6. Crimes de Sonegação Fiscal e a Excludente de Ilicitude do Estado de Necessidade
Dentre outras razões, desde sempre existentes, mas contemporaneamente, em consequência de uma pandemia, que afeta drasticamente todos os setores da economia já há mais de um ano, e sem data para terminar, imperiosa a obrigação de tratarmos da excludente de ilicitude do estado de necessidade, que inevitavelmente trará repercussões na jurisprudência.
Não havendo o agente passivo da obrigação tributária suprimido, reduzido tributo ou contribuição social, ou qualquer acessório, com a intenção locupletar-se ilicitamente, com claro e comprovado intento de alcançar enriquecimento ilícito, agindo com má-fé, não praticará crime, pois faltará em sua ação o elemento subjetivo. O cometimento de um crime sempre dependente de um componente interno no agente. Portanto, ao agir conforme os elementos objetivos do tipo penal em cada caso, e lhe faltando o elemento subjetivo, podemos estar diante da subsunção do fato à norma penal por outra razão, que o direito não trata como criminosa, pois afasta o injusto da conduta.
Nos tempos que vivemos, temos que muitos contribuintes, principalmente pequenos empresários, irão responder a procedimento administrativo fiscal e criminal fiscal, sem a intenção de locupletar-se ilicitamente, mas em verdadeiro e inegável estado de necessidade.
Mais uma vez, mas agora por outro ângulo, queremos dizer que do contribuinte deve ser afastada a visão inquisitorial de que todos são sonegadores em potencial, o que, mesmo que de forma velada, se reflete claramente nos procedimentos administrativos e de persecução penal. Vivemos tempos de sobrevivência, e àqueles que duvidam disso, basta analisar as estatísticas econômicas, e o alto índice de fechamento de empresas e a correlata demissão de funcionários.
Quanto à possibilidade de se arguir a exclusão de ilicitude em favor de um acusado, não nos parece de pronto haver qualquer óbice, uma vez que os artigos que tratam do tema são extremamente claros e conhecidos pelos operadores do direito, desde os primeiros contatos com o direito penal nos bancos acadêmicos. Doutrina e jurisprudência confortam essa afirmação, desde que cumpridos rígidos requisitos.
Ao definir a causa de excludente de ilicitude, assim firmou o legislador no art. 24 do Código Penal Brasileiro28:
“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
Com efeito, eventual não pagamento de tributo que seja ocorrido de forma a se enquadra perfeitamente no artigo mencionado, seria protegido pela excludente de ilicitude em questão.
Esse entendimento já é objeto de jurisprudência e a doutrina em tempos normais, mesmo que não unânime. Provavelmente a tendência é que ganhe força em tempos de pandemia e pós-pandemia.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, oportunamente, já se manifestou no sentido da possiblidade de absolvição de um acusado de sonegação, nos autos da ação penal n.º 5005321-36.2011.404.710029 por ter agido em estado de necessidade, absolvendo o réu com base do art. 386, VI do Código de Processo Penal30.
O julgado sinaliza, no entanto, a exigência de severas condições à aplicação da excludente de ilicitude. Deve haver uma robusta comprovação da inafastável, imprevisível, concreta e invencível gravidade financeira do acusado, como, por exemplo: a existência de títulos já protestados, dívidas de natureza trabalhista, empréstimos bancários não adimplidos, não distribuição de lucros e até mesmo aportes de capital dos sócios em socorro da pessoa jurídica. Por tanto, a excludente de ilicitude é um caso típico de vida ou morte, em que todos os outros meios de sobrevivência financeira já foram executados, não restando, ao fim, alternativa senão a sonegação de tributos para manter viva a empresa. É necessário, portanto, comprovar a impossibilidade real de o acusado não poder mais, de forma alguma, após exaurido todos os demais meios, de agir conforme o direito, para que seja afastado o injusto penal de sua conduta.
Outros julgados são facilmente encontrados, na mesma linha decisória31.
As dificuldades financeiras enfrentadas pela atual pandemia fez até mesmo com que um governo, com um ministro da economia extremamente liberal como Paulo Guedes, ferrenho seguidor da Escola de Chicago32, se visse obrigado a atuar de forma extremamente assistencialista, mostrando além da gravidade da situação enfrentada pelos contribuintes, a necessidade de uma visão mais, digamos, mais complacente, também com casos em que não é mais possível pagar tributos sem que as empresas entrem em insolvência; seja pela estrutura de capital própria da empresa, seja pela afetação geral do consumo do qual as mesmas dependem para sobreviver. Ainda, governo algum quer que índices de desemprego aumentem durante seu governo.
Necessidades diversas estão sendo enfrentadas e o empresariado é cada vez mais prejudicado. A recentíssima Lei 14.151, publicada em 13 de maio de 202133, com vigência imediata, por exemplo, determina o afastamento das empregadas gestantes do trabalho presencial durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do Coronavírus/covid-19, colocando-as à disposição do empregador para, em domicílio, empreender teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho à distância.
