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O contrato de vesting nas sociedades limitadas

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A aplicação do contrato de vesting pode ocorrer no âmbito das sociedades limitadas, dadas as disposições do art. 1.055, § 2º, do Código Civil?

1. INTRODUÇÃO

Guiado por seu principal vetor consistente no escopo de lucro, o direito empresarial é ramo altamente capilarizado em seus sistemas de organização e procedibilidade.

A inesgotável necessidade de os agentes econômicos programarem de maneira juridicamente segura[1] suas movimentações comerciais reclama a adoção de mecanismos contratuais modernos que viabilizem, de um lado, a melhor performance da empresa em busca de seu êxito e, de outro, o implemento de garantias de mínima previsibilidade do negócio ao longo do tempo. Sobre a relevância dos contratos no ecossistema empresarial, indispensável é a lição de FORGIONI (2018, ps. 27-28):

“O tráfico mercantil concretiza-se por meio dos contratos e, para compreender o funcionamento do mercado, devemos caminhar por esse enredado. Uma vez nele, emerge a questão: nessa teia, que papel cabe ao direito? Até que ponto ela é formatada e/ou formata o regramento jurídico que a disciplina?

O primeiro passo para destrinçar essa articulação de relações é considerar que a empresa celebra contratos com as mais diversas categorias de agentes econômicos: consumidores, Estados, trabalhadores e assim por diante. A compreensão de seu perfil contratual passa pela classificação desses acordos conforme o sujeito que com ela se relaciona. Assim, divisados vários grupos de contratos, percebe-se que cada qual assumirá características específicas e exigirá tratamento jurídico peculiar.

A atenção do comercialista recai sobre os contratos interempresariais, ou seja, aqueles celebrados entre empresas, i.e., em que somente empresas fazem parte da relação. Ao proceder assim, identificamos os contratos empresariais com aqueles em que ambos [ou todos] os polos da relação têm sua atividade movida pelo lucro. Esse fato imprime viés peculiar aos negócios jurídicos entre empresários.”

Não obstante a atividade empresarial seja per se dotada de extremo dinamismo e insegurança, no particular âmbito da matéria as chamadas “Startups” despontam como exemplo maior de ramo que demanda soluções tecnológicas jurídicas – especialmente contratuais – altamente variadas.

O conceito das “Startups” restou positivado na legislação brasileiro através da edição da Lei Complementar 167/2019, a qual inseriu na chamada “Lei do Simples” (Lei Complementar 123/2006) o inovador art. 65-A e seus respectivo §§ 1º e 2º, que assim dizem (grifamos):

Art. 65-A. É criado o Inova Simples, regime especial simplificado que concede às iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo que se autodeclarem como startups ou empresas de inovação tratamento diferenciado com vistas a estimular sua criação, formalização, desenvolvimento e consolidação como agentes indutores de avanços tecnológicos e da geração de emprego e renda.      

§ 1º Para os fins desta Lei Complementar, considera-se startup a empresa de caráter inovador que visa a aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos, os quais, quando já existentes, caracterizam startups de natureza incremental, ou, quando relacionados à criação de algo totalmente novo, caracterizam startups de natureza disruptiva.      

§ 2º As startups caracterizam-se por desenvolver suas inovações em condições de incerteza que requerem experimentos e validações constantes, inclusive mediante comercialização experimental provisória, antes de procederem à comercialização plena e à obtenção de receita.    

Dada sua marcante e natural operação em ambientes caracterizados por extrema incerteza, como meio de mitigação dos riscos da atividade, múltiplos são os instrumentos contratuais utilizados pelos agentes econômicos para desenvolverem as Startups com a segurança minimamente necessária: [i] memorando de entendimentos (“memorandum of understanding”), [ii] contrato de participação de investidor anjo, [iii] contrato de confidencialidade (“non disclosure agreement”), [iv] carta de intenção (“term sheet”), [v] acordos de sócios, [vi] acordo de restrição de ação de fundador (“founder stock restriction agreement”) e [vi] mecanismos antidilução são alguns dos infindáveis exemplos de instrumentos a serviço da vida de tais empresas.

Dentre os diversos mecanismos contratuais utilizados pelas Startups, desponta com especial relevância o chamado “contrato de vesting”, instrumento esse que, dada sua ampla pertinência ao ambiente empresarial, não tem sua aplicabilidade confinada ao ecossistema dos negócios inovadores e passou a figurar como real possibilidade a toda e qualquer empresa.

Como conceito do contrato de vesting adota-se a definição de FEIGELSON, NYBØ e FONSECA (2018, p. 203):

“O vesting consiste em uma promessa de participação societária, estabelecida em contrato particular com colaboradores estratégicos, que objetivam estimular a expansão, o êxito e a consecução dos objetivos sociais da startup. Em regra, tais indivíduos são eleitos pelos dirigentes da sociedade. Em virtude do número de colaboradores eleitos para integrar o referido plano de incentivo e por conta das épocas em que estes passam a integrar o plano, podem ser previstas no cap table da empresa as datas referentes a cada contrato de incentivo outorgado a colaboradores, a composição do capital social e a participação societária de acordo com cada rodada de investimento realizada e a outorga de participação aos colaboradores. Assm, podem ser outorgadas participações e condições diferentes para cada colaborador, sem que seja perdido o controle dos sócios e futuros sócios daquela sociedade.”

Na linha do exposto, tem-se que através do contrato de vesting decorre a franca possibilidade de determinado colaborador da empresa incorporar-se ao quadro societário da pessoa jurídica mediante o adimplemento de determinados critérios, que podem ser, dependendo da modalidade, o tempo, o cumprimento de metas ou ambos.

Ocorre que, questão relevante ligada ao contrato de vesting no ordenamento jurídico brasileiro diz respeito à sua (in)aplicabilidade no âmbito das sociedades limitadas.

Isso porque, segundo parte da doutrina, a inviabilidade da implementação do contrato de vesting nas sociedades limitadas estaria intimamente relacionado à previsão do art. 1.055, § 2º, do Código Civil, o qual veda a contribuição constitutiva de capital social que consista exclusivamente em serviços. 

Nesse sentido, considerando a controvérsia concretamente instaurada, serve o presente trabalho para, mediante a investigação do contemporâneo arcabouço legal e dos respectivos posicionamentos doutrinários, nas raias do método exploratório de pesquisa, apurar em linhas gerais o contrato de vesting perante o sistema jurídico brasileiro e, sobretudo, sua (in)aplicabilidade em meio às sociedades Limitadas, vez que tais modalidades societárias predominam no ambiente comercial pátrio.

