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Partição de funções e poderes estatais e controle de constitucionalidade

01/01/2007 às 00:00
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Introdução breve

            A questão da detenção de poder político, entendido este como possibilidade de opção política legislativa, está intimamente ligada com a noção de legitimidade dentro de certa formatação de estado e de governo. A teorização que serve de fundamento para as abordagens sucedentes fez-se no século XVIII, inspirada pelo início do triunfo do liberalismo econômico de bases comerciais e industriais.

            O liberalismo iniciante demandava um substrato normativo conducente a maior grau de estabilidade frente ao poder estatal de base monárquica. Com efeito, todo o esqueleto teórico das teorias de fracionamento do poder estatal, segundo critérios mais ou menos precisos de funções precípuas, visa a garantir a iniciativa particular frente aos poderes do estado, principalmente no que tange às liberdades de circulação e á tributação.

            A detenção de poder político pelo judiciário relaciona-se à forma de sua constituição, principalmente de seus órgãos de cúpula. Anteriormente ao estabelecimento das funções de controle de constitucionalidade de atos normativos, a questão não se afigurava apta a gerar problemas conceituais em sistema de inspiração francesa, nem norte-americana. Na modelagem francesa, tinha-se um judiciário intérprete restrito das normas legais escritas. Sua independência e liberdade estava bastante bem delimitada pela função de aplicador de leis, não lhe cabendo juízos de adequação destas leis a paradigmas superiores, ainda que se tratasse da constituição.

            Na sistemática inicial norte-americana, tinha-se, como ainda hoje, uma amplitude de interpretação e de aplicação maior, na medida em que o sistema tem forte inspiração costumeira e, principalmente, porque os juízes são majoritariamente eleitos. Detém poderes políticos porque chegam ao cargo politicamente. Por outro lado, sempre se admitiu a confrontação da lei com a constituição, em quaisquer julgamentos submetidos ao judiciário.

            Notadamente a partir do século XX, o problema do controle de constitucionalidade dos atos normativos toma maior relevo, o que se poderia explicar historicamente com as experiências de forte ampliação e sucessivo retrocesso do liberalismo político. Em poucas décadas, a Europa experimentou ciclos de prática democrática massificada e de regimes fortemente autoritários. Os períodos do tipo autoritário geralmente conduzem à formulação de sistemas de controle mais acentuadamente abertos.


Controle de constitucionalidade e poder estatal

            Despontou, no direito europeu continental, o aperfeiçoamento das teorias de partição de poderes estatais, superando-se a ortodoxia da tripartição. Os critérios funcionais inspiradores da tripartição não se mostravam tão nítidos e o funcionamento do estado demandava um sincretismo funcional visível na prática da atuação estatal.

            A adoção de governos de maioria parlamentar levou a função executiva para o âmbito das assembléias de representantes com uma grande vantagem sobre a tripartição estrita. Era possível manter-se a estabilidade desejável da chefia do Estado ao tempo em que a chefia do governo poderia ser alterada a partir de critérios formais de maiorias, segundo as necessidades políticas momentâneas.

            A percepção de que a chefia do Estado não se confundia necessariamente com a chefia do executivo levou à superação de vários presidencialismos que se apresentavam então incapazes de cumprir sua missão de manter estabilidade nacional e governar o cotidiano repleto de peculiaridades. Por outro lado, os sistemas de função executiva desempenhada por agentes originados do parlamento, segundo critérios de maioria, permitia adotar formas de estado monárquicas, tendentes a maior estabilização nacional.

            A contaminação do sincretismo funcional chegou às funções judicantes, implicando o desempenho de atividades legislativas, positivas ou negativas, pelo judiciário. Implica, também, em funções jurisdicionais cometidas aos parlamentos, o que se evidencia, por exemplo, nos julgamento políticos de seus próprios membros.