O objetivo da mencionada lei é evidente: reduzir a possibilidade de contaminação das gestantes, grupo de risco como evidenciado pelas estatísticas, preservando sua renda integral. No entanto, não são todas as empregadas, em período de gestação, que exercem atividades compatíveis com as modalidades de trabalho remoto, prejudicando o empresário, por melhor que seja a intenção da lei. De fato, os coloca cada vez mais perto da insolvência. Não estamos aqui criticando a lei mencionada, até porque se trata apenas de mais um exemplo da situação de exceção que vive o contribuinte em tempos de pandemia por Covid-19.
Existem ainda outros diversos benefícios assistenciais que acabam prejudicando sobremaneira o contribuinte, sobretudo o empregador. O Projeto de Lei Complementar 29/202034, prevê, inclusive, a isenção de quase a totalidade dos tributos e contribuições aos integrantes do simples nacional – até agora os mais afetados pelo menor poder financeiro; e o Projeto de Lei 1143/202035, que poderá conceder moratória quanto aos tributos federais por 90 (noventa dias), com posterior possibilidade de adesão à eventual programa de parcelamento, mas desde que o contribuinte mantenha os postos de trabalho.
Parece-nos latente que, nesse cenário, eventuais fatos tipificados como crimes fiscais deverão, ou deveriam, ser cada vez mais alcançados pela exclusão de ilicitude do estado de necessidade.
Fato é que a vida do empresário no Brasil nunca foi fácil. A caótica situação em que vivemos faz com que as empresas enfrentem, não por sua culpa, ainda drástica redução de receita. Com a incerteza quanto à duração do período da pandemia, cada vez mais surge no horizonte um cenário gradativamente mais problemático e, nesse contexto, deve-se ter em mente que o contribuinte é um sobrevivente; não um potencial sonegador fiscal, agindo de má-fé para alcançar enriquecimento ilícito por meio da supressão de tributos. Só o futuro dirá até onde esse cenário avançara. Por enquanto, estamos no terreno da completa incerteza, otimismos à parte, visto o recorrente surgimento de novas variantes do Covid-19, como, por exemplo, a variante delta.
7. Moedas Eletrônicas e Crime de Lavagem de Dinheiro
As moedas eletrônicas, principalmente as que usam tecnologia criptográfica, chamadas de criptoativos ou cryptocoins, são instrumentos criados para funcionar longe dos olhos do Estado. A sua idealização inicial, como já dito, foi a de criar um ativo circulante decentralizado, onde as dados dos usuários e o rastro das transações não estejam em poder de um órgão central, responsável por confirmar e guardar essas informações. Também, o anonimato é indispensável para que tragam os benefícios pensados quando de sua criação.
Essa realidade certamente trará novos e difíceis desafios ao Estado-Fisco na identificação dos crimes de lavagem de dinheiro. É preciso se pensar como essas novas tecnologias serão tratadas, ou combatidas pelo Estado, sem que, mais uma vez, criem-se mecanismos em que todos sejam tratados, presumidamente, como potenciais criminosos; pois o anonimato e o sigilo das transações não necessariamente tem por trás intensões criminosas, pelo contrário, crime talvez seja impedir o seu uso de forma legal e livre.
A legislação brasileira atual define o crime de lavagem de dinheiro na Lei n.º 9.613/9836, como sendo: “as ações de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Incorre nas mesmas penas quem ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, convertendo-os em ativos lícitos, os adquirindo, recebendo, trocando, negociando, dando ou recebendo em garantia, guardando, mantendo em depósito, movimentando ou transferindo, importando ou exportando bens com valores dissimulados, utilizando na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, participando de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos na letra da lei correspondente”.
Em apertadíssima síntese podemos concluir, da leitura dos dispositivos da lei, que a prática do crime de lavagem de dinheiro tem sempre como objetivo central a ocultação ou dissimulação da origem ilícita de ativos e patrimônios, de forma a lhes atribuir aparência de legalidade, lançando esses ativos na economia como ativos lícitos. Sobre o tema, de forma mais aprofundada em aspectos históricos e conceituais, que não são o objetivo desse artigo, há uma excelente explicação no próprio sítio eletrônico da Receita Federal37.
Importante frisar que o crime de lavagem de dinheiro exige sempre a ocorrência prévia da prática de uma infração penal que deu origem ao ativo ilícito, que só posteriormente será objeto de lavagem, em termos jurídicos. Trata-se, portanto, de crime acessório.
É o que se extrai do art. 1º da Lei n.º 9.613/98:
“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa.” grifo nosso.
Como dito alhures, as características das moedas eletrônicas, como a constante criação de novos ativos digitais, com funções cada vez mais específicas, a não vinculação a instituições oficiais, seu alcance global, o anonimato, a inexistência física e, consequentemente, seu difícil rastreamento, lhes dão, indubitavelmente, enorme potencial de uso para a pratica dos crimes de lavagem de dinheiro.
A prática de atividades criminosas como de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, entre outras, traz sempre um grande problema para seus executores: a existência física da moeda, que deve ser transportada e armazenada. As moedas digitais são certamente um instrumento altamente atrativo na execução desses ilícitos, uma vez que o risco de rastreamento, apreensão, identificação dos proprietários, e o alto risco e custo em sua ocultação e transporte, na manipulação de dinheiro físico, são mitigados.
Outras questões ainda lhes conferem atributos atraentes para a utilização de forma criminosa. Como dissemos, o que possibilitou definitivamente a criação e a utilização eficaz dessas moedas, que se iniciou com o mais famoso deles, o bitcoin, é a tecnologia blockchain. Essa última tecnologia, funciona de forma a não possibilitar a reversibilidade das transações após sua conferência por um sistema descentralizado, onde vários computadores ao redor do globo são responsáveis pela sua conferência e registro, pelos chamados mineradores. Em sua maioria, não há, portanto, como utilizar os usuais sistemas de confisco e bloqueio de valores, desenvolvidos para uso no sistema bancário tradicional. Sua fruição global, com movimentação em tempo real, também é um obstáculo sem precedentes nesse sentido38.
Os Estados, por meio de sues bancos centrais e receitas federais, estão obviamente plenamente cientes dessas questões. No entanto, mais uma vez a ganância arrecadatória prevalece, e é impressionante como nesse intuito são extremamente ágeis e eficazes. No Brasil, o Estado parece estar preocupado apenas com a arrecadação de tributos pelos lucros obtidos com a negociação desses ativos, deixando de lado observações pertinentes à prática de crimes de lavagem de dinheiro; ao menos no que diz respeito à reforma tributária.
Dada a já consagrada utilização do Direito Penal como instrumento de coação, certo que, se a discussão sobre o tema não se iniciar -e a reforma tributária seria um momento oportuno-, logo se inflará ainda mais a legislação, inclusive a penal, com retalhos legislativos, para fiscalizar e punir cada vez mais qualquer pessoa que negocia ativos eletrônicos de forma lícita, seja como forma de auferir lucro em negociações, ou apenas como moeda de troca.
A Receita Federal já mostra movimentos nesse sentido. Por aqui, a questão já é tratada pela Instrução Normativa n.º 1.888/201939, que impôs a obrigatoriedade de prestação de todas as informações de qualquer operação realizada com moedas eletrônicas, tanto pelas corretoras, chamas de exchanges40, como por seus usuários.
Já existe, também, uma Circular de n.º 3.978/202041, que trouxe nova regulamentação às obrigações das instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, visando maior rigidez aos procedimentos e os controles internos a serem adotados, para à prevenção da utilização do sistema financeiro contra a prática dessa modalidade criminosa. Tendo as exchanges atuantes em território nacional tal autorização, a mencionada circular aplica-se plenamente a elas.
Percebe-se, que antes mesmo de uma discussão aprofundada do tema, já começam a surgir instruções normativas e circulares, fazendo com que o sistema tributário fique cada vez mais confuso e caótico, e o uso do direito penal, como instrumento de coação, certamente prevalecerá. Tudo isso vai de encontro ao centro das propostas de reforma tributária.
Não estamos defendendo, obviamente, que não deva haver regulação dessa nova indústria de ativos digitais. Mas a inteligência média claramente nos diz que deve se realizar debates sérios e aprofundados, para que quando a reforma tributária vier, possa alcançar seu objetivo central de simplificação do sistema tributário, e a criação de um ambiente de negócios mais atrativo e saudável, e a deposição de uma política criminal extremamente punitivista e ultrapassada.
Nesse sentido, Thiago Augusto Bueno42:
“Não se mostra producente o enfrentamento dos crimes de lavagem de dinheiro com a utilização de bitcoin a partir da simples criminalização do uso do criptoativo. O bitcoin não é ilegal por si próprio, já que não ameaça o monopólio estatal da emissão de moeda, nem se confunde com o crime de moeda falsa. A ilicitude ocorre quando é empregado como instrumento no processo de disrupção da origem ilícita de patrimônio amealhado com a prática de infração penal anterior. É para essas situações que as autoridades devem se atentar e dirigir seus esforços. A política de banimento do bitcoin, além de ineficaz, dado o caráter descentralizado, difuso e transnacional do criptoativo, não é a medida, do ponto de vista de controle penal, mais adequada, devendo ser buscada sua regulação de modo a permitir o implemento de medidas de controle, registro e comunicação das operações e dos usuários, hoje exigíveis das instituições financeiras, às corretoras virtuais (exchanges), responsáveis pela conversão dos valores digitais em moedas soberanas, grande elo entre criptoativos e as moedas estatais. Protocolos de registro das operações e de comunicação às autoridades governamentais são ferramentas essenciais no combate ao crime de lavagem de dinheiro. Além disso, de rigor o aprimoramento de ferramentas que permitam o eficiente cumprimento de medidas para bloqueio de valores em wallets, de modo a se garantir a efetividade das decisões judiciais. Tudo isso demonstra a importância da regulação da matéria. No entanto, tal processo deve ser feito com amplo debate, do qual participem agentes do Estado, desenvolvedores de tecnologia e usuários, de modo a se conferir legitimidade e aplicabilidade efetiva”.