Sem prejuízo no foco do tema principal – e, aliás, ao contrário, porquanto complementar –, anteriormente à abordagem propriamente dita da (in)exequibilidade do contrato de vesting nas sociedades limitadas, pertinente se afigura esclarecer com pontual objetividade as principais características, vetores e elementos norteadores da modalidade negocial em comento, o que se passa a fazer nos tópicos subsequentes.

2. AS ESPÉCIES DE CONTRATO DE VESTING E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

Na linha do já exposto, trata-se o já conceituado contrato de vesting de instrumento através do qual prefixa-se a negociação de participação societária futura em favor de determinado colaborador que atinja expectativas predeterminadas no momento da pactuação.

Do conceito geral de vesting, pois, derivam duas espécies – ou modalidades – principais muito bem definidas: [i] por metas (milestones) e/ou [ii] por decurso do tempo.

Na primeira hipótese (metas), o contratante colaborador adquire a possibilidade de ingressar na sociedade a partir do êxito em atender determinadas expectativas definidas no instrumento. Assim sendo, por exemplo, uma vez fixada no contrato de vesting a meta de efetuar e disponibilizar a construção de uma sede para a pessoa jurídica, uma vez cumprida tal disposição, o respectivo contratante executor fará jus às ações ou quotas negociadas.

Já no caso de decurso de tempo, o direito de participação societária redunda da simples manutenção do colaborador atuando em prol da pessoa jurídica. A finalidade da previsão, não obstante possíveis outros fundamentos, condiz geralmente com a necessidade de reter pessoas fundamentais ao desenvolvimento ou a manutenção da pessoa jurídica que, em regra, está em estágio inicial de atividades (early stage) e, por isso, não dispõe de poder econômico para “bancar” a manutenção do destacado colaborador. Nesse sentido, leciona MARINHO (2018, p. 81):

“O vesting é uma das inovações mais relevantes no que diz respeito ao direito das startups. É um instituto “importado” dos Estados Unidos e que passou a ser utilizado pelos investidores no Brasil para garantir a permanência de seus fundadores ou principais colaboradores até que a empresa adquirisse maturidade econômica.”

Digno de nota é que, nas contratações de vesting fundadas na fluência do tempo, exsurge como elemento altamente relevante a figura do cliff, instituto esse que, com impecável correção, é assim conceituado por FEIGELSON, NYBØ e FONSECA (2018, p. 205):

“(…) o contrato de vesting opera tipicamente por meio de uma cláusula de condição suspensiva. Como mencionado, essa condição suspensiva pode operar por meio de (i) decurso de tempo; e/ou (ii) metas prestabelecidas. Atingida a condição imposta em contrato, o beneficiário adquire o direito de exercer a opção de compra da participação societária que lhe foi outorgada. Nesse sentido, este tipo de contrato costuma prever um período probatório para que o direito de vesting passe a vigorar, denominado cliff. Durante o período de cliff o colaborador encontra-se em um período probatório, durante o qual não terá nenhum direito outorgado caso resolva sair ou seja dispensado pela startup. O padrão adotado pelo Vale do Silício e, consequentemente, importado pelo Brasil, consiste em oferecer normalmente um ano de cliff period e quatro anos de vesting, de forma que após um ano o colaborador terá direito à aquisição da participação societária outorgada proporcionalmente ao longo de quatro anos.”

Tangente ao cliff, pertinente também é a lição de RAMALHO (2020, p. 23):

“(…) cliff (…) pode ser definido como um período de “carência”, ou seja, ao adentrar a sociedade, o profissional só fará jus a receber a primeira quantia de ações após um período determinado, que, usualmente, é de 01 (um) ano, após esse período o restante das ações é recebido de forma igual em um período pré-estabelecido.

Sim, a pessoa irá “trabalhar” um ano sem ganhar nada!

Pode parecer uma figura estranha, tendo em vista que o profissional ficará sem remuneração durante o Cliff, contudo, em que pese o estranhamento ser plausível, é a forma como ocorre, tendo em vista que ,por vezes, são profissionais que tem outras ocupações simultâneas, o que os permite trabalhar “de graça”.

Sendo, assim, certo é que, como advertem FEIGELSON, NIBØ e FONSECA (2018, p. 205), “o contrato de vesting opera tipicamente por meio de uma cláusula de condição suspensiva” na medida em que sua consumação depende do advento de determinados eventos futuros e incertos, tais como as respectivas metas ou a fluência do tempo sem qualquer incidente que o torne inexequível (v.g. a extinção da pessoa jurídica, a adoção de comportamento vedado por parte do pleiteante ao ingresso no quadro societário, etc.), conclusão essa que é in totum confirmada por FALEIROS JUNIOR (2019, p. 129-130):

“Conclui-se que, independentemente de ser tratado como contrato em espécie ou mera cláusula contratual, o vesting sempre estará atrelado à presença de um elemento acidente do negócio jurídico: a condição. Entretanto, a se considerar o modelo de aquisição paulatina, a transferência da participação societária se dará por condição suspensiva, condicionando a eficácia do negócio jurídico a evento futuro e incerto, sim, mas o atingimento da meta garantirá a aquisição de direito (ao percentual de quotas/ações do capital social). Por outro lado, considerando-se a aquisição ab initio, ter-se-á condição resolutiva, na medida em que se consolida toda a transferência da participação, e, atingidas as metas, nada se altera, ao passo que o não atingimento acarretará, ao menos, resolução parcial do pacto.”.

Há ainda o modelo híbrido, no qual tanto o tempo, quanto as metas, são aplicados cumulativamente como gatilhos para a aquisição do direito de ingresso societário por parte do contratado-pretendente. Nessa hipótese, iniludível é a coexistência dos elementos acidentais do termo e da condição, vez que o investimento do candidato a sócio se perfectibilizará somente a partir da conjugação de um evento futuro e certo (tempo) com um evento futuro e incerto (metas).

2.1. O PACTA SUNT SERVANDA COMO VETOR PRINCIPAL

Dentre os diversos vetores que norteiam a atividade empresarial (i.e. escopo de lucro, boa-fé e probidade, contrato e erro, racionalidade limitada, etc.), no que tange ao contrato de vesting, sem dúvidas é o da pacta sunt servanda aquele que, com supremacia, exerce influência cogente na negociação.

