos, atinge-se aqui um nível de aproximação entre as ciências naturais e as sociais nunca antes ousado ou pretendido. Nessa proposição, os elementos do sistema social não seriam mais o conjunto de indivíduos, mas a informação. Como só poderia haver noção qualquer de sociedade num grupamento de indivíduos, portanto, quando houvesse mais de um ser, o indivíduo, visto isoladamente, perderia o caráter de elemento da sociedade, eis que esta só haveria quando houvesse pelo menos dois. E, como entre dois indivíduos há troca de informações, comunicação, pois, eis então o padrão organizacional da sociedade, para Luhmann, a comunicação. [143] A moeda do Universo seria a informação, informação que pode transitar entre os sistemas. Ora, o que viria a ser o DNA que não a informação para codificar um corpo inteiro, ou seja, a informação para erigir todo o sistema de que faz parte. Seria como numa visão repensada da sabedoria oriental aos moldes ocidentais: a parte conteria o todo, exatamente como o todo a contém. Vejamos: o todo corporal contém (é composto por) células; tais células, muito embora só reproduzam a si próprias, contêm informação (genética) para edificar todo o organismo (corpo).

Pois bem, sabemos que os sistemas vivos são aqueles que assumem os contornos mais nítidos de uma caracterização autopoiética. E os sistemas vivos tendem a, tão-somente, manterem-se vivos, não importando o custo. Quando somos acometidos por uma gripe, por exemplo, nosso organismo encaminha um sem-número de anticorpos para combatê-la, os quais, ao fim, são excretados, como células mortas, dispensáveis na luta pela sobrevivência; ou seja, não importa a morte de algumas células (de alguns componentes do sistema) desde de que o corpo (sistema) permaneça e se perpetue. É imperioso inferirmos que, adotando tal visão de mundo, culminaríamos com um relegar do indivíduo a um papel, para menos dizer, de segundo plano. Os indivíduos, segundo o funcionalismo sistêmico, não passariam, pois, de ‘organelas’ do imenso sistema social "vivo", sendo perfeitamente dispensáveis, na manutenção de suas estruturas maiores. Operou-se, assim, um retorno ao organicismo proposto pelos gregos antigos, sobretudo por Aristóteles, e retomado por um considerável número de Sociólogos até Luhmann; e, todavia, agora muito mais elaborado [144], como pede o movimento pendular da evolução (dialética) meramente rascunhada no início desta nossa análise [145].

Ora, sendo a sociedade e o Direito sistemas autopoiéticos, seria perfeitamente natural o sacrifício meramente utilitário de algumas – ou várias – vidas humanas para a manutenção do status quo e, conseqüentemente da autopoiese do sistema. (...) A manutenção de uma parcela de seres humanos absolutamente marginalizada, em condições sociais miseráveis, seria perfeitamente lícita desde que não prejudicasse a autopoiese do sistema. [146]

O Direito, segundo o funcionalismo sistêmico, é um subsistema da sociedade, e sendo, portanto, ele também, um sistema autopoiético, nada mais visaria que produzir mais direito, ou seja, sua finalidade última seria manter-se – não importando, assim, o teor (moralmente justo ou injusto) das decisões obtidas pelos juízes e do cumular das jurisprudências, desde que não afetem a perpetuação do sistema. Uma idéia muito similar à proposta Kelseniana, com a ressalva de que ali se propôs o Direito como um sistema fechado, mas igualmente não afeito a quaisquer elementos sociais ou morais, tendo dado margem a propensões totalitárias (antidemocráticas, portanto). A tese que Luhmann defende dá azo a uma visão de Direito igualmente amoral. O Direito assim visto não mais visaria proteger os indivíduos e garantir o seu bem-estar, mas resguardar a sociedade e seu padrão de organização – a comunicação.

Fica evidente que, ainda que se admita a concepção sistêmica da sociedade, visto que, como seres humanos, nos encontramos em permanente acoplamento estrutural [em comunicação] com outros seres humanos, tratar-se-á de um sistema alopoiético. (...) Este metassistema formado pela agregação de unidades autônomas (indivíduos) é uma criação do homem para o homem. (...) A função do sistema social não pode ser concebida como sua própria preservação, mas como a preservação do homem enquanto homem. (...) Esta preservação do gênero humano, só pode ser alcançada com o progressivo incremento da autonomia individual, através da garantia pelo sistema social dos direitos humanos individuais (liberdade, igualdade, etc), sociais (educação, saúde, etc) e políticos (efetiva participação nas decisões da sociedade). (...) Em suma, a sociedade não pode ser concebida como uma célula que vive para manter-se viva. A sociedade deve ser concebida como uma linha de produção em benefício do homem, cuja finalidade é produzir um incremento da autonomia individual e do bem estar social de cada ser humano. [147]

A própria idéia de autopoiese parece ser inverossímil, segundo os próprios pressupostos científicos, uma vez que nada surge do nada e que todo efeito há de ter tido uma causa. Assim, usando como exemplo os coacervados enquanto primeiro sistema vivo do globo, se poderia até dizer que teria surgido ali uma organização (um sistema), mas não teríamos elementos racionais para falar em auto-organização, como pressupõe a idéia de autopoiese.

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Sobre o autor
Francisco de Sousa Vieira Filho

Advogado, militando sobretudo na área trabalhista, em Teresina-PI, Especialista em Direito Constitucional pelo LFG e Mestre em Direito pela Universidade Antônoma de Lisboa. Professor nas faculdades AESPI e FAPI, e professor substituto na UESPI (Campus Clóvis Moura). Autor dos livros: Lira Antiga Bardo Triste (2009); Lira Nova Bardo Tardo (2010) e Codex Popul-Vuh - ramo de folhas (2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA FILHO, Francisco Sousa. Rudimentos de uma fundamentação principiológica para a proteção ambiental: a natureza como o sistema primordial com o qual o homem interage (entorno).: Por uma visão de mundo não-superlativamente-antropocêntrica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1277, 30 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9340. Acesso em: 23 dez. 2024.

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