            Nesse ambiente conformam-se as cortes constitucionais europeias, destinadas ao controle de compatibilidade de leis e outros atos normativos ao paradigma superior que é a constituição. A partir da noção de supremacia constitucional constrói-se toda a teoria do controle abstrato de constitucionalidade, instrumento de prevenção de normas desconformes ao seu fundamento de validade.

            Nos sistemas de controle adotados na europa continental, pouco espaço resta ao chamado controle concreto, aquele que implica a resolução do problema de constitucionalidade como antecedente prejudicial do julgamento de um caso entre partes. Coerentemente com a noção de supremacia, tais formatações consagram mecanismos de deslocamento da questão encontrada concretamente para âmbitos de abordagem abstrata.

            Então, a questão da constitucionalidade julga-se, no órgão competente, a bem da manutenção da ordem jurídica coerente verticalmente. Os efeitos em litígios serão reflexos da manutenção ou extirpação da norma cuja constitucionalidade é duvidosa. Afastam-se os órgão de controle dos julgamentos segundo direitos subjetivos parciais e desempenha-se uma função técnica e política.

            A jurisdição constitucional não merece tal nome, senão impropriamente, porque não se julgam atos normativos. Afere-se sua viabilidade no mundo jurídico segundo sua feitura conforme às regras procedimentais e segundo tratem de matérias possíveis. A inconstitucionalidade pode revelar-se sob os aspectos formal e material, portanto. O resultado do controle abstrato de constitucionalidade é nitidamente legislativo, porque implicará manutenção ou extirpação de uma norma.

            Por conta da natureza da função – técnica, política e legislativa – surgem questões importantes quanto à formação da corte constitucional. Seus integrantes devem ter legitimidade que não se obtém senão pelos mecanismos da democracia representativa. Enfim, se não são eleitos diretamente pelo povo, devem se legitimar por derivação, mediante nomeação do chefe do Estado ou do Parlamento. O âmbito de escolha pode se circunscrever a certos grupos, mas a atribuição da escolha relaciona-se diretamente com a representatividade que se deve transmitir.

            A constituição federal deixa a necessidade implícita, na medida em que afirma o poder estatal soberano como emanação do povo, seja diretamente, seja indiretamente, por meio dos mecanismos de opção e confirmação popular, tais como plebiscito e referendo. Ora, somente existe poder judiciário propriamente no Supremo Tribunal Federal, pelo que tem de legislador negativo, o que somente se faz detendo parcela do poder estatal soberano.

            Verifica-se, ademais, que a função fiscalizadora de constitucionalidade está presente nos outros poderes do estado. O parlamento obviamente elabora leis atendendo ao estabelecido na constituição e, para tanto, tem comissão específica. O executivo exerce controles prévio e póstumo, uma vez que os projetos enviados presumem-se conformes à constituição e que o veto presidencial diante da inconstitucionalidade é imperativo.

            O valor maior a ser preservado é a própria lei fundante, mais que as relações jurídicas de que decorram lesões a direitos subjetivos. Por isso que o controle da lei já publicada concentra-se em único órgão detentor de parcela do poder estatal, com óbvia função política portanto, ainda que exercida segundo parâmetros e conceitos jurídicos.

            No Brasil, é notável como indicador da lógica do sistema, que a indicação do integrante da corte caiba ao chefe de estado, sob censura do Senado Federal, casa parlamentar de representação dos estados-membros da federação. Alguma confusão sempre decorrerá da infeliz confusão das funções de chefia do estado e do poder executivo, no modelo brasileiro. Tem levado a insurgências conceitualmente infundadas contra o formato de nomeação dos ministros. Contudo, é conveniente lembrar que a indicação e posterior nomeação não é feita pelo Presidente da República como chefe de poder, mas como chefe de Estado.