Isso porque, com efeito, consagrando tal vetor a força vinculante dos ajustes de vontade nas relações comerciais, a imperatividade da pacta sunt servanda como farol às relações fixadas em contrato de vesting apresenta-se inequívoca, dadas as peculiaridades que a referida modalidade de negócio contempla e, sobretudo, em função do momento em que normalmente é entabulado (início da vida da empresa ou “early stage”), em que o empreendimento não conta com maturidade suficiente no mercado e possui altíssimo risco de insucesso agregado.

Acerca do tema, indispensável é a lição de FORGIONI (2018, os. 108-109):

A força obrigatória dos contratos viabiliza a existência do mercado, coibindo o oportunismo indesejável das empresas

Se lhes fosse permitido, os agentes econômicos valer-se-iam dos contratos para vincular apenas seus parceiros comerciais, e nunca a si próprios. No momento inicial, as partes creem que os negócios ser-lhes-á vantajoso; todavia, com o passar do tempo, é possível que o vínculo deixe de interessar a uma delas. Nasce o anseio de se livrar de uma amarra contratual para seguir outro caminho.

Partindo dessa premissa, compreende-se a importância sistêmica da força vinculante dos contratos; na sua ausência, seria impossível a coibição do descumprimento da palavra empenhada e o desestímulo de comportamentos oportunistas prejudiciais ao tráfico. O princípio da pacta sunt servanda mostra-se necessário ao giro mercantil na medida em que freia o natural oportunismo dos agentes econômicos.

Em suma: o funcionamento do mercado exige que os pactos sejam respeitados.”

O vetor da pacta sunt servanda caracteriza-se como efetiva viga-mestra do contrato de vesting, na medida em que assegura a ambos os contratantes o direito de, no curso da relação, pautarem sua interação comercial em exata subordinação àquilo que, no princípio do negócio, ajustaram entre si – e, espera-se, tenham documentado em instrumento escrito – exigindo e sendo exigidos em estrito acordo com o formato que determinaram na respectiva pactuação.

Anote-se que não é raro que relações comerciais que iniciam lastreadas em extrema harmonia e inebriante otimismo redundam em densas controvérsias onde, seja por questões técnicas, comerciais ou (frequentemente) pessoais, os contratantes acabam se desinteressando em manterem a avença e, mais do que simplesmente negligenciarem a contratação, passem a promover atos diretamente contrários e ofensivos aquilo que outrora haviam comercialmente definido. A temática dos impasses societários, para além de questões excepcional, trata-se de efetiva certeza no ambiente comercial, como bem anota COX (2017, p. 10):

“Outro aspecto que pode ser observado em algumas sociedades é um certo desinteresse dos sócios no momento da elaboração dos documentos societários. Pode-se dizer que no momento da elaboração desses documentos, as partes envolvidas são movidas, ainda que inconscientemente, pela intenção em desconsiderar que problemas futuros podem ocorrer, e quando consideram a possibilidade de problemas futuros, preferem imaginar que serão resolvidos amigavelmente, de forma pacífica e rápida, como no início do relacionamento comercial entre elas.

O contrato social, por vezes, acaba sendo um documento padronizado e commoditizado, que traz apenas os requisitos legais para registro e carece de detalhes quanto às peculiaridades da sociedade a ser constituída, a forma de precificação das participações de seus sócios, mecanismos de saída e a forma de resolução de conflitos futuros.

As partes darão atenção a esses pontos somente no futuro, quando o relacionamento já estiver desgastado e diante de situações de conflito societários que não foram resolvidos como se imaginava inicialmente (e.g. um sócio quer vender, um sócio quer distribuir os lucros e o outro quer reinvestir na empresa, ou simplesmente um sócio brigou com o outro por razões externas à sociedade e o convívio entre eles não é mais amigável). No entanto, diante de um problema já instalado, não há mais tantas soluções possíveis.”

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Assim sendo, no topo das orientações metajurídicas norteadoras do contrato de vesting desponta o vetor da pacta sunt servanda, determinando que, uma vez estabelecida a avença, deverá esta ser efetivamente cumprida, ainda que posteriormente evidenciem-se eventos inesperados pelas partes, tais como, por exemplo, o veloz crescimento da empresa (hipótese na qual seja comum o fundador pretender evitar a admissão de novos sócios) ou a verificação de péssimos resultados comerciais (contexto no qual o colaborador que já obteve parcela societária poderá pretender abandonar o negócio no intuito de evitar sua responsabilização pelos prejuízos). A endossar essa concepção está a lição de MARINHO (2018, p. 85):

“[…] ponto importante sobre o vesting é que os sócios estabeleçam um acordo de acionista ou quotistas antes de entabular o contrato. Assim, ao assinar o vesting, o empregado saberá as condições pelas quais entrará na sociedade.

Nos casos em que o empregado se torna sócio da empresa, mesmo que minoritário, ele adquire uma série de direitos inerentes a essa condição. Esses direitos devem ser concedidos da mesma maneira que foram garantidos aos demais sócios, sob a chance de a empresa ter sérias demandas de ordem societária, trabalhista e cível.

É para evitar tais demandas que a aplicação do contrato de vesting é importante, visto que o funcionário só adquire quotas nos moldes estabelecidos no instrumento, evitando surpresas desagradáveis.”

Desse modo, inquestionável é a importância da atenção na elaboração de instrumentos contratuais claros e atentos às vontades das partes e a inclusão, em tais documentos, da induvidosa e objetiva intenção dos pactuantes, bem como a inserção de cláusulas dissolutórias de impasses (“deadlock provisions”), de vinculação aos acordos internos (sócios ou acionistas) e de soluções práticas para casos de inadimplência, vez que, como consabido, a eventual desconstituição de contratos pode implicar, dentre outros efeitos negativos, na própria ruína/quebra da empresa.

Lado outro, a importância do vetor da pacta sunt servanda como metanorma regente do contrato de vesting alia-se diretamente à polêmica sobre eventual infração que tal modalidade negocial acarreta em relação às normas trabalhistas, visto que, a depender de sua aplicação corporativa, seu uso pode ser desvirtuado para subtrair do colaborador o direito à percepção de remuneração que na forma da lei lhe seria justa pelos serviços prestados, independentemente do pacto acessório de ingresso societário.

