Há situações legais que se aproximam, quanto aos efeitos que produzem, das causas especiais de exclusão do crime, cuja sistematização propusemos em outro trabalho (IENNACO, Rodrigo. Causas Especiais de Exclusão do Crime. Porto Alegre: Safe, 2006). Apesar dessa estreita relação axiológica e a despeito de estarem incluídas no rol das circunstâncias legais não incriminadoras, não são casos de normas permissivas justificantes ou exculpantes: a) normas integrantes complementares ou explicativas, quando se referem ao tipo incriminador; e b) normas despenalizantes.
Assim, por exemplo, quando o art. 150, § 5º, do Código Penal estabelece o significado e o alcance do termo "casa" para os fins de incriminação pelo delito de violação de domicílio, afasta do âmbito de proteção da lei penal: a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo o aposento ocupado; e b) taverna, casa de jogo e outras do gênero. Quando se trata, como aqui, de norma penal não incriminadora complementar ou explicativa, define-se o âmbito de aplicação do preceito primário (art. 150, caput), revelando hipótese de atipicidade formal do fato. Vale dizer, não há subsunção; o juízo de adequação típica é, de início, negativo.
O mesmo raciocínio vale para o conceito legal de funcionário público (art. 327, CP) para os fins do Direito Penal (norma penal explicativa), que projeta efeitos diretamente no tipo dos delitos em que essa especial condição do sujeito ativo (crime próprio) aparece como elementar do tipo (art. 312 e segs; art. 289, § 3º etc.), aplicando-se ainda nos casos em que a lei admite a exceção da verdade (norma penal complementar: arts. 138, § 3º e 139, parágrafo único, CP).
E não é só. Mesmo após a realização da ação ou omissão típica, ilícita e culpável, podem sobrevir determinadas causas que impedem a possibilidade jurídica de imposição ou execução da sanção penal correspondente, com base em determinadas contingências supervenientes ou por motivos, precedentes ou supervenientes, de conveniência ou oportunidade político-criminal. São as chamadas causas de extinção da punibilidade, normas penais não incriminadoras despenalizantes cujo rol exemplificativo se encontra previsto no art. 107, do Código Penal. A punição é a natural conseqüência da ação típica, antijurídica e culpável, podendo ocorrer, porém, situações que impedem a aplicação ou a execução da sanção penal. Fora os casos contemplados no art. 107, do Código Penal (morte do agente; anistia, graça e indulto; abolitio criminis; prescrição, decadência e perempção; renúncia e perdão; retratação do agente; casamento do agente com a vítima; casamento da vítima com terceiro e perdão judicial), temos ainda hipóteses especiais de extinção da punibilidade, por exemplo, nos arts. 143; 342, § 2º; 168-A, § 2º; 312, § 3º; e 337-A, § 1º, todos do mesmo diploma legislativo: normas penais não incriminadoras permissivas despenalizantes.
Dessas causas, merece análise mais detida a escusa absolutória.
A expressão escusa absolutória é específica, referindo-se a instituto com natureza peculiar, que se aproxima, em seus efeitos, dos casos genéricos de extinção da punibilidade. Apesar de, vez por outra, ser utilizada terminologia diversa[1], esse é o nomen iuris mais difundido e de melhor técnica, por evitar a confusão com outros institutos próximos. Ademais, a nomenclatura, como acentua Ana Luiza Ferro, revela grande abrangência de significado, por indicar o efeito indiscutível da liberação do sujeito ativo de qualquer conseqüência penal pelos atos previstos na norma.[2]
Escusa absolutória é a expressão utilizada para designar circunstâncias legais que afastam a aplicação da pena, acarretando os mesmos efeitos dos casos legais de extinção da punibilidade, apesar de, em ambos os casos, permanecer íntegra a estrutura analítica do crime. Na definição de Sheila Selim de Sales, é a "particular espécie de normas que isentam de pena o agente culpável, pela prática do injusto típico, tendo em vista considerações de ordem político-criminal".[3] O que desaparece ante a presença da escusa absolutória é a conveniência de aplicação da pena, assim analisada a priori pelo legislador, tal qual ocorre, por razões de viabilidade ou necessidade, nos casos expressos do art. 107, do Código Penal, remetendo-se a análise, em alguns casos, ao juiz. Em todas essas hipóteses, porém, há crime, mas a pena desaparece. Como ensina Sheila Selim, as escusas absolutórias, apesar de se aproximarem, em suas conseqüências jurídicas, das causas de exclusão do crime (justificantes e exculpantes):
[...] não se confundem com as causas de exclusão da ilicitude, que retiram do fato típico o seu caráter ilícito, nem com as causas de exclusão da culpabilidade, que impedem a incidência do juízo de reprovação pessoal sobre o agente de um fato típico e ilícito.[4]
Há profunda divergência quanto à natureza do instituto. As escusas absolutórias eram incluídas por Frederico Marques entre os casos de perdão judicial[5], dizendo Damásio, a respeito, que a diferença entre os institutos residiria na natureza da sentença concessiva: na escusa absolutória, declaratória; no perdão judicial, constitutiva[6]. Ana Luiza Ferro, competende sistematizadora da matéria, reúne as diversas noções sobre a natureza jurídica das escusas absolutórias em quatro tendências: a) condição negativa de punibilidade; b) causa especial de exclusão de pena; c) caso de inexigibilidade de conduta diversa; e d) causa de extinção da punibilidade[7].
