Resumo: O presente artigo destina-se a analisar os aspectos históricos e político-sociais que levaram às Forças Armadas a serem inseridas no ordenamento jurídico pátrio como as guardiãs constitucionais da lei e da ordem. Sem a pretensão de esgotar a matéria, visa ainda fazer uma breve crítica a respeito dos fins a que se destina tal papel e a aceitabilidade do mesmo na conjuntura democrática atual.
Palavras-chave: Forças Armadas – República - Segurança Pública – Ordem - Controle Social – Constituição.
Sumário: 1. Introdução; 2. Aspectos históricos; 3. Aspectos jurídicos; 4. A garantia da lei; 5. A garantia da ordem; 6. Considerações finais; 7. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
O emprego das Forças Armadas em operações de segurança pública voltou a ser amplamente discutido. Após os acontecimentos ocorridos em dezembro de 2006, quando grupos de delinqüentes levaram o pânico às ruas do Rio de Janeiro atacando postos policiais, incendiando vários ônibus, demonstrando, com isso, a debilidade dos órgãos de segurança pública, o emprego das Forças Armadas passou, mais uma vez, a ser citado como opção para resolver o problema da criminalidade.
Grande polêmica existe em torno dessa questão. De um lado, encontramos setores da sociedade avessos ao emprego das forças armadas em questões internas, seja pelo temor do surgimento de condições que propiciem um novo Estado autoritário, aos moldes da ditadura militar, ou por uma simples questão de disputa de poder político, por questionarem o preparo das Forças Armadas para este tipo de emprego, ou ainda, por medo de se admitir a incompetência para solucionar o problema da falta de segurança nas grandes metrópoles brasileiras. Por outro lado, encontramos aqueles que vêem na capacidade bélica militar a possibilidade de impor a "fórceps" a ordem e o respeito às leis.
Acreditamos que as opiniões antagônicas ocorrem por desconhecimento de alguns elementos da história e de alguns ideais filosóficos que, juntamente com aspectos sociológicos nos quais se desenvolveu a sociedade e o sistema jurídico brasileiro, levaram as Forças Armadas a ocuparem, ainda que em última instância, o papel de garantidoras da legalidade e da ordem.
Para entender o papel dos militares na garantia da lei e da ordem, conforme determina o texto constitucional, torna-se mister a compreensão do contexto no qual esta atribuição foi inserida na Carta Maior, analisando, inclusive, seu significado filosófico e sociológico.
2. ASPECTOS HISTÓRICOS
Durante o período de organização das instituições militares, ocorrido durante a monarquia, as Forças Armadas destinavam-se basicamente à consolidação da independência do Brasil e a combater o inimigo estrangeiro. Este cenário se modifica após a proclamação da República, uma vez que o Exército e a Marinha passam a buscar uma participação mais ativa nas decisões políticas do país. Isto pode ser perfeitamente compreendido ao analisarmos as contribuições dadas pelos militares em assuntos de interesse nacional, tais como a própria proclamação da República, o Tenentismo, o Estado Novo e, finalmente, a política intervencionista idealizada pelo General Góes Monteiro durante a era Vargas e cujo fomento culminou com os acontecimentos de 1964.
Após a proclamação da República, com a promulgação da Constituição Republicana de 1891, o texto constitucional passou a prever no seu art. 6º, inciso 3º, que o governo federal não poderia intervir nos Estados da Federação, exceto "para restabelecer a ordem e a tranqüilidade nos Estados, à requisição dos respectivos Governos". A idéia de posicionar as Forças Armadas como garantidoras da ordem é repetida nas Constituições de 1934 (art. 162), de 1937 (art. 166, in fine), de 1946 (art. 177), de 1967 (art. 92, §1º), de 1969 (art. 91) e, finalmente, no art. 142 da Constituição Federal de 1988.
3. ASPECTOS JURÍDICOS
As Forças Armadas têm previsão constitucional no Título V, Capítulo II, da Constituição Federal. Diz o artigo 142 do referido capítulo:
"Art. 142 - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
O citado artigo prevê claramente o emprego dessas forças em operações de segurança pública condicionado à requisição dos poderes constitucionais e sob a autoridade do Presidente da República. Não podem, portanto, agir sem serem requisitadas e sem a autorização do chefe do executivo federal.
