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Da recepção parcial do art. 224 da CLT pela Constituição Federal de 1988

06/01/2007 às 00:00
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Garantir a qualquer empregado de banco a jornada de trabalho diferenciada de seis horas diárias é medida inconstitucional, por configurar privilégio, e não tratamento distinto por peculiaridades justificadoras.

INTRODUÇÃO

            São recorrentes na Justiça do Trabalho as causas que versam sobre horas extraordinárias. Dentre elas, merecem atenção especial aquelas onde figuram como reclamantes bancários e como reclamados instituições financeiras.

            A jornada normal de trabalho do bancário é de seis horas diárias, na forma do art. 224 da CLT. Quando o economiário exerce função de direção, gerência, fiscalização, chefia e equivalentes, ou quando desempenha qualquer outra função de fidúcia especial, sua jornada normal de trabalho passa a ser de oito horas diárias, consoante exceção estabelecida pelo § 2° do artigo já mencionado.

            Normalmente, a discussão travada nessas demandas tem como cerne a investigação a respeito das reais atribuições do empregado, por força do princípio da primazia da realidade. Não demonstrada na instrução processual que o bancário exercia pelo menos uma das funções enumeradas na CLT, e que excepcionam a jornada de seis horas diárias, o empregador é condenado ao pagamento de duas horas extraordinárias.

            Como os bancos costumam apresentar controle eletrônico rigoroso de cumprimento de horas trabalhadas, a discussão em torno das horas extraordinárias acaba se limitando à legalidade da jornada de oito horas, ou seja, se há, no caso concreto, a incidência do § 2° do art. 224 da CLT.

            Entrementes, a discussão deve ser ampliada, saindo da esfera meramente infraconstitucional para abranger questão constitucional, de modo que seja apreciada a recepção do art. 224 da CLT pela CF/88.


Da Regra Geral Constitucional: Jornada Normal de Trabalho de Oito Horas Diárias

            A Carta Magna de 1988 previu, como regra geral, a jornada de trabalho de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais para o empregado urbano e rural, impondo gratificação sobre a remuneração de horas extraordinárias, laboradas além da jornada normal. Essa é a redação do art. 7º, incisos XIII e XVI, in verbis:

            Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

            (...)

            XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

            (...)

            XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal;

            A Constituição de 1988 excepciona apenas as atividades realizadas em turnos ininterruptos de revezamento, o que se infere no inciso XIV, do artigo já colacionado:

            XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva;

            Além dessa ressalva, o texto constitucional não estabelece nenhuma outra, não fixando jornadas de trabalho diferenciadas para determinadas categorias profissionais.


Da Jornada Diferenciada do Bancário no art. 224 da CLT de 1943

            Jornadas de trabalho diferenciadas da regra geral fixada pela CF/88 são instituídas por leis esparsas e pela Consolidação das Leis do Trabalho. Dentre elas, ficou estabelecido, no ano de 1943, a jornada de seis horas para o bancário, com a seguinte redação original do art. 224 da CLT:

            Art. 224 Para os empregados em banco e casas bancárias será de seis horas por dia ou trinta e seis horas semanais a duração normal de trabalho, excetuados os que exercerem as funções de direção, gerência, fiscalização, chefes, ajudantes de seção e equivalentes, ou desempenharem outros cargos de confiança, todos com vencimentos superiores ao dos postos efetivos.

            O texto foi alterado em 1952, pela Lei nº. 1.540, passando a vigorar com a seguinte redação:

            Art. 224 O horário diário para os empregados em banco e casas bancárias, será de seis horas contínuas, com exceção dos sábados, cuja duração será de três horas, perfazendo um total de trinta e três horas de trabalho por semana.

            A última alteração se deu em 1985, pela Lei nº. 7.430, tendo sido imprimida a forma a seguir:

            Art. 224 A duração normal do trabalho dos empregados em bancos, casas bancárias e Caixa Econômica Federal será de 6 (seis) horas continuas nos dias úteis, com exceção dos sábados, perfazendo um total de 30 (trinta) horas de trabalho por semana.

            Verifica-se que desde a década de quarenta, com fundamento na CLT, os bancários gozam de jornada diária normal de trabalho de seis horas. As alterações promovidas no art. 224 da consolidação não modificaram a jornada diária de seis horas que fora inicialmente fixada.


Das Funções Desempenhadas pelos Bancários mais de Sessenta Anos Após o Início de Vigência da CLT

            Desde a instituição da jornada de trabalho diferenciada do bancário até a data de hoje, mais de sessenta anos se passaram. O mundo sofreu transformações profundas de ordem econômica, cultural, científica e social.

            As instituições financeiras acompanharam essas transformações, sendo, não raras vezes, fomentadoras e catapultas das mudanças. No mundo da tecnologia e da informação ocupam, quase sempre, posição de vanguarda na transferência, manutenção e segurança de dados eletrônicos.

            A estrutura organizacional e operacional dos bancos é nitidamente distinta daquela encontrada nas décadas passadas. A maior complexidade das ciências humanas e exatas demanda elevado grau de especialização e maior acuidade na divisão das tarefas.

            O papel desempenhado pelo empregado de banco está inserido dentro desse emaranhado de inúmeros focos de saber e poder. Cada vez mais a administração de uma instituição financeira requer a criação de cargos técnicos interdependentes, nos moldes das grandes empresas industriais e comerciais, de forma que existam quadros de pessoal capazes de elaborar, executar e fiscalizar projetos necessários ao crescimento da empresa e à preservação de sua competitividade no mercado.