            Nos Estados Unidos da América do Norte a questão não suscita tantas controvérsias porque quase todo o sistema se baseia em magistraturas eletivas e a noção de exercício de democracia representativa não gera tais dificuldades. A partir daí, compreende-se também a maior desenvoltura com que atua o controle difuso, concreto, de constitucionalidade. Muito firmemente estabelecida a posição de agente político do magistrado, ainda que de primeiro grau, mais naturalmente aceita-se seu posicionamento diante da questão constitucional.

            O Brasil adotou ambiguidades de conciliação difícil, no seu sistema de controle de constitucionalidade. Não se trata de afirmar a impossibilidade de coexistência dos controles concreto e difuso, mas de apontar lacunas na pretendida coexistência. Recentemente, tem-se pretendido aperfeiçoar o sistema, mediante adoção de instrumentos que implicam efeitos naturalmente decorrentes dos julgamentos abstratos para os julgamentos concretos. Não chegamos ao incidente de deslocamento do julgamento da questão constitucional, o que seria evolução salutar, mas adotaram-se formas de ampliação da atitude legislativa negativa do Supremo Tribunal Federal.

            O deslocamento do julgamento da questão constitucional, detectada em uma ação posta diante do magistrado de primeiro grau, adota-se em alguns países europeus, como instrumento de eliminação da controvérsia constitucional, evitando-se a insegurança e a repetição de julgamentos idênticos. Revela-se muito de acordo aos sistemas de governo parlamentarista e de direito positivo escrito, com maior ou menor rigidez constitucional.

            Fortalecido o caráter técnico político da corte constitucional ela mostra-se disponível para a função com liberdade de superação de paradigmas como aquele da nulidade absoluta da norma inconstitucional, de que decorre a retroação necessária da decisão. Afasta-se, também, sua natureza de última instância recursal, ou órgão de cúpula do judiciário. Esse último efeito implicaria, para transplante no modelo brasileiro, a adoção do deslocamento.

            A questão é a indesejável atribuição ao Supremo Tribunal Federal dos julgamentos de enorme número de recursos extraordinários, que veiculam uma lide concreta entre partes. Partiu-se para a tentativa de solução do problema com súmulas enfeixadoras do entendimento sobre a questão versada individualmente em vários recursos. A súmula teria efeitos vinculantes, de maneira semelhante à vinculação decorrente da decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade.

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            Pode mostrar-se um poderoso instrumento de adequação racional da jurisdição constitucional brasileira, mas ainda apresentará inconvenientes. A necessidade de tramitação de vários processos até chegarem na etapa do recurso extraordinário é a mais evidente delas. À vista da ênfase que se tem dado à celeridade processual e à segurança das relações jurídicas, a concentração da jurisdição constitucional, sem a supressão do controle difuso poderia ter-se feito por outra forma.

            Se se adotasse o deslocamento da apreciação da questão constitucional relevante, o lapso em que a norma discutida ficaria com sua presunção de constitucionalidade sob suspeita provavelmente seria diminuído. Haveria grandes vantagens para a estabilidade das relações, porque julgamentos esparsos não seriam precedentes a se lançarem contra a norma, nos juízos mais diversos. Diante da controvérsia o magistrado, delimitando-a, deslocaria a análise abstrata para o Supremo Tribunal Federal, que poria fim às dúvidas. Após, decidiria o magistrado de primeiro grau a partir da constitucionalidade ou inconstitucionalidade já fixada pelo poder competente.

            Convém observar que o julgamento do incidente de inconstitucionalidade, suscitado no caso concreto, nos tribunais, demanda suspensão da lide subjetiva e reserva de plenário para seu deslinde. Resolvida a controvérsia constitucional, volta a lide originária ao seu curso, aplicando-se a solução encontrada pelo plenário para a questão abstrata. Bastante coerente, inclusive, com o incidente de deslocamento, como se percebe.