Apesar da possibilidade de utilizar-se as Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, ou seja, em operações internas relativas à segurança pública, entendemos, com base no artigo 144 da Constituição Federal, que esse emprego deve dar-se como último recurso de defesa dessas instituições. O já citado artigo do texto constitucional lista os órgãos que possuem a tarefa precípua de preservar a ordem pública:
"Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares"
Como podemos constatar, as Forças Armadas não estão incluídas em nenhum de seus incisos. Tal constatação demonstra o caráter subsidiário com que os militares federais devem ser empregados em operações dessa natureza. Esta idéia é reiterada pelo artigo 15, § 2º, da Lei Complementar 97/1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Diz o referido parágrafo:
"A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal".
Além das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública citados no art. 144 da Constituição Federal, também encontramos a Força Nacional de Segurança que, como entidade de caráter federal, possui a atribuição, conferida através do Decreto 5.289/04, de atuar em "atividades de policiamento ostensivo destinadas à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio" (art. 2º).
4. A GARANTIA DA LEI
Apesar de algumas pequenas distinções vocabulares, porém de mesmo significado, pode-se notar a presença em quase todos os textos constitucionais da expressão "lei e ordem". A lei, segundo nos ensina o ilustre professor Miguel Reale, é quando a norma escrita constitui um direito, "introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas".
Dos ensinamentos de Miguel Reale podemos extrair duas conclusões: a primeira é que o papel das Forças Armadas, segundo o art. 142 do texto constitucional vigente, é o de proteger os direitos inseridos no nosso ordenamento jurídico, do qual as leis são parte integrante e essencial. Em uma análise mais ampla, ao defender a lei e a ordem, as Forças Armadas estão imbuídas na tarefa de prover ao Estado condições que lhe permitam efetivamente proteger os bens jurídicos por ele tutelados, sem os quais, tornar-se-ia impraticável a vida em sociedade. A segunda conclusão, ainda analisando os ensinamentos do eminente jurista, é que a lei também se presta a disciplinar o comportamento dos indivíduos em sociedade e as atividades da Administração Pública, ou seja, às Forças Armadas, como parte integrante da Administração Pública, cabe a fiel observância às leis. Sua atuação como garantidora da legalidade deve dar-se conforme o que a lei determina e estritamente dentro dos seus limites, sob pena de colocar-se em risco a eficácia do próprio ordenamento jurídico do qual devem ser as guardiãs.
Obviamente, os militares devem encontrar na lei a sua fonte de legalidade no que diz respeito ao respaldo necessário às ações a serem empreendidas na garantia da própria eficácia normativa. Também devem ter nela os limites de sua atuação e, com isso, agregar às suas atividades o elemento de legitimidade necessário a qualquer ação estatal que se processe dentro de um regime democrático.
5. A GARANTIA DA ORDEM
Com relação à ordem, citada desde a primeira Constituição republicana, acreditamos ser esta um reflexo da influência positivista sofrida pelos militares durante o fim do Império e os primeiros anos da República. Naquela época, os oficiais do Exército passavam por um curso de formação mais voltado para as ciências técnicas do que para as disciplinas militares.
Com a chegada de Benjamin Constant à Escola Militar da Praia Vermelha, este reconhecido entusiasta da teoria positivista faz com que a influência dessa teoria nos ensinamentos da escola se acentue. Ao proclamar-se a República, com a inegável participação e influência desses militares, o ideário positivista passa a ser inserido por eles em todos os aspectos da vida pública brasileira, do lema "Ordem e Progresso", inscrito no pavilhão nacional, ao texto da Constituição de 1891, que em vários dos seus artigos cita a palavra ordem com o intuito de orientar as relações jurídicas e a conduta social.
Segundo a filosofia positivista de Augusto Comte, seria impossível alcançar o progresso sem a ordem. Suas palavras claramente explicitavam essa idéia, dizia Comte: "o amor por princípio e a Ordem por base, o Progresso por fim". A ordem se baseava em dois aspectos principais e interdependentes, a preordenação da sociedade para viabilizar o progresso e o progresso ocorrendo de forma ordenada. A ordem seria condição indispensável ao progresso de qualquer sociedade e a concretização deste progresso deveria ocorrer de forma ordeira, isto é, sem sobressaltos, devendo este progresso fluir de forma natural e contínua, cabendo ao homem apenas resignar-se e esperar o desenvolvimento do seu meio social dentro de uma ordem preestabelecida por leis que, por sua vez, também eram preestabelecidas para tal fim.