            O tradicional empregado de banco, o caixa de agência, aquele que lida com numerário, com títulos de crédito e operações de pagamento, vem sendo velozmente substituído pelos equipamentos de alta tecnologia, os quais prestam atendimento eletrônico.

            Em nossa era, instituições financeiras ainda contratam os tradicionais operadores de caixa e gerentes de pontos de venda (agências), aqueles que atendem o público, porém, a massa de empregados que está nos bastidores, desenvolvendo atividades técnicas vinculadas aos centros de decisão e de aprimoramento do desempenho da empresa, é cada vez maior.

            A única razão para que os ocupantes desses novos cargos sejam intitulados bancários ou economiários decorre do fato de serem empregados de um banco, uma vez que as atividades que desenvolvem não guardam qualquer semelhança com aquela exercida nos tradicionais cargos de instituições financeiras.

            Muito pelo contrário, os serviços prestados por esses empregados são semelhantes ou idênticos àqueles desempenhados em cargos análogos de grandes empresas de outros ramos de atividade econômica.

            Essa realidade não pode ser ignorada pelo Poder Judiciário, ao qual cabe zelar pelo ordenamento jurídico pátrio, aplicando as suas normas aos casos concretos trazidos à sua apreciação. As normas são formulações que conjugam texto legal e fatos da vida, a partir de atividade intelectual interpretativa.


Da Isonomia Constitucional e Da Vedação à Discriminação Profissional Por Jornada de Trabalho Diferenciada

            Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é o princípio da isonomia, vedada qualquer forma de discriminação ou privilégio. Tratamento diferenciado somente pode ser concedido se houver motivo razoável. Reza o art. 3º, inciso IV, art. 5º, cabeça, e art. 7º, inciso XXXII, todos da CF/88:

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            Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

            (...)

            IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

            (...)

            Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

            (...)

            Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

            (...)

            XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos;

            As jornadas de trabalho diferenciadas, que excepcionam a regra geral constitucional de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, somente se justificam quando visam a proteger a integridade física e mental do trabalhador, em virtude da atividade específica que desenvolve.

            Se a jornada diferenciada não estiver calcada nesses valores, consubstanciará evidente privilégio, quebrando, por conseguinte, a isonomia constitucional.

            O princípio da razoabilidade deve ser utilizado como instrumento de averiguação da constitucionalidade do tratamento diferenciado concedido a determinada categoria profissional e em determinado tempo, observadas as condições de trabalho e o estado da técnica, os quais justifiquem a diferenciação promovida para a preservação da saúde do empregado.

            Como já mencionado, as atividades clássicas desempenhadas pelos empregados de bancos e tuteladas pela CLT em 1943, que eram a regra, se não estão em extinção, hoje estão se tornando a exceção, e sendo relegadas, ocupando estes empregados cargos com funções semelhantes ou idênticas àquelas desempenhadas por empregados de qualquer outra grande empresa.

            Por esse motivo, não é mais razoável a previsão abstrata da jornada normal de seis horas como regra geral para todos os empregados de bancos não incluídos no § 2° do art. 224 da CLT e que não ocupam cargo gerencial, cediço que, atualmente, a maioria deles não mais desempenha as atividades que a lei buscou tutelar.

            A CLT, nesse aspecto, não acompanhou a evolução da situação fática, e a regra prevista no seu art. 224 somente pode ser aplicada sob a ótica constitucional, a partir de uma interpretação finalística e conforme a Norma Maior, de modo que a proteção nela estatuída somente seja garantia aos empregados que efetivamente dela façam jus, afastando-se situações inconstitucionais.


Conclusão

            A previsão abstrata de jornada de trabalho normal de seis horas para todo e qualquer empregado de banco (art. 224 da CLT), desconsideradas as ressalvas feitas pela própria lei (art. 62 e art. 224, § 2º, da CLT) é inconstitucional por violar a isonomia erigida pela Carta Magna, configurando privilégio, e não tratamento diferenciado que encontre suporte na razoabilidade.

            Nesse sentido, adotadas as técnicas de controle de constitucionalidade, mormente a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução do texto e a interpretação conforme a constituição, conclui-se que o art. 224 da CLT foi parcialmente recepcionado pela CF/88.

            A jornada normal de trabalho de seis horas somente é direito subjetivo dos empregados de instituições financeiras que exercem as atividades típicas dos bancários, entendidas como aquelas desempenhadas quando do início da vigência da CLT, em 1943. O atendimento ao público, o manuseio de numerário e títulos de crédito e a venda direta de produtos bancários são exemplos dessas atividades.

            Os demais empregados de bancos, que não exercem as atividades típicas dos bancários, não gozam do direito à jornada diferenciada de seis horas diárias, entrementes, estão sujeitos à regra geral de oito horas prevista na CF/88, na medida em que suas condições de trabalho são assemelhadas às dos empregados de outras entidades empregadoras.

            Garantir a qualquer empregado de banco a jornada normal de trabalho diferenciada de seis horas diárias é medida inconstitucional, por configurar privilégio, e não tratamento distinto por peculiaridades justificadoras, respaldadas pelo princípio da razoabilidade.

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Sobre o autor
Igor Felipe Guskow

advogado da Caixa Econômica Federal em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSKOW, Igor Felipe. Da recepção parcial do art. 224 da CLT pela Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1284, 6 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9364. Acesso em: 19 abr. 2024.

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