Capa da publicação Lei de abuso de autoridade: alterações e consequências

Alterações decorrentes da lei de abuso de autoridade.

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23/10/2021 às 09:23
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3 ANÁLISE SISTEMÁTICA DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

3.1 Objeto e finalidade da Lei de Abuso de Autoridade

De acordo com Lima (2020), estamos diante de um crime pluriofensivo, que tutela dois bens jurídicos distintos: em primeiro lugar direitos e garantias fundamentais do cidadão, como o direito de locomoção, a liberdade individual, direito a assistência do advogado, a intimidade ou a vida privada, em segundo, objetiva garantir o bom funcionamento da Administração Pública, bem como o dever do funcionário público de atuar com lealdade e probidade, para que sejam preservados os princípios base da Administração Pública, como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Lima (2020), ainda discorre que, a lei será aplicada quando o agente público exceder os limites de sua competência (excesso de poder) ou quando praticar um ato com finalidade diversa daquele que expressa a lei de forma explicita ou implícita (desvio de poder), em ambas as hipóteses, a aplicação da lei está condicionada a conduta do agente no exercício de sua função ou a pretexto de exercê-las.

Portocarrero e Ferreira (2020, p. 39), articulam que a objetividade jurídica do crime de abuso de autoridade é o interesse de preservar o normal funcionamento da administração pública e os direitos e garantias fundamentais do cidadão, previstos na CRFB/88.

3.2 Tipo subjetivo dos crimes de abuso de autoridade

Lima (2020) expressa em sua obra que, às vezes, o legislador introduz em determinados tipos penais, ao lado do dolo, uma série de características subjetivas que os integram ou os fundamentam. E que a doutrina clássica denominava, erroneamente, o elemento subjetivo geral do tipo de dolo genérico e o especial fim de agir de dolo específico. Mas apesar desse especial fim de agir ampliar a subjetividade do tipo, ele não integra e nem se confunde com o dolo. Visto que o especial fim de agir se esgota com a consciência e a vontade de realizar determinada conduta com finalidade de obter o resultado delituoso (dolo direto), ou assumindo o risco de produzi-lo (dolo eventual). Ou seja, o especial fim de agir que integra determinadas definições de delitos, constitui, assim, elemento subjetivo do tipo de ilícito, de maneira autônoma e independente do dolo. Sua ausência acaba por descaracterizar o tipo subjetivo, mesmo se houver a presença do dolo. A terminologia correta, portanto, é elemento subjetivo especial do tipo ou elemento subjetivo especial do injusto. Enquanto o dolo necessariamente deve se concretizar no fato típico, os elementos subjetivos especiais do tipo apenas tem o condão de especificar o dolo, sem que haja necessidade de efetivamente se concretizarem, sendo suficiente que existam no psiquismo do autor, ou seja, desde que a conduta do agente tenha sido orientada por essa finalidade especifica. Um exemplo que ilustra o que foi exposto:

Assim, se determinada pessoa foi sequestrada e o objetivo do criminoso era o de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate, ter-se-á caracterizado o crime de extorsão mediante sequestro (CP, art. 159), ainda que tal vantagem jamais seja obtida pelo agente. Do contrário, é dizer, se ausente esse especial fim de agir, que o crime será o de sequestro ou cárcere privado (CP, art. 148). (LIMA, 2020, p. 29)

No entendimento de Greco e Cunha (2020), o elemento subjetivo existente nos vários tipos incriminadores, restringe o alcance da norma de tal forma que, no ponto de vista dos autores, o dolo eventual fica descartado, considerando as especificidades dos artigos.

