Até hoje o instituto da transação penal, previsto no art. 98, inciso I, da Constituição da República e no art. 76, da lei n. 9.099/95, tem provocado grandes divergências na doutrina e na jurisprudência, tanto acerca de sua constitucionalidade, quanto da sua eficácia como instrumento "despenalizador", eis que violaria princípios fundamentais como o do devido processo legal e que distribuiria penas em escala industrial, massificando não um benefício, mas sim sanções penais.
Sem nenhuma pretensão de apresentar uma solução definitiva para os questionamentos apresentados, temos algumas considerações que julgamos válidas para exame da comunidade jurídica nacional.
A transação penal tem assento constitucional, sem dúvida alguma, conforme está exposto no art. 98, inciso I, da Constituição da República de 1988. Para alguns, isso bastaria para que se afastasse qualquer suspeita acerca da constitucionalidade do instituto.
Porém, a Constituição da República não especificou como e quando seria a transação penal aplicada nos casos concretos. Quem o fez foi a lei n. 9.099/95. Tal diploma legal, em seu art. 76, previu a aplicação da transação penal antes mesmo de iniciado o processo (no entendimento tradicional).
Ora, o problema todo está aí, no momento da homologação da transação penal, pois o autor do fato (réu, sem eufemismos desnecessários) tem de optar pela diminuição de seus direitos ou enfrentar o processo, sem que tenha sido ouvido ou que tenha produzido qualquer tipo de prova em sentido contrário ao que está narrado no Termo Circunstanciado de Ocorrência.
Vamos examinar a situação fática na qual o autor do fato chega à audiência preliminar.
Em geral, a qualidade de autor do fato ou vítima, no Termo Circunstanciado de Ocorrência, deve-se, principalmente, ao fato de quem chegou em primeiro lugar na Delegacia de Polícia. Muitas vezes, o real agressor consta como vítima, pois teve a oportunidade de narrar sua versão ao Delegado de Polícia antes que a pessoa efetivamente agredida.
Pois bem. Nesse quadro, ao chegar na audiência preliminar, diante de um Juiz e de um membro do Ministério Público, o autor do fato é perguntado se deseja aceitar a transação penal, com todos os seus fogos de artifício (não aceitação de culpa, não gera reincidência, não traz os efeitos normais de uma sentença condenatória, etc.), recebendo uma pena restritiva de direito, ou se vai "enfrentar" o processo, neste último caso, quase como se fosse enfrentar o Juiz e o Ministério Público, tal é o inconveniente indisfarçável gerado por quem não aceita a "benéfica" proposta.
A Constituição da República em nenhuma hipótese autorizou o legislador a dispensar o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, quando da previsão da aplicação da transação penal. Está lá, dito na moribunda Constituição em vigor, que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"(art. 5, inciso LIV, da CR).
Não tem qualquer relevância o fato de que a transação penal aplica pena não privativa de liberdade, ou, por acaso, a proibição constitucional de restrição dos direitos dos cidadãos, sem devido processo legal, não inclui os direitos afetados pela penas restritivas de direitos? Evidentemente que todos os direitos auferíveis pelos cidadãos são protegidos pela garantia individual mencionada.
Um bom conceito doutrinário de devido processo legal é o que afirma que o devido processo não se alcança meramente com a observância do que exposto em qualquer lei. Necessário é que a lei garanta a ampla defesa e o contraditório, com paridade de armas, no procedimento que estabelece. Se não fosse assim, a garantia constitucional seria esvaziada, pois qualquer absurdo, como ausência de contraditório, desde que previsto em lei, não poderia ser questionado.
Voltemos à audiência preliminar. Naquele momento, não há qualquer tipo de investigação realizada, carecendo a defesa de elementos para bem aferir se a transação penal seria realmente um benefício.Devemos lembrar que o processo penal pode resutlar numa absolvição inclusive por inexistência fática, art. 386, I, do CPP.
Parece-nos muito claro que o autor do fato não tem qualquer direito à ampla defesa e contraditório antes da sanção que lhe é aplicada mediante a homologação judicial da transação penal.