Todavia, desde que formulado em estrito respeito à autonomia da vontade das partes e sem a caracterização da relação trabalhista, o contrato de vesting é figura que, sob pretexto qualquer, pode ser confundida com a vinculação laboral celetista.

Vale destacar que, não obstante a usualidade da existência paralela da relação formal de trabalho ao contrato de vesting, ainda à luz dos imperativos irradiantes do vetor da pacta sunt servanda entendemos que não se afigura juridicamente  plausível, por outro lado, destituir por completo o indivíduo da opção de, renegando o rótulo de funcionário, firmar exclusivamente contrato de vesting com o propósito de ingressar exclusivamente como integrante do quadro-social da corporação. Assim, havendo real interesse e plena ciência do contratante acerca das condições do negócio e não sendo verificáveis na relação operacional o pentagrama de requisitos cumulativos que caracterizam o vínculo trabalhista (pessoalidade, habitualidade, onerosidade, subordinação e pontualidade), não se revela legítimo presumir a coexistência de contexto laboral somente em razão do contrato de vesting.

Ora, sendo a livre-iniciativa um dos fundamentos elementares da República Federativa do Brasil (arts. 1º, IV e 170, da Constituição Federal de 1988), tolher o agente econômico da possibilidade de dispor da escolha de qual posição quer assumir em determinada relação contratual e obrigá-lo a figurar como empregado da corporação ressai como medida iniludivelmente censuradora da liberdade de posicionamento comercial, o que não é admissível à luz da Carta Magna, o que mais ainda reforça o descabimento da presunção da coexistência de relação laboral paralela ao contrato de vesting.

Averbe-se ainda que, não bastasse a infração direta e severa à livre-iniciativa, a desconstituição forcada de determinado contrato de vesting e sua desfiguração como relação trabalhista, a pretexto de implicar benefícios ao pretenso ingressante na sociedade, pode redundar em incalculáveis prejuízos a este, tais como, por exemplo, nas hipóteses em que a empresa “traciona” e passar a auferir alta lucratividade, situação esta última na qual o reconhecimento forçado    

Repare-se que, não obstante se imagine que eventual insurreição contestatória da existência do contrato de vesting perante o judiciário trabalhista deva se dar por parte do pretendente ingressante na sociedade (colaborador) quando inserido em contexto desfavorável, inesquecível é o fato de que, dado o elementar princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, a discussão poderá contar com iniciativa da própria empresa, a qual, visando escantear o potencial sócio incidental diante de quadro superlativamente otimista ou mesmo já consolidado, poderá vindicar a declaração da relação trabalhista strictu sensu, hipótese esta última em que, em vez de beneficiado, o colaborador será severamente prejudicado pelo “oportunismo negativo” da pessoa jurídica com que contratou.

Daí porque, na esteira do determinado na lei, tendo as partes definido de maneira livre e consciente que seu relacionamento será, em efetivo, um contrato de vesting, é de ser vedada a intervenção estatal sobre o ajuste e preservado, nos termos da lei (art. 1º, § 2º, da Lei de Liberdade Econômica), a essência das disposições comutativamente positivadas pelas partes no instrumento contratual.

2.2. IMPREVISIBILIDADE/RISCO

Característica elementar do contrato de vesting, a imprevisibilidade condiz com o tradicional cenário de incerteza que sobrepaira toda a atividade empresarial, quer seja ela relacionada ao comércio tradicional, quer seja ao ecossistema do mercado disruptivo (startups).

Tal referida imprevisibilidade relacionada ao próprio genoma das atividades empresariais, é superlativamente mais expressiva no cenário brasileiro, dadas as consabidas intercorrências que envolvem o desempenho do empresariado no país.

Alta carga tributária, normatização laboral excessivamente intervencionista, regulação estatal exagerada, insegurança jurídica legal e jurisprudencial e ativismo judicial são alguns dos caracteres que despontam no cipoal de obstáculos à constituição e manutenção saudável de empresas em terras tupiniquins. Reconhecendo o indigitado cenário desmotivador, pertinente é a citação de CAMARGO (2018, p. 29): 

“Investir ou empreender em qualquer mercado demanda uma grande dose de confiança. Não basta só ter habilidades pessoais e interpessoais ou conhecimentos técnicos específicos. Quem hoje tem sucesso de forma lícita, compreende muito bem o ambiente em que atua, conseguindo se organizar e operar de forma sustentável e ter vantagens competitivas, considerando as eventuais peculiaridades que tal ambiente apresenta. Quem domina o ambiente regulatório onde exerce sua atividade econômica certamente se diferencia nos dias atuais, em especial no nosso país.”

E, reforçando a suso transcrita convicção também pela perspectiva do sistema jurídico nacional, prossegue o autor (2018, p. 22):

“O próprio sistema jurídico brasileiro parece imprevisível com algumas regras que “pegam” (outras nem tanto), leis contraditórias, incompletas, confusas e obscuras, interpretações administrativas e judiciais que mudam sem critérios muito claros, criando uma série de custos e riscos adicionais a todo e qualquer cidadão ou empresário que for tomar uma decisão para a qual precise de segurança jurídica. Se o Direito serve para permitir o exercício da nossa liberdade individual e a construção e arranjos organizacionais entre pessoas, precisamos ter um mínimo de conhecimento sobre esse sistema de normas e confiar que ele vai minimamente funcionar.”

Entretanto, não bastasse o risco inerente à própria atividade econômica, dadas as condições em que normalmente é pactuado, o contrato de vesting possui carga extra de imprevisibilidade. Isso porque, por sua própria natureza de pacto condicional, a modalidade negocial em estudo tem sua aplicabilidade reservada a cenários onde ambos os contratantes estejam profundamente dispostos a assumirem riscos e domarem a exponencial imprevisibilidade que gravita sobre a relação, na medida em que, para ambos os negociantes, é altíssima a imprecisão sobre o porvir, não havendo, no mais das vezes, sequer a mera silhueta do futuro.

O risco do negócio, portanto, apresenta-se com protagonismo nos contratos de vesting, na linha do que adverte RAMALHO (2020, p. 9):

“A ideia de risco, ainda, é diretamente associada a passibilidade dos lucros obtidos não serem o suficiente para cobrir as despesas. O risco pode ser algo totalmente inesperado que simplesmente acontece, como bom exemplo, temos a pandemia de COVID 19 que ocorreu e acabou por “revirar” a realidade de todos.