Mesmo em face das objeções da professora maranhense e sem olvidar as diferenças apontadas[8], doutrinariamente, entre as causas de extinção da punibilidade e as escusas absolutórias, aderimos à quarta corrente. O fato de a escusa absolutória verificar-se contemporaneamente ao crime não retira o caráter criminoso do fato, mas sim sua conseqüência jurídica, tal qual ocorre com o perdão judicial e com as demais causas de extinção da punibilidade. Ora, se confrontarmos o perdão judicial com as outras causas extintivas do art. 107, do Código Penal, também estabeleceremos diferenças, e nem por isso o perdão judicial deixará de ser causa de extinção da punibilidade. Não por outra razão o perdão judicial aparece como espécie do gênero extinção da punibilidade (art. 107, IX, CP). Diante de tal constatação e pelo mesmo raciocínio, deveria o legislador (de lege ferenda) prever, acrescentando um inciso às hipóteses do art. 107, expressamente, a escusa absolutória. Essa proposta representa, na verdade, do ponto de vista metodológico, a melhor solução: ao invés de excluir o instituto do rol dos casos de extinção da punibilidade a partir do direito positivo vigente (tecnicismo jurídico), parte-se da análise substancial do instituto para revelar o desacerto do legislador, visando à sua inclusão e consagração no direito positivo, tal qual se dá com o perdão judicial, que está previsto especificamente em vários pontos da legislação e apenas referido genericamente no art. 107, do Código Penal.
No caso, há o crime, com todos seus aspectos estruturais, mas a punibilidade derivada do injusto culpável é afastada pela renúncia (ex ante) estatal em concretizá-la[9]. No plano instrumental do processo, portanto, o ius puniendi é alijado por considerações utilitárias de política criminal. É o que se verifica no art. 181, do Código Penal.
Notas
[1] Para designar os casos de escusa absolutória, empregam-se expressões supostamente equivalentes: nesse sentido, Nelson Hungria e Heleno Fragoso (imunidade penal); Damásio (imunidade penal absoluta); Mirabete (imunidade absoluta); Assis Toledo (causa pessoal de exclusão de pena); Regis Prado (causa pessoal de isenção de pena); Ariosvaldo Pires (causa de isenção de pena); Paulo da Costa Júnior (causas de impunidade) (cf. FERRO, Ana Luiza Almeida. Escusas absolutórias no direito penal, p. 13-14).
[2] FERRO, Ana Luiza Almeida. Escusas absolutórias no direito penal, p. 15
[3] SALES, Sheila Jorge Selim de. Do sujeito ativo na parte especial do código penal, p. 83.
[4] SALES, Sheila Jorge Selim de. Do sujeito ativo na parte especial do código penal, p. 83-84.
[5] MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 38.
[6] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. Parte geral, 16. ed. v. 1. p. 592.
[7] FERRO, Ana Luiza Almeida. Escusas absolutórias no direito penal, p. 18-20.
[8] Com base nos argumentos de Sheila Selim de Sales e Damásio de Jesus, Ana Luiza Ferro apresenta distinções entre as escusas absolutórias e o perdão judicial: "a) as primeiras são previstas pela lei penal sob o signo da expressão ‘é isento de pena’ ou ‘fica isento de pena’, enquanto o segundo é anunciado pelo texto legal mediante a expressão ‘o juiz pode deixar de aplicar a pena’ (ou uma de suas mínimas variações: ‘o juiz poderá deixar de aplicar a pena’ e ‘pode o juiz deixar de aplicar a pena’); b) as primeiras são taxativamente impostas pela lei penal, que determina ao magistrado que proceda obrigatoriamente à exclusão de pena; já o último depende, para a sua aplicação, de uma certa ‘faculdade’ conferida ao juiz pela norma penal, isto é, confiada ao seu poder discricionário; c) as primeiras, em função de sua imposição taxativa no texto legal, não permitem qualquer margem de discricionariedade ao magistrado; o segundo, ao contrário, implica, para a sua aplicação, a realização, pelo juiz, de uma apreciação valorativa das circunstâncias pertinentes, corporificadas no caso concreto, utilizando-se de inevitável dose de subjetividade; e d) as primeiras são reconhecidas em sentença meramente declaratória, ao passo que o último é concedido em sentença constitutiva" (cf. FERRO, Ana Luiza Almeida. Escusas absolutórias no direito penal, p. 33). Quanto às divergências no tocante à natureza jurídica da sentença concessiva do perdão judicial, cf., ainda, FERRO, Ana Luiza Almeida. Escusas absolutórias no direito penal, p. 33, nota 9.
[9] Ana Luiza Ferro, apoiada no magistério de Sheila Selim de Sales, diferencia ainda as escusas absolutórias das causas extintivas da punibilidade, a exemplo da morte do agente e da anistia: "... estas [as causas extintivas da punibilidade] pressupõem a existência de fato exterior e apartado do injusto típico realizado pelo autor ou partícipe, constituindo-se num fato ou situação posterior à admissão da punibilidade do crime. Assim, [...] o Estado renuncia ao poder-dever de punir;". E complementa Ana Luiza: "Diversamente, o reconhecimento de uma escusa absolutória não indica uma renúncia estatal a semelhante poder, porém uma autêntica subtração a tal poder-dever, infligida especialmente pela norma penal. É nesse contexto que as escusas absolutórias são entendidas como peremptórias [...]". Discordamos... o Estado, por razões de política criminal, também nas escusas absolutórias, renuncia ao poder-dever de aplicar a pena. Assim, quando o legislador diz, no art. 181, do CP, que é ‘isento de pena’ o autor de crime patrimonial cometido em prejuízo de determinadas pessoas vinculadas àquele por determinados laços de parentesco, o faz por razão de conveniência. Tanto é assim, que se o crime contra o patrimônio for praticado mediante violência ou grave ameaça à pessoa, a escusa não aproveita ao sujeito ativo (art. 183, I, CP). Nas causas extintivas da punibilidade sucede o mesmo fenômeno de renúncia estatal, ora pela inconveniência, ora pela desnecessidade ou impossibilidade de aplicação da pena.