Referente a possibilidade de dolo eventual, Lima (2020), relata que o fato de o delito contemplar um especial fim de agir, como ocorreu nos crimes de abuso de autoridade, não afasta a possibilidade de o delito ser imputado ao agente a título de dolo eventual. Por isso, se restar comprovado que o agente público não queria o resultado (dolo direto), mas assumiu o risco de produzi-lo, deverá responder pelo crime de abuso de autoridade em questão a título de dolo eventual. A ressalva fica por conta dos tipos penais de abuso de autoridade cuja redação típica deixar entrever que o legislador deliberadamente quis afastar a possibilidade de imputação a título de dolo eventual. Quando faz uso de expressões como, por exemplo, que sabe ou que deveria saber, há certos crimes na nova Lei de Abuso de Autoridade cuja punição é admitida apenas a título de dolo direto.

Lima (2020), ainda corrobora que, parece não haver dúvida quanto à existência de um elemento subjetivo específico em relação aos crimes de abuso de autoridade, previstos na Lei n. 13.869/19, pelo menos em regra. Porque há a exceção do art. 29 da nova lei de Abuso de Autoridade que optou por restringir o elemento subjetivo especial do injusto constante no art. 1º, §1º da Lei 13.869/ 2019 que as condutas ali descritas constituem abuso de autoridade quanto praticadas pelo agente com à finalidade especifica de prejudicam outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda por mero capricho ou satisfação pessoal. De fato, enquanto este, de aplicação genérica a todos os crimes de abuso de autoridade, o art. 29, em sua parte final, menciona apenas o fim de prejudicar interesse do investigado. Então, de acordo com o princípio da especialidade, o ideal é concluir que, em relação ao delito do art. 29, não se aplica a regra geral do art. 1º, §1º, da Lei, estando seu elemento subjetivo especial restrito a finalidade específica de prejudicar interesse do investigado. Se a conduta por pratica com a finalidade de beneficiar o investigado, não há o que falar em tipificação desse delito, dependendo do caso concreto, poderá ser tipificado a figura delituosa de prevaricação (CP, art. 319).

Greco e Cunha (2020), expressão ainda que, esse especial fim de agir, a finalidade especifica de prejudicam outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal deverá ser apontado, especificamente, na peça inaugural da ação penal, já que de acordo com o art. 41 do Código de Processo Penal, a denúncia ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as circunstancias, sendo assim, o elemento subjetivo, deverá ficar expressamente apontado na peça inicial de acusação. Caso não conste na inicial essa particular motivação, não poderá o réu defender-se das acusações contra ele formuladas e a denúncia ou a queixa deverão ser rejeitadas, com fundamento no inciso I do art. 395 do Código de Processo Penal, por motivo de ser a denúncia ou a queixa manifestamente inepta.

Nas palavras de Portocarrero e Ferreira (2020, p. 38), A natureza jurídica do §1º que se refere ao especial motivo ou finalidade de agir, indispensável para a caracterização do crime, cuida-se de hipótese em que restará afastada a própria tipicidade, ou seja, excludente de tipicidade.

3.3 Vedação do crime de hermenêutica

No entendimento de Portocarrero e Ferreira, o art. 1º, § 2º da Lei n. 13. 869/19 ao trazer a redação A divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade determina que não se poderá reconhecer abuso quando houver divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas. Aquele que opera com o direito não pode ser responsabilizado por crime ao abraçar uma orientação que, posteriormente, venha a ser modificada por instância revisora superior. A independência da Magistratura e do Ministério Público não podem, em absoluto, ser submetida a punições penais em decorrência da interpretação possível que seus membros adotem.

De acordo com Lima (2020), o objetivo do dispositivo sob análise foi o de coibir aquilo que Rui Barbosa chama de crime de hermenêutica, assim compreendida como toda e qualquer figura delituosa que procure criminalizar a interpretação jurídica, fática ou probatória que o agente público dê aos fatos que lhe são trazidos para sua apreciação.