Inclusive, costumo dizer que todos sentiram o gostinho de ser uma startup, pois o ambiente de extrema incerteza se tornou real e palpável até para os mais sólidos e tradicionais negócios.

À vista do exposto, pode-se depreender que o contrato de vesting visa a captação de talentos disponíveis no mercado para o bem desenvolver de um negócio inovador e que ainda não possui rentabilidade, porém que pelo produto ou serviço envolvido, tem perspectiva de ganho futuro.”

Com efeito, quer seja como sócio constituinte de pessoa jurídica empresária, quer seja como aspirante ao ingresso no quadro de quotistas/acionistas mediante contrato posterior (aquisição de quotas, vesting, etc.), o risco assumido pelo empreendedor é fato certo, vez que, toda e qualquer atividade comercial traz embarcada em sua essência a incerteza e a insegurança agregadas a um ofício resignado a circunstanciais multifatoriais e de difícil cognição, de modo que, arriscar-se é comportamento básico para a atuação no mercado (“skin in the game[2]).

  Todavia, muito embora seja consabido o risco relacionado à atividade empresarial, é incrivelmente comum que determinados empresários ou aspirantes ao ofício dediquem-se à desesperada missão de negarem a existência dessa álea ou, no mínimo, de refutarem-na de maneira (negativamente) oportunista quando diante de resultados desfavoráveis a seus interesses.

    Tais fenômenos são explicados pela chamada “economia comportamental”, ciência essa que, sintetizada por FORGIONI (2018, p. 103-106), aborda e esclarece comportamentos típicos dos agentes diante, do mercado e das respectivas contratações, seja antes, durante ou depois dos efeitos irradiados pelo negócio.

Como exemplos de condutas identificadas pela economia comportamental, têm destaque o excessivo otimismo (“tudo vai dar certo no fim”), a excessiva autoconfiança (“se deu certo, é meu mérito; se deu errado, foi algo externo e desvinculado a mim”), a persistência na decisão (“teimo, logo existo”) e a ancoragem/excessivo foco (“esse é o único oásis do deserto”), comportamentos esses difusos nos seres-humanos e, consequentemente, nos agentes econômicos.

    Ocorre que, justamente à luz do vetor da pacta sunt servanda, uma vez livremente pactuada a negociação entre os agentes econômicos ativos e probos e ausente qualquer elemento de invalidade na contratação, não pode o negociante invocar o desfazimento do ajuste somente com base em infortúnio comercial ou imprevisão de resultado, como, por exemplo, a inocorrência da consolidação da sociedade no respectivo mercado e/ou a respectiva obtenção de lucros ou, por outro lado, o rápido crescimento da empresa dias após a celebração do contrato de vesting.

Se, conforme o vetor da pacta sunt servanda, contratos livremente firmados de boa-fé devem ser cumpridos, o insucesso do empreendimento afluente do risco natural à atividade empresária ou a inopinada valorização do negócio dias ou mesmo horas após a assinatura do contrato de vesting são, sem sombra de dúvidas, hipóteses inábeis para ensejarem o desfazimento da contratação, especialmente em negócios como o vesting, onde é absolutamente normal que a sociedade esteja em estágio inicial de atividades (early stage) e não disponha de mínimas previsões fiáveis sobre seu desenvolvimento.

Sendo assim, resguardadas as hipóteses de vícios endógenos à formação do contrato (erro, dolo, coação, etc.) ou invalidades formais, a pactuação livremente e de boa-fé celebrada entre as partes deve ser rigorosamente preservada, em seus termos prescritos, à luz do vetor da pacta sunt servanda.

2.3. A LIVRE INICIATIVA

Autorizativa da pura existência da atividade econômica no Brasil, a livre iniciativa, mais do que um princípio, está positivada (por duas vezes!) na Constituição Federal. Assim (grifei):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

(…)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna (…)

Com sua habitual clareza, SILVA (2001, p. 771) disserta sobre a matéria:

“A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e liberdade de contrato. Conta do art. 170, domo um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei.

É certamente o princípio básico do liberalismo econômico. Surgiu como um aspecto da luta dos agentes econômicos para libertarem-se dos vínculos que sobre eles recaiam por herança, seja do período feudal, seja dos princípios do mercantilismo. No início, e durante o século passado até a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a liberdade de iniciativa econômica significava garantia aos proprietários da possibilidade de usar e trocar seus bens; garantia, portanto, do caráter absoluto da propriedade; garantia de autonomia jurídica e, por isso, garantia aos sujeitos da possibilidade de regular suas relações do modo que tivessem por mais conveniente; garantia a cada um para desenvolver livremente a atividade escolhida.”  

  Assim, ao passo que pluralmente anotada na Constituição Federal, dúvida não resta de que a livre iniciativa, para além de simples elemento norteador, é, efetivamente, princípio dotado de cogência plena e que determina, de maneira muito clara e indiscutível, que o cidadão brasileiro é, em tese, juridicamente apto para lançar-se ao comércio e às contratações, servindo-se de todos os meios lícitos disponíveis para obter lucratividade financeira e benefícios particulares. A confirmar tal premissa está o ministério de EDILSON ENEDINO DAS CHAGAS (2019, p. 56):

“Trata-se de um princípio fundamental previsto pela Constituição da República de 1988, no art. 1º, inc. IV, dotado de eficácia positiva e negativa, como toda norma constitucional.

  Negativa porque todos os atos normativos estatais que repugnarem os princípios constitucionais submetem-se à censura dos tribunais, de molde que são considerados írritos, nulos e destituídos de qualquer validade.

Positiva porque espraia sua força normativa por todo o ordenamento jurídico, de tal maneira que todas as normas devem ser interpretadas à luz dos princípios constitucionais, fontes de inspiração do hermeneuta sob a égide da Constituição vigente, e qualquer delas que contrariar o núcleo essencial dos princípios fundamentais padecerá de inconstitucionalidade irremediável A eficácia positiva é também chamada de eficácia irradiante.

(…)

Tal princípio é considerado fundamento da ordem econômica, conferindo à iniciativa privada o papel de protagonista na produção ou circulação de bens e serviços. Não reduz seu alcance apenas às empresas, senão também às indústrias e aos contratos em geral.”