A solução "consensual" para o problema não satisfaz. Costuma-se dizer que há uma troca de concessões entre o autor do fato e o Ministério Público. O autor do fato declinaria de seu direito de ter um contraditório e uma defesa ampla e o Ministério Público abriria mão da aplicação de uma pena privativa de liberdade.
Nada mais falacioso.
Em primeiro lugar, o auto do fato não pode abrir mão de uma garantia individual constitucional, que é absolutamente indeclinável. Lembremos que a defesa técnica é obrigatória no nosso sistema processual penal. O autor do fato tem que se defender mesmo que não queira.
Em segundo lugar, o Ministério Público não pode optar por uma pena restritiva de direitos em detrimento de uma pena privativa de liberdade, pois o órgão acusador, na denúncia, não pede aplicação desta ou daquela pena, mas apenas apresenta pedido de condenação. A par disso, com a possibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, conforme art. 44, do Código Penal, resta altamente improvável que alguém venha a sofrer restrição de sua liberdade em razão de uma condenção criminal no âmbito do Juizado Especial Criminal.
Outros problemas de constitucionalidade ainda poderiam ser apontados, na fomra de transação penal apresentada pela lei n.9099/95, como, por exemplo, a existência de pena sem processo, pois a transação penal é homologada antes do oferecimento da denúncia. Podemos, no entanto, englobar também esse problema na nítida violação ao devido processo legal, ampliando este conceito.
Uma posição doutrinária interessante é a que considera a proposta de transação penal como uma modalidade de exercício da ação penal condenatória. De fato, a lei n. 9.099/95 ao dispor que "não sendo caso de arquivamento" (art. 76, da lei n. 9099/95) é que haverá a proposta de transação penal, revela a verdadeira natureza de tal proposta, que, sem dúvida alguma, traz os elementos integrantes de uma acusação: imputação de um fato tido por delituoso e um pedido de condenação (ainda que a pena restritiva de direito).
No entanto, esta proposta doutrinária somente pode afastar o problema da aplicação de pena sem processo, pois, havendo exercício da ação penal, o processo teria seu início e o procedimento seria aquele previsto pela legislação, mas não tem o condão, a nosso ver, de resolver a grave inconstitucionalidade presente na aplicação da transação penal mesmo antes do exercício do contraditório e da ampla defesa.
A nosso sentir, somente há uma forma de se aplicar a transação penal sem produzir agressão ao devido processo legal. Tendo-se em conta a garantia da ampla defesa e do contraditório e a previsão constitucional da transação penal, a mais viável maneira de garantir eficácia às duas disposições constitucionais é o uso da técnica de interpretação conforme à Constituição da República.
A transação penal, dessa forma, somente seria constitucional se, e somente se, fosse aplicada ao final do procedimento estipulado pela lei n. 9.099/95.
Com a proposta de transação penal sendo feita ao final do procedimento previsto na lei n. 9.099/95, estar-se-ia garantindo o contraditório e a ampla defesa ao autor do fato. Nesse caso, após as alegações finais orais, o autor do fato poderia analisar o conjunto probatório produzido e, aí sim, verdadeiramente optar pela aceitação da proposta de transação penal, obtendo alguns efetivos benefícios (que acima chamamos de fogos de artifício).
Todavia, se o autor do fato, ao analisar o conjunto probatório, juntamente com seu advogado, sentir que não há espaço para a prolação de uma sentença condenatória, eis que conseguiu constrastar a acusação, poderá, então, optar pela sentença, sendo-lhe a absolvição muito mais benéfica que a transação penal, por óbvio.
A escolha do autor do fato, na nossa posição, seria realizada sem o temor de enfrentar um "processo criminal", proporcionando-se a um verdadeiro réu o exercício do contraditório e da ampla defesa.
A celeridade processual, fundamento para a fragilização de tantas garantias conquistadas a duras penas pela civilização, estaria mantida, pois a audiência, nesse caso, seria única.
Apesar da crescente demanda que o Supremo Ttribunal Federal e todos os juízos nacionais enfrentam, nunca é demais, nem mesmo tarde, esperar que nossos juízes e corte constitucional cumpram com sua missão de defender a Constituição da República, ou, ao menos, o que resta dela.
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