Ainda em relação à ordem, vale destacar que, segundo o sociólogo estadunidense Edward Alsworth Ross, a ordem na sociedade não é algo que surge espontaneamente do comportamento dos indivíduos, ela é fruto do controle social e é através deste que ela se impõe. Segundo Ross, seria impossível existir uma sociedade sem ordem.
A ordem pregada pela filosofia positivista, e segundo esta, requisito indispensável ao progresso, acaba por acarretar na necessidade de um rigoroso controle social que veio somar-se ao modelo de controle social que já era praticado no Brasil durante o período colonial. Os colonizadores europeus, quando aqui chegavam, deparavam-se com uma grande massa de escravos e outras etnias que deviam ser subjugadas. Essa elite passa então a impor um violento processo de ordenação do comportamento das outras etnias que aqui viviam ou que para cá eram trazidas, desta forma, adequavam o comportamento da maioria aos seus objetivos mercantis que, em última análise, caracterizavam o progresso da colônia.
De acordo com a visão histórica e política do país, as Forças Armadas, como entidades estatais de maior poder bélico, isto é, com uma maior capacidade repressora, são vistas como adequadas à imposição dessa ordem desejada.
Essa herança positivista vem firmando-se no texto constitucional brasileiro ao longo do tempo, mais especificamente ao longo de todo o período republicano. É essa a ordem que o texto constitucional vigente determina que seja mantida, inclusive, e em última instância, com o emprego do poderio bélico das Forças Armadas.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da história do país, as Forças Armadas, através de uma ativa participação no processo decisório, acabaram inserindo em toda a sociedade sua filosofia e ideologia. Este é o caso do pensamento positivista que, atualmente, ainda pode ser encontrado refletido no ordenamento jurídico vigente. Entender essa influência e a forma como ela ocorreu é fundamental para que se possa discutir a necessidade e a viabilidade de se utilizar as Forças Armadas como instrumento do Estado para a garantia da lei e da ordem.
Quanto às operações afetas à segurança pública, parece-nos uma opção razoável incrementar a já constituída Força Nacional de Segurança. Esta é composta, em sua maioria, por integrantes dos órgãos diretamente envolvidos neste tipo de operação, ou seja, adapta-se perfeitamente às necessidades federais de intervir no território nacional para garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. As Forças Armadas, por sua vez, podem auxiliá-la indiretamente, provendo-lhe o apoio necessário em áreas como a inteligência, a logística, o treinamento em algumas táticas especiais, o fornecimento de equipamentos de uso restrito, etc. Com isso, não seria necessário retirar as Forças Armadas de sua atribuição constitucional principal toda vez que o governo central necessita-se socorrer ou intervir em alguma unidade da federação.
Resta-nos ainda debater se o conceito de ordem, historicamente inserido na Constituição Federal, está adequado à sociedade globalizada em que vivemos ou se é mantido como forma institucional de segregação, através da imposição de um severo controle social às classes menos favorecidas.
Parece-nos o ideário positivista um pouco ultrapassado para os fins sociais e econômicos que orientam o processo decisório das atuais políticas de governo. Não se trata de defender o caos ou a anarquia, mas de repensar os ideais que vêm se perpetuando em nossa legislação desde as repúblicas oligárquicas e os governos autoritários até os dias atuais. Traria conseqüências nefastas à democracia brasileira continuar o culto ao modelo ultrapassado e autoritário de controle social implementado pelos colonizadores portugueses e perpetuado pelo ideário positivista da primeira república.
Consideramos razoável e necessário a iniciativa de se incrementar um mecanismo eficaz de repressão ao crime, simultaneamente à implementação de políticas públicas que visem diminuir as desigualdades sociais. O que não nos parece coerente é acreditar que aumentando o poderio bélico com o qual se combate o crime e utilizando, única e exclusivamente, a força como meio de manutenção da lei e da ordem, estaremos consolidando as instituições democráticas e alcançando o tão almejado progresso.
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