Após o segundo turno da eleição presidencial, o noticiário político se vê envolto por basicamente dois fatos: a) construção de uma coalizão partidária que dê sustentação ao novo governo, com a participação formal e efetiva de todo o PMDB, somado ao PT, PSB, PCdoB, PRB e, possivelmente, do PDT, o que também envolve as negociações políticas em torno da formação do Ministério do novo mandato presidencial; b) articulação de candidaturas aos cargos das Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em especial das respectivas presidências.
O PMDB, que elegeu as maiores bancadas partidárias nas duas casas, já reivindica a presidência das respectivas Mesas. Sustenta a sua pretensão, ainda, em antiga tradição que aponta para o respeito ao tamanho das bancadas partidárias, de modo a reproduzir a seguinte fórmula: ao partido de maior bancada é assegurado o cargo de Presidente (tradição que anda um pouco abalada: por exemplo, Severino Cavalcante foi eleito Presidente da Câmara em fevereiro de 2005, mas o seu partido (PP), à época, estava longe de ser o de maior bancada; com a renúncia de Severino Cavalcante ao mandato de deputado, foi eleito à Presidência da Câmara Aldo Rebelo, do PCdoB, partido que está entre aqueles de menor bancada naquela casa legislativa).
Já o PT, sob o fundamento de que obteve maior votação popular para a Câmara - ainda que essa maior votação não signifique a maior bancada partidária – reivindica o posto. O Presidente da República, por sua vez, já manifestou publicamente sua intenção de que o cargo, na Câmara, permaneça ocupado por Aldo Rebelo (PCdoB), e, no Senado, por Renan Calheiros (PMDB), embora o PFL já tenha lançado o nome do Senador José Agripino na disputa.
À parte dessa movimentação, é de se registrar que existe normatização constitucional a respeito, solenemente desconsiderada em eleições anteriores e, pelo que se vê das articulações presentes, também o será na eleição do próximo dia 01 de fevereiro. Trata-se da regra do parágrafo primeiro do art. 58 da Constituição Federal: "Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa".
Como visto, a Constituição impõe o respeito à proporcionalidade da representação partidária (ou dos blocos parlamentares) na composição das comissões e das Mesas. E o faz com o tom de garantia ("é assegurada").
Nisso, foi coerente com o prestígio que ela mesma – a Constituição – conferiu aos partidos políticos, no plano da democracia representativa. Esse prestígio pode ser destacado em diversas passagens: a) é condição de elegibilidade a filiação partidária (art. 14, § 3º, inciso V). Elegibilidade como elemento essencial do exercício, pelo povo, através de representantes eleitos, de sua soberania (parágrafo único do art. 1º), a indicar que os partidos políticos são instrumentos essenciais e indispensáveis à democracia representativa; b) partido político com representação no Congresso Nacional é parte legítima para a propositura de mandado de segurança coletivo (art. 5º, inciso LXX, alínea "a") e de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade (art. 103, inciso VIII); c) dedicou todo um capítulo (o quinto) do Título II - atinente aos direitos fundamentais - aos partidos políticos, assegurando-lhes liberdade de "criação, fusão, incorporação e extinção" (art. 17, caput) bem como "autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais" (parágrafo primeiro do art. 17); d) somente por iniciativa de partido político poderá a Casa Legislativa deliberar, por maioria absoluta, pela sustação do andamento de ação penal em face de um de seus membros (art. 53, § 3º); e) partido político representado no Congresso Nacional pode provocar a instauração de processos de cassação ou de extinção de mandato parlamentar (art. 55, §§ 2º e 3º); f) é vedada a edição de medida provisória sobre matéria relativa a partidos políticos (art. 62, § 1º, inciso I, alínea "a"); g) partido político é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (art. 74, § 2º); h) é vedado aos entes públicos instituir impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos (art. 150, inciso VI, alínea "b").
A única ressalva que a norma do § 1º do art. 58 da Carta Política de 1988 faz à garantia de representação partidária proporcional nas mesas diretoras é aquela expressa na fórmula "tanto quanto possível". Essa ressalva vem sendo interpretada de modo a esvaziar a regra. De acordo com o "consenso" que se formou no meio político, quando por força das injunções conjunturais "não for possível" assegurar a proporcionalidade, paciência, faz parte do jogo. Assim, se a maioria da Casa Legislativa vota e elege para a Presidência da Mesa um candidato pertencente a partido político que não possui a maior bancada, não terá sido desrespeitada a norma constitucional.
Essa visão é tão caolha quanto violadora, não só daquele específico preceito constitucional (art. 58, § 1º), como do conjunto de normas acima apontadas que, sobre prestigiar os partidos políticos, efetuam verdadeira ligação entre a vontade soberana do povo e a representação político-parlamentar.
Para ser coerente com todo o ordenamento jurídico-constitucional, a ressalva do "tanto quanto possível" comporta interpretação que leve em conta o número de cargos em disputa na Mesa e o número de partidos políticos representados na Casa Legislativa. Dada a possibilidade de haver (como efetivamente há, atualmente) mais partidos políticos representados do que número de cargos na Mesa em disputa, não será possível a todos eles possuir assento na Mesa. Se são sete os cargos em jogo, somente sete partidos poderão preenchê-los, ficando excluídos os demais. Só nessa hipótese não "será possível" assegurar, a esses partidos, o seu espaço proporcional na Mesa Diretora. Trata-se de uma impossibilidade material.
Afastada a ressalva, a distribuição das vagas existentes deverá então observar fielmente a proporção partidária em cada Casa Legislativa. De maneira que ao partido de maior bancada será assegurado o cargo mais importante, ao de segunda maior bancada será assegurado o segundo cargo mais importante, e assim por diante, até que se esgotem os cargos a serem preenchidos.
E não se diga que essa interpretação feriria a norma do § 4º do art. 57 da Constituição, que estabelece a data de 01 de fevereiro para que, em reunião preparatória, seja realizada eleição para as Mesas da Câmara e do Senado. Nada impede que haja eleições, que haja candidatos, que haja até campanha entre os concorrentes. O universo dos elegíveis é que vai se circunscrever, para cada cargo da Mesa, aos partidos que tenham direito a eles, de acordo com a regra da proporcionalidade.
Só assim será respeitada a vontade popular que, por meio do voto, deu a determinado partido certa dimensão política no Parlamento. Assegurar a representação partidária proporcional dos partidos políticos no preenchimento dos cargos nas Mesas Diretoras é garantir a supremacia da vontade do eleitor, além de evitar indevidas interferências do Poder Executivo, preservando a autonomia do Poder Legislativo.