Lima (2020, p 38), ainda corrobora que, mesmo na vigência da revogada Lei de Abuso de Autoridade, a jurisprudência já rechaçava a possibilidade de se responsabilizar criminalmente o magistrado pela mera divergência de interpretação:

Faz parte da atividade jurisdicional proferir decisões com o vício in judicando e in procedendo razão por que, para a configuração do delito de abuso de autoridade há necessidade de demonstração de um mínimo de má-fé e de maldade por parte do julgador, que proferiu a decisão com a evidente intenção de causar dano à pessoa.[2]

3.4 Novatio legis in pejus

Respaldado no entendimento de Portocarrero e Ferreira (2020), a Lei n. 13.869/19 pode ser considerada como lex gravior, em razão de cuidar de forma mais contundente e severa de condutas anteriormente previstas que possuíam penas pouco rigorosas, além de ter sido uma novatio legis incriminadora, que criou tipos penais, neste caso a lei não retroagirá para atingir fatos pretéritos a sua vigência, em razão do princípio da irretroatividade penal, prevista no art. 5º, XL, da Constituição Federal. Por outro lado, alguns tipos penais não foram repetidos na lei atual, que deixou de considerar como abuso de autoridade o atentado ao sigilo da correspondência, a liberdade de consciência e de crença, ao livre exercício do culto religioso, a liberdade de associação, aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto, ao direito de reunião e aos direitos e garantias assegurados ao exercício profissional de várias categorias, que a atual lei só trata dos direitos e prerrogativas da advocacia, se omitindo quanto as tantas outras profissões que podem ser atingidas pelas arbitrariedades estatais. Em relação às omissões citadas, em que as hipóteses não encontram respaldos em outros tipos penais previstos no ordenamento jurídico brasileiro, terá ocorrido abolitio criminis, que extingue a punibilidade, deve neste caso, a lei retroagir para alcançar fatos anteriores à sua vigência.

3.5 Sujeito ativo e passivo

De acordo com o que feito exposto por Greco e Cunha (2020), sujeito ativo é aquele que pratica a conduta descrita no núcleo do tipo. A Lei 13.869/2019 apontou aqueles que poderiam figurar nessa condição, criando então, delitos considerados como próprios, pois o sujeito ativo tem que ter uma característica especial, isto é, os crimes só podem ser praticados por um determinado grupo de pessoas, que gozem da qualidade exigida pelo tipo. A preocupação em demonstrar seu caráter geral é tamanha que acabou sendo mais do que redundante, explicando, reexplicando e exemplificando.

O caput do art.2º da Lei 13. 869/2019, de forma suficiente, já diz ser sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território. Em seguida, num rol meramente exemplificativo, alerta que a norma, por obvio, não se limita a: I- servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; II- membros do Poder Legislativo; III- membros do Poder Executivo; IV- membros do Ministério Público; VI- membros dos tribunais ou conselhos de contas. Como se não bastasse, o parágrafo único define agente público, para efeitos da Lei, como sendo todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vinculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangido pelo caput (GRECO e CUNHA, 2020).

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Conforme o entendimento de Lima (2020), é interessante notar que a nova Lei de Abuso de Autoridade não faz referência, como faz o Código Penal em seu art. 327, §1º ( que define quem considera-se funcionário público, para os efeitos penais), aos denominados funcionários públicos por equiparação, assim compreendido como aquele que exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da administração. Sendo assim, atento ao princípio da especialidade, tal conceito não pode ser aplicado a nova Lei de Abuso de Autoridade. Repete-se então uma situação inusitada, que já existia na antiga Lei 4. 898/65. Enquanto aquele indivíduo que exerce atividade típica da administração pública (ex.: coleta de lixo) é considerado funcionário público no tocante aos crimes contra a Administração Pública, já que este funcionário é considerado funcionário público por equiparação pelo Código Penal para os efeitos penais, podendo por tanto responder por crimes como peculato e corrupção passiva, este mesmo funcionário público por equiparação não pode ser considerado agente público para efeito da nova Lei de Abuso de Autoridade, haja vista o silêncio da norma especial em relação aos funcionários públicos por equiparação e sendo inviável qualquer espécie de analogia, porque seria analogia in malam partem.