            Qualquer que seja a solução adotada finalmente, certo é que o número excessivo de recursos extraordinários é sintoma de necessidade de aperfeiçoamentos no sistema de controle de constitucionalidade. Trata-se de consagrar a corte constitucional com suas atribuições de poder estatal, para além de última instância recursal do sistema judiciário. Além disso, conferir mais celeridade ao trâmite processual e estabilidade à ordem jurídica, tornando-a menos submetida a períodos de incerteza.

            O magistrado de primeiro grau não perde a possibilidade detectar a controvérsia constitucional relevante, nem se vê obrigado a aplicar a lei inconstitucional. Com efeito, cabe-lhe, com adoção de deslocamento de apreciação, a identificação do caso relevante. Por outro lado, uma vez mantida ou afastada a constitucionalidade do ato normativo, o magistrado procederá como se estivesse diante de decisão em ação direta ou, ainda, diante de súmula vinculante.


Algumas Conclusões

            A experiência político-institucional brasileira é muito fragmentada, com várias interpolações de períodos autoritários e mudanças nas formas de Estado e de governo. Passou-se por estatuto de colônia, por uma politicamente exitosa monarquia parlamentarista e chegou-se a um Estado artificialmente federal, de governo presidencialista muito marcante. A experiência política dos governos de gabinetes formados nas maiorias parlamentares não foi aproveitada na república presidencialista inaugurada no final do século XIX.

            O século XX teve dois longos períodos de república afastada da democracia representativa, sendo o primeiro afastado também da forma federativa. Não obstante, os regimes guardavam relativa coerência formal interna, ainda que se questionem fins a que se visaram e resultados obtidos. Não é objeto deste curto trabalho analisar a fundo as opções políticas que se fizeram, contudo.

            A ordem instituída em 1988 não foi muito exitosa no desenho do Estado, do governo, enfim, dos mecanismos institucionais do jogo político e dos controles a se fazerem. Resultou obra confusa, talvez por conta do afã de superação do período ditatorial imediatamente anterior, e perdeu-se uma oportunidade de sofisticação das instituições.

            Manteve-se na mesma pessoa a confusão das chefias do Estado e do governo. O Estado, conceitualmente superior aos poderes em que se fraciona a soberania estatal, vê-se abalado todas as vezes em que se abala politicamente o chefe do executivo. O parlamento, fragmentado em interesses múltiplos, embora não ideologicamente – por falta de filiações propriamente ideológicas – dá e retira apoio segundo conveniências momentâneas.

            O resultado são instabilidades próprias da democracia, mas que convenientemente deveriam atingir apenas os poderes fracionados, nunca o Estado. Os reflexos desse desenho institucional chegam à matéria de atribuições do poder judiciário, de legitimidade para decisões relativas à validade de leis e à maneira de se propagarem tais efeitos. O controle de constitucionalidade no Brasil não funciona suficientemente bem e tal deficiência não se deve a falta de recursos materiais e humanos, nem à lei infraconstitucional.

            Deve-se à conformação que se lhe deu na própria constituição, que tentou harmonizar assimetricamente modelos concentrado e difuso, sem atenção para características, pressupostos e consequências lógicas formais de cada qual. A amplitude do controle difuso de constitucionalidade, como incidente anterior ao julgamento de uma lide concreta, mostrou-se mais um gerador de inúmeros recursos que uma garantia de reflexos subjetivos de direitos constitucionais.

            A controvérsia realmente constitucional deve chegar ao Supremo Tribunal Federal, seja qual for o meio, a bem de não se infringir a supremacia constitucional, por um lado, e de não manter longamente sob suspeita a presunção de constitucionalidade das leis, por outro. A pacificação atinge-se com o controle difuso, irradiando efeitos amplos, próprios da lei.

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Sobre o autor
Andrei Lapa de Barros Correia

procurador federal em Campina Grande (PB), lotado no órgão de arrecadação da Procuradoria Geral da Fazenda

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Andrei Lapa Barros. Partição de funções e poderes estatais e controle de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1279, 1 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9346. Acesso em: 24 abr. 2024.

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