Disso extrai-se, pois, que vigorando a livre iniciativa como esteio fundamental da atividade econômica no Brasil, podem os agentes econômicos celebrarem livremente negócios e contratos lícitos em geral, sem que necessariamente estejam obrigados a respeitar hipóteses legais prefixadas ou mesmo figuras contratuais típicas, bastando que, afora aquilo que a lei não ordenar ou não proibir (art. 5º, II, CF), o negócio atenda ao interesse de ambas as partes posicionadas no mercado.

Corolário disso, o art. 425, do Código Civil, dispõe que ser “lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais” nele fixadas, o que patenteia a certeza de que o Direito brasileiro está iniludivelmente personalizado pela liberdade de empreender e contratar.

Firmada tal premissa, normalmente conclusivo é que o contrato de vesting celebrado nas raias do direito brasileiro tem como um de seus arrimos de validade a Garantia constitucional à livre iniciativa, posto que, ainda que a comentada contratação se trate de figura “importada” do direito norte-americano, não redunda em forma qualquer de ilegalidade quando contrastada com o ordenamento pátrio e não implica em conflito algum às prescrições normativas brasileiras.

Com efeito, sendo as partes livres para, na forma da previsão constitucional e nos termos da lei civil, determinarem as avenças que lhe são mutuamente interessantes, o vesting surge como alternativa absolutamente válida para a determinação do ingresso de determinada pessoa no quadro societário, em exata consonância à livre iniciativa que norteia o ambiente comercial no Brasil.

Acresça-se a isso, também, o fato de que, como já esclarecido, diversamente de vínculo estabelecido em âmbito trabalhista, o contrato de vesting é figura íntima e inescapavelmente relacionada ao direito empresarial, esfera essa na qual, para além de uma possibilidade, a livre iniciativa e o amplo poder de negociação são elementares e, portanto, permitem, dentro dos limites da legalidade, a plena e criativa utilização de instrumentos voltados à potencialização da atividade mercantil.  

3. A (IN)VALIDADE DO VESTING NO ÂMBITO DAS SOCIEDADES LIMITADAS

Conhecidos os principais elementos caracterizadores que autorizam e orientam a existência do contrato de vesting no direito brasileiro, possível agora ingressar com segurança na proposta central do presente trabalho, afeta ao debate acerca da (in)aplicabilidade do contrato de vesting no ecossistema das sociedades limitadas, matéria essa de sólida divergência entre duas correntes.

Mergulhando de pronto na específica controvérsia, apresentam-se as opiniões em conflito.

De um lado, está a parcela da doutrina que afirma ser inexequível o contrato de vesting no âmbito das Sociedades Limitadas, vez que, no seu entender, por conta da previsão do art. 155, § 2º, do Código Civil e sua respectiva vedação da integralização do capital social exclusivamente baseada na prestação de serviços, a espécie contratual em comento seria ilegal em tal modalidade societária. Exemplo dessa corrente está no trabalho de OLIVEIRA e RAMALHO (2016, p. 189-190):

“O capital social da sociedade limitada é dividido em quotas, enquanto o capital social da sociedade anônima é dividido em ações.

Cada sócio, quotista ou acionista, é proprietário da quota ou ação que adquiriu e deverá pagar pela mesma da forma indicada no contrato ou estatuto social (ex: à vista, parceladamente ou mediante dação em pagamento).

Ocorre que, no que concerne à integralização de quotas da sociedade limitada, o artigo 1.055, § 2 º do Código Civil dispõe expressamente que “é vedada contribuição que consista em prestação de serviços”.

Tal vedação acaba por impossibilitar a utilização do vesting em sociedades limitadas no Brasil, uma vez que a quota será adquirida em decorrência de critérios de produtividade decorrentes dos serviços prestados pelo empregado ou administrador em benefício da sociedade [sic]; ou seja, a contribuição para a integralização da quota acabará por decorrer da prestação de serviços, o que é expressamente vedado pelo referido artigo 1.055, § 2 º do Código Civil.”

No mesmo rumo, TUDISCO (2018):

“No Brasil, os tipos societários mais comuns são a sociedade limitada e a sociedade anônima. No caso das Sociedades Limitadas (LTDA), o capital social é dividido em quotas e o Código Civil, em seu artigo 1.055, §2º, veda a constituição do capital social que consista em prestação de serviços, ou seja, o contrato de vesting não é possível para startups constituídas sob a forma de sociedade limitada.”

Protagonista da divergência, eis o teor do art. 1.055, § 2º, do Código Civil:

Art. 1.055. O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio.

(…)

§ 2º É vedada contribuição que consista em prestação de serviços.

Como visto, a corrente que concebe pela inviabilidade do contrato de vesting para a aquisição de quotas de sociedade limitada funda-se, singularmente, na proibição legal do art. 1.055, § 2º, do Código Civil, a qual proíbe que a constituição do capital societário se dê mediante serviços. Ou seja: a legislação veda que a quota societária tenha sido originada de fontes diversas de objetos corpóreos ou incorpóreos que representem valores indiscutivelmente reconhecidos no mercado. É o que ensina ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO (2018, p. 397):

“A quota social é o bem incorpóreo que o sócio recebe em razão da contribuição que confere ou promete conferir para a constituição da sociedade. Essa contribuição, no caso da sociedade limitada é sempre patrimonial, mediante prestação em dinheiro ou, como já observado, em outra espécie de bem suscetível de avaliação econômica.”

  Em sentido oposto, está a concepção de que no direito brasileiro inexiste qualquer vedação à utilização do contrato de vesting no âmbito das Sociedades Limitadas, vez que, muito embora o antedito art. 1.055, § 2º, do Código Civil interdite  a contribuição exclusivamente em serviços, no modo de negociação ora estudado o que ocorre, ao fim e ao cabo, é somente a aquisição de quotas societárias já constituídas anteriormente, operação essa que, dada a tangibilidade comercial de tal patrimônio empresarial, é juridicamente possível.

Isso porque, diversamente da compreensão da corrente inversa, muito embora a legislação proíba a constituição de capital somente com base em força de trabalho (mediante prestação de fazer e não de dar [dinheiro ou patrimônio] à pessoa jurídica), tendo em vista o fato de que o contrato de vesting dispõe objetivamente sobre a alienação de quotas – ou ações – de sociedade já existente, inexiste vedação real a tal mecanismo. Ou seja: não versando o contrato de vesting acerca da constituição de capital social de determinada Sociedade Limitada, mas meramente dispondo sobre a alienação destas enquanto patrimônio comercializável da sociedade, não há a incidência proibitiva do art. 1.055, § 2º, do Código Civil.