As férias ou licenças não desligam os vínculos jurídicos entre o agente público e o Estado, razão pela qual, desde que a autoridade se valha do cargo e cometa algum abuso, pode -se incorrer na Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade. De outro lado, caso a conduta seja praticada com total desvinculação ao cargo, tal ato ligado essencialmente a vida privada do agente, não há que se falar em abuso de autoridade (SOUZA, 2020).

Segundo o exposto por Greco e Cunha (2020), é ensinamento predominante na doutrina que o funcionário aposentado não pode cometer o crime, pois se desvincula funcionalmente da Administração Pública.

Lima (2020), argumenta que subsistirá a infração penal, ainda que o agente não tenha assumido o cargo, mas já tenha sido, por exemplo, aprovado no concurso público ou nomeado formalmente para exercer determinada função, pois se enquadra no art. 1º da Lei que define como crime de abuso de autoridade aqueles cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Noutro giro, não são considerados agente públicos aqueles que exercem apenas um munus público, como, por exemplo, os curadores e tutores dativos, os inventariantes judiciais, os administradores judiciais, os depositários judiciários, os leiloeiros dativos, havendo prevalência neste caso, nesses casos, do interesse privado. No caso especifico do advogado dativo, nomeados para exercer a defesa do acusado em locais onde a Defensoria Pública não tenha sido instituída, o Superior Tribunal de Justiça tem precedentes no sentido de que, apesar de não serem servidores públicos propriamente ditos, pois não são Defensores Públicos, devem ser considerados funcionários públicos para fins penais, nos termos do art. 327 do Código Penal, por este motivo hão de ser considerados agente púbicos a luz do art. 2º da Lei nº 13.869/19.

O sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade é o agente público, todavia, essa condição especial funciona como elementar desses delitos, então comunica-se ao particular que eventualmente concorra, na condição de coautor ou participe, para a prática do crime, nos termos do art. 30 do Código Penal, segundo o qual não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. Sendo assim, é necessário que pelo menos um dos autores reúna a condição especial de agente público, podendo os outros não ostentar essa qualidade, porém os particulares que agirem em concurso de pessoa, precisam ter o consciência da qualidade especial de agente público do outro, caso não tenha esse conhecimento, não poderá responder pelo crime de abuso de autoridade, responderá por outros crimes diversos (LIMA, 2020).

Portocarrero e Ferreira (2020), entendem que serão sujeitos passivos os titulares dos bens jurídicos tutelados pela norma, ou seja, o Estado e a pessoa cujo direito ou garantia fundamental sofreu violação ou tentativa de violação. Sendo, o Estado (sujeito passivo formal, indireto, mediato e permanente de todos e qualquer crime) é, ainda sujeito passivo material, principal, direito e imediato, por ser o regular funcionamento da administração pública também objeto de tutela jurídica. Pelas razões acima expostas, não concordam com aqueles que reconhece o Estado apenas como sujeito passivo mediato e indireto do abuso de poder.

Em contrapartida Lima (2020), entende que os crimes de abuso de autoridade são delitos de dupla subjetividade passiva. Isso porque são condutas que atingem dois sujeitos passivos: de um lado, o Estado (Poder Público), que tem sua imagem, credibilidade e até seu patrimônio ofendidos quando um agente pratica um ato abusivo; do outro, a pessoa física ou jurídica diretamente atingida ou prejudicada pela conduta abusiva. Discorda-se de parte da doutrina, que costuma apontar o Estado como sujeito passivo principal ou imediato, e, na condição de sujeito passivo secundário (ou mediato), a pessoa física ou jurídica diretamente atingida pela conduta delituosa. Na verdade, não consegue visualizar nenhuma razão logica ou jurídica para se colocar o particular em segundo plano, ainda que se queira argumentar que estamos diante de crimes de responsabilidade em sentido amplo. Em síntese, o Estado é o sