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Convencimento do juiz e hierarquia das provas:

uma luz através da teoria dos quatro discursos

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Aplicamos conceitos da filosofia de Olavo de Carvalho ao direito processual penal.

O modo como ocorre o convencimento do juiz no âmbito processual é questão das mais debatidas nos manuais clássicos de direito processual. Contudo, alcançamos certo estado de normalidade nos últimos tempos quanto ao conceito de livre convencimento motivado, mas o que este conceito significa e como o magistrado pode valorar as provas postas à sua análise - veja que não falamos de maior importância, mas de valoração na cognição do juiz incumbido ao caso – e a partir delas prolatar uma decisão é o que buscaremos elucidar.

1. Livre convencimento motivado e hierarquia das provas

Segundo este conceito, o magistrado não está preso a nenhum critério formal (Sistema da Prova Tarifada) para a formação de sua cognitio iuris ou livre para escolher ao seu próprio gosto (Sistema da Certeza Moral do Juiz) os argumentos e provas que mais lhe agradarem, mas deve decidir em íntima consonância com as provas que constam nos autos. No mesmo caminho, conceitua Eugênio Pacelli (Curso de Direito Processual Penal, 2020):

“Por tal sistema, o juiz é livre na formação de seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente.”

Este conceito não explicita qual o modo utilizado pelo magistrado na valoração das provas o que ocasiona comumente uma instabilidade interpretativa, ora havendo magistrados que dão maior importância a certo tipo de prova e posteriormente, em grau de recurso, sendo esta prova de todo desconsiderada.

O art. 155 do Código de Processo Penal estabelece limitação probatória no que tange ao momento de produção da prova ao estabelecer que: “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos normativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” Esta limitação busca efetivar o processo dialético entre os participantes do processo, o que ocasiona que cada um forme sua conclusão acerca do fato, mas sendo de importância capital a conclusão do julgado, possibilitando aos demais o direito à recorribilidade com o respeito às normas recursais. Em suma, é o debate entre o falso e o verdadeiro, ou seja, o processo dialético – o método aristotélico. Este reconhecimento e diferenciação entre e real e falso obedece a um critério simples, comum a todos os seres humanos, exposto em poucas palavras por Santo Agostinho (Confissões, 1984, Editora Paulus):

“Quão longe estás de minhas fantasias de então, ficções de corpos inexistentes. Mais reais que essas são as imagens dos corpos que existem, e mais reais ainda que estas imagens são os próprios corpos que não são tu!”

Mutatis mutandis, o magistrado irá reconhecer:: 1º) o que é ficcional/utópico (“ficções de corpos inexistentes’), 2º) a representação do real, mas que não existe realmente (“imagens de corpos que existem”) e 3º) o real (“os próprios corpos que não são tu!”). Deste itinerário surge a questão valorativa em virtude da possibilidade de existência simultânea de situações conflitantes – qual a mais importante/decisiva !?. Aqui entra a Teoria dos Quatro Discursos, especificamente no que diz respeito aos graus de credibilidade.

2. Teoria dos Quatro Discursos

Esta teoria, digamos que encontrada pelo filósofo Olavo de Carvalho na obra de Aristóteles, toma como objeto a compreensão e a expressão humana, que são o fundamento de sua racionalidade e que o distingue de tudo mais existente. Este fundamento é por ele bem explicitado (Aristóteles em Nova Perspectiva, 2013, Vide Editorial, pág. 22):

“(...) compreensão se entende o ato de captar a unidade do pensamento do homem desde suas próprias intenções e valores, em vez de julgá-lo de fora; ato que implica respeitar cuidadosamente o inexpresso e o subentendido, em vez de sufoca-lo na idolatria do “texto” coisificado, túmulo do pensamento”.

Essa compreensão se expressaria de quatro modos diferentes e que possuem graus de credibilidade diferentes: o discurso poético (possível), discurso retórico (provável), discurso dialético (verossímil) e o discurso analítico (certo). Veja que o autor não fala em graus de veracidade, mas em graus de credibilidade, pois o que mais importa é a modificação no ouvinte, no caso em análise o magistrado, e não a veracidade do falado. Aqui tocamos outro assunto de muito interesse aos processualistas penais: no processo penal, o objetivo é alcançar a “verdade material” ou a “verdade processual”? Pelo aqui já exposto da Teoria, percebe-se facilmente que se buscaria a segunda opção, opinião esta de vários destes mesmos processualistas penais, que admitem a impossibilidade da compreensão total do fato, por não ocupar o julgador a função de autor, vítima ou testemunha direta. Portanto, no processo é extremamente raro chegar ao discurso lógico/analítico – a certeza.

O julgador transita do discurso do possível, passando pelo provável até chegar ao verossímil. Não chegando o conjunto probatório e as arguições das partes ao nível da verossimilhança, ou seja, ficando na mera probabilidade, em dúvida o magistrado, deve este decidir in dubio pro reo.

Neste sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues de Alencar (Curso de Direito Processual Penal, 2018, Juspodivm, pág. 80):

“Devemos buscar a verdade processual, identificada como verossimilhança (verdade aproximada), extraída de um processo pautado no devido procedimento, respeitando-se o contraditório, a ampla defesa, a paridade de armas e conduzido por magistrado imparcial. O resultado almejado é a prolação da decisão que reflita o convencimento do julgador, construído com equilíbrio e que se reveste como a justa medida, seja por sentença condenatória ou absolutória”.

Obviamente, dentro do iter processual o discurso preponderante é o discurso retórico, pois pedidos e alegações inócuos são, ou deveriam ser, de pronto desconsiderados. As alegações dentro da denúncia, resposta à acusação, memoriais e recursos situam-se dentro da probabilidade.

“A retórica é a arte de persuadir, porém a técnica de persuasão não permite, por si mesma, saber se o conteúdo do que se está dizendo é verdadeiro ou falso. Ela dá simplesmente os instrumentos psicológicos necessários à persuasão, e não aqueles necessários ao julgamento do conteúdo do que foi dito” (Olavo de Carvalho, Edmund Husserl contra o psicologismo, Vide Editorial, 2021, pág. 20).

“O discurso retórico parte das convicções atuais do público, sejam elas verdadeiras ou falsas, e procura levar a plateia a uma conclusão verossímil” (Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva, 2013, Vide Editorial, pág. 71)

O magistrado purificará a questão extraindo da duplicidade de discursos o fundo comum, o conjunto de princípios comuns. Isso ocorrerá no seguinte processo:

  1. Ouvir: Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição;
  2. Reter: Memória;
  3. Selecionar: Princípio de Arbitragem.

O juiz é obrigado a ouvir mesmo que ao fim da “escuta” chegue à conclusão de irracionalidade do pedido. “(...) uma controvérsia asystata [inconsistente], ainda que não seja adequado chamá-la de controvérsia, já que não possui ‘status’, sendo apenas combinações absurdas, isto é, aloga [irracionais]” (Santo Agostinho, Sobre a Retórica in O Trivium de Santo Agostinho, 2021, Edições Kírion). É um fundamento do modelo democrático a ampla acessibilidade do cidadão ao sistema/poder judiciário, pois, como diz Aristóteles, o fim da democracia é a liberdade.

Os primeiros princípios, os sentidos, as portas do nosso conhecimento não estão continuamente expostos aos dados da realidade, neste caso do recorte processual. A memória é utilizada ao arrepio da nossa atenção, consciência direcionada, sendo um depositório. O juiz ao retomar os autos tem, ao menos esquematicamente, o quadro fático na memória, além das petições juntadas, os pedidos realizados etc. Dentro deste quadro processual caótico, o magistrado utilizará do “princípio de arbitragem”.

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“(...) uma imaginação coletiva encontrando esquemas hipotéticos, em seguida apostando neles – ou contra eles -, depois os confrontando e discutindo, até achar um princípio de arbitragem” (Olavo de Carvalho, Edmund Husserl contra o psicologismo, Vide Editorial, 2021, pág. 18).

Esse princípio é, ao mesmo tempo, conjunto e disposição. É o conjunto-objeto do livre convencimento motivado, são as referências utilizadas na hora da elaboração da sentença. É a disposição do julgador em realizar múltiplos juízos sobre múltiplas provas, arbitrando-as.

Essa arbitragem suscita maior credibilidade a determinados tipos de provas do que em outros. Os exames periciais/técnicos, o interrogatório, a testemunha direta, câmeras, enfim, que se disponíveis dão ao magistrado maior confiança no ato decisório.

3. Evidência Direta e Evidência Indireta: uma nova classificação valorativa das provas

Dentro da filosofia da ciência, o filósofo Olavo de Carvalho estabeleceu as condições essenciais, a ideia pura de ciência, e existenciais para a atividade científica. Uma das condições essenciais são as evidências direta e indireta.

“A primeira exigência para se alcançar o conhecimento certo é que o conteúdo afirmado seja o mais possível evidente, ou seja, que ele não pode ser de outra maneira. (...) Uma evidência indireta é uma verdade que em si mesma não é evidente, mas que é garantida por uma outra que é, esta sim, evidente” (Olavo de Carvalho, Edmund Husserl contra o psicologismo, Vide Editorial, 2021, pág. 21).

Transferindo para processualística penal, a prova pode ser classificada em evidência direta ou indireta. Será direta quando a prova for probante per si, ou seja, forçosa, cogente, imperativa do ponto racional. Será indireta quando necessitar de um alicerce, este sendo uma evidência direta. Por exemplo, o testemunho de alguém que presenciou o homicídio, mas não soube explicar bem, e que foi confirmado por uma câmera de um imóvel vizinho. O testemunho é uma evidência indireta, ao qual a gravação da câmera, evidência direta, transfere veracidade ao alegado no testemunho.

Podemos, esquematicamente e sem nenhuma pretensão taxativa, classificar algumas provas como evidências diretas ou indiretas:

  1. Evidências diretas: gravações fidedignas, exames periciais e laboratoriais, reconhecimento por sistemas computacionais etc.
  2. Evidências indiretas: interrogatório do acusado, confissão, colaboração premiada, declarações do ofendido, testemunhas etc.

Portanto, o livre convencimento motivado nada mais é que o estabelecimento do nexo formal entre o conteúdo da sentença e o conjunto probatório. Esse nexo é estabelecido a partir do princípio de arbitragem – seleção + material. Esse nexo formal é o que dotará a sentença da credibilidade social. A sentença justa é a concorde com as provas dos autos, estabelecendo a justiça não por ditames legais, mas pela observação mais ampla possível da causa. O magistrado inicia o processo com uma credibilidade inicial e a sentença justa o faz manter ou melhorar sua credibilidade ao fim do processo (credibilidade final).

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Sobre o autor
Eric Hugo Albuquerque de Araújo

Advogado. Pós-graduando em Psicologia Forense no Sistema Penal. Membro-associado do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Eric Hugo Albuquerque. Convencimento do juiz e hierarquia das provas:: uma luz através da teoria dos quatro discursos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6681, 16 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94065. Acesso em: 25 abr. 2024.

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