Sobre a umbilical ligação do art. 1.055, § 2º, do Código Civil com o período de subscrição e integralização das quotas – e, mutatis mutandis, não na etapa posterior a isso –, obtempera RAMOS (2020, pp. 363-364) (grifo nosso):

“Cada sócio deve subscrever uma parte do capital, ficando, consequentemente, responsável pela sua respectiva integralização. Portanto, todos os sócios têm o dever de subscrição e integralização de quotas, isto é, todos os sócios têm o dever de adquirir quotas da sociedade e de pagar por essas respectivas quotas, contribuindo para a formação do capital social, ainda que essa contribuição seja ínfima. Efetivar a contribuição prometida no tempo e na forma previstos no contrato social é o principal dever de qualquer sócio.

A contribuição do sócio, ou seja, o modo de integralizar suas quotas, ode ser feita de diversas formas: com bens – móveis ou imóveis, materiais ou imateriais -, dinheiro, entre outras. Na sociedade limitada, porém, não se admite a contribuição em serviços, conforme previsão expressa do art. 1.055, § 2º, do Código Civil: “é vedada a contribuição que consista em prestação de serviços”. Também “não poderá ser indicada como forma de integralização do capital a sua realização com lucros futuros que o sócio venha a auferir na sociedade”, conforme previsão do Anexo II da Instrução Normativa 38/2017 do DREI (item 1.2.10.6).”

Nessa linha, tendo em vista o fato de que, a despeito da hipótese de integralização de quotas na sociedade limitada, o contrato de vesting dispõe sobre o ingresso do prestador de serviços mediante a aquisição de quotas já existentes e que foram devidamente subscritas e integralizadas em dinheiro ou outro bem economicamente quantificável no momento da fundação da pessoa jurídica, não há qualquer influência proibitiva da lei civil que repila o vesting nas sociedades limitadas.

  Além disso, fato certo e indiscutível, além de possuírem valor econômico, as quotas societárias são perfeitamente negociáveis (cessão onerosa ou gratuita), de modo que, considerando que o contrato de vesting tem como um de seus objetos a obtenção de quotas de empresa já existente, não há que se falar em forma qualquer de empecilho, vez que, como referido, a vedação do art. 1.055, § 2º, do Código Civil dirige-se exclusivamente à hipótese de constituição das quotas societárias a partir da força de trabalho, vez que tal ato não é sponte propria quantificável. A confirmar isso, ALFREDO DE ASSIS GONALVES NETO (2018, p. 396):

“Como bem incorpóreo de valor econômico, a quota, como se viu, é suscetível de figurar como objeto de relações jurídicas. Assim, o sócio subscreve quotas ou a sua quota, adquire a quota de outrem, aliena quotas, etc.

Mas não é só. Também pode a quota, como bem móvel, ser objeto de penhor para garantir dívida do sócio ou de terceiro. A garantia real, nesse caso, denomina-se caução de quotas, que se materializa mediante ajuste escrito elaborado de conformidade com as regras dos arts. 1.451 e seguintes do Código Civil, combinados com os arts. 39 e 40 da Lei do Anonimato.

(…)

Pelas mesmas razões que permitem o penhor de quotas, é possível que elas sejam dadas em usufruto, aqui sendo aplicáveis subsidiariamente os arts. 40 e 114 da Lei das Companhias. Nesse caso é preciso que o instrumento que institui o gravame defina quem toca o direito de voto; na falta de previsão, só poderá ser exercido mediante acordo prévio entre o nu-proprietário e o usufrutuário.”

Averbe-se, na mesma linha, que como já referido, o direito contratual brasileiro não se funda em sistema de tarifação/tipicidade contratual, não exigindo dos agentes econômicos que rotulem suas movimentações comerciais a pactos nominada e necessariamente coreografadas pela lei (art. 425/CC). Portanto, descartada a relevância do nomen juris da operação contratual, eventual pacto intitulado de “contrato de prestação de serviços com dação em pagamento de quotas societárias com elemento acidental de condição ou termo” seria, ao fim e ao cabo, efetivo contrato de vesting sob figurino disfarçado, o que mais ainda reforça a incorreção do entendimento de que tal modalidade negocial é inexequível no âmbito das Sociedades Limitadas.

Confirmando a ora defendida concepção, POLLI (2018):

“Embora a doutrina relacionada ao vesting seja escassa, reconhece-se a existência de opiniões no sentido de que não seria possível que startups que optem pelo tipo societário da sociedade limitada o utilizem, sob o fundamento de que o artigo 1.055, § 2º do Código Civil veda a integralização do capital social mediante prestação de serviços.

Cita-se, como exemplo, o entendimento de Oliveira e Ramalho (2016, p. 189), que afirmam que a proibição da integralização do capital social mediante prestação de serviços acaba por impossibilitar a aplicação do vesting em sociedades limitadas, já que a contribuição para a integralização da quota estaria limitada ao aporte de dinheiro ou outros bens.

Entretanto, parece mais correto o entendimento contrário, de que o vesting é, sim, aplicável às sociedades limitadas, porquanto não se trata de uma integralização do capital pela prestação de serviços, mas, de uma opção de compra das quotas sociais conforme condições previamente estabelecidas entre as partes.”

Também se filiam à ideia de viabilidade do vesting no âmbito das Sociedades Limitadas FEIGELSON, NYBØ e FONSECA (2018, p. 204-205):

“Como bem se sabe, a legislação brasileira veda a integralização de capital social por prestação de serviços nas Sociedades Limitadas (art. 1.052, CC/2002) e nas Sociedades Anônimas (art. 7º, Lei nº. 6.404/76). Assim, se não houver a efetiva compra dessa participação, o novo sócio não poderá integrar o quadro societário da startup. Por essa razão, o vesting opera sempre por meio de uma opção de compra. Esse conceito sana o questionamento realizado por Oliveira e Ramalho (2016), que consideram impraticável o vesting em uma Sociedade Limitada, cuja integralização de capital social por meio da prestação de serviços é vedada pela legislação brasileira. Uma vez estabelecido que o vesting é uma opção de compra de ações ou quotas e não uma contrapartida salarial – e que, consequentemente, o direito adquirido pelo colaborador é de subscrição futura de participação societária – este contrato se torna perfeitamente possível para a realidade das Sociedades Limitadas.”

Vale relembrar que, muito além de meras instituições burocráticas, as quotas societárias se tratam de verdadeiros bens incorpóreos, os quais, componentes do patrimônio social, possuem valor econômico juridicamente reconhecido e aptidão para serem objeto de transações comerciais (cessão onerosa, doação, permuta, etc.), razão pela qual inexiste qualquer proibitivo real para que figurem como (contra)prestação em qualquer modalidade contratual, inclusive o vesting.

  Some-se a tudo isso o fato de que, na esteira do exposto, por se tratar de ambiente norteado pela liberdade de iniciativa e pelo vetor da “pacta sunt servanda”, incabível se afiguraria interpretar o restritivo § 2º art. 1.055, do Código Civil de maneira ampla, para fins de espraiar seu sentido ao veto de que toda e qualquer negociação envolvendo a cessão de quotas societárias não pode ter como elemento obrigacional a prestação de serviços. Não é o que diz a lei e, tampouco, o sentido que se extrai a partir de sua interpretação, especialmente após o advento da Lei da Liberdade Econômica.

Com efeito, respeitadas as citadas opiniões em contrários, a arguida vedação ao contrato de vesting no âmbito das sociedades limitadas como decorrência do disposto no § 2º, do art. 1.055, do Código Civil fere, inclusive, a intepretação da norma civil sob os prismas sistemático e teleológico, vez que, não se revela plausível conceber que, em meio à sucessivas e concretas afirmações e reafirmações da liberdade de iniciativa e contratação, pudesse o legislador interditar a utilização das quotas societárias como forma de pagamento pela prestação de serviços, hipótese essa na qual, contrariando a bem marcada personalidade liberal do ordenamento, haveria a proibição da inclusão de negócio contendo objeto lícito perante agentes capazes.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após todo o curso de nosso trabalho, constatou-se que, importado do sistema comercial-societário norte-americano, o contrato de vesting é figura admissível no ordenamento jurídico brasileiro e que, além disso, possui superlativa funcionalidade no ecossistema mercantil pátrio, sobretudo no tocante às empresas em estágio inicial (early stage), sejam elas startups ou não.

Ainda, rumo à temática principal do trabalho consistente a apresentar a divergência acerca da (im)possibilidade do contrato de vesting no âmbito das sociedades limitadas, foram identificados como principais permissivos da estipulação do contrato de vesting no ordenamento jurídico pátrio, quais sejam, a livre iniciativa, a pacta sunt servanda e o risco consciente assumido.

Ao fim, ingressamos efetivamente no tema central do trabalho e, apresentando os posicionamentos que divergem acerca da (im)possibilidade da implementação do contrato de vesting em relação às quotas de sociedade limitada, expusemos as principais doutrinas acerca do tema e os respectivos fundamentos adotados por cada linha de entendimento.

Adicionalmente, justificando a respectiva motivação jurídica, sinalizamos nossa concordância expressa com a parcela doutrinária que concebe ser possível contratar o vesting no âmbito das sociedades limitadas, vez que, em nossa concepção, o art. 1.055, § 2º, do Código Civil, não constitui óbice para tal negociação.

Nesse diapasão, superadas todas as fases de nosso estudo, concluímos o presente trabalho conscientes de que o contrato de vesting é um mecanismo que conta com indesmentível aplicabilidade prática no ambiente comercial brasileiro que, não obstante opiniões doutrinárias em contrário, sua aplicabilidade é, sim, possível no âmbito das sociedades limitadas, inexistindo qualquer interdição do negócio por conta das disposições do art. 1.055, § 2º, do Código Civil.


REFERÊNCIAS

CAMARGO, André Antunes Soares de. Aspectos Jurídicos do Ambiente Empresarial Brasileiro. São Paulo: Almeidina, 2018.

CHAGAS, Edilson Enedino das. Direito empresarial esquematizado. 6ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

COX, Marcelo Dourado. Deadlock provisions: resolução contratual de conflitos societários. São Paulo: Almedina, 2017.

FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Vesting empresarial: aspectos jurídicos relevantes à luz da teoria dos contratos relacionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

FEIGELSON, Bruno; NYBØ, Erik Fontenele; FONSECA, Victor Cabral. Direito das startups. São Paulo: Saraiva, 2018.

FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

MARINHO, Leonardo Maciel. Manual Jurídico das Startups. 1 ed. São Paulo: Scortecci, 2018.

NETO, Alfredo de Assis Gonçalves. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

OLIVEIRA, F. V; RAMALHO, A. M. O Contrato de Vesting. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, nº 69, 2016.

OLIVEIRA, Leandro Antonio Godoy (organizador). Startups: aspectos jurídicos relevantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Edição do Kindle, 2019.

RAMALHO, Amanda Maia. O contrato de vesting: livre iniciativa e relações sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

RAMOS, André Santa Cruz. Direito empresarial: volume único. 10 ed. Rio de Janeiro, Forense. São Paulo, Método. 2020.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001.

TUDISCO, Paula Melina Firmiano. Advogada explica a importância do contrato de vesting para as startups. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI278413,41046-Advogada+explica+a+importancia+do+contrato+de+vesting+para+as+startups/. Acesso em 22 mar. 2021.


[1] Sobre a importância da segurança jurídica no ambiente empresarial, disserta CAMARGO (2018, ps. 42-43): “Em tempos de crescente incerteza e complexidade, a busca por um patamar mínimo de previsibilidade no mundo empresarial é fundamental para a retomada do crescimento do país e para que o ambiente de negócios seja confiável àqueles que buscam empreender e investir de forma perene e de longo prazo, ou seja, não meramente especulativa.”

[2] Expressão comum no mercado financeiro que, em síntese, condiz com a ação dos empreendedores consistente em “colocar a pele em jogo” ao lançarem-se ao comércio.

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Sobre o autor
Affonso Celso Pupe da Silveira Neto

Advogado. Especialista em Direito e Gestão Empresarial com ênfase nas áreas de Contratos e Consultoria Corporativa. Master of Business Administration em Gestão Jurídica Aduaneira e Internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PUPE NETO, Affonso Celso Pupe Silveira Neto. O contrato de vesting nas sociedades limitadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6679, 14 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93931. Acesso em: 25 abr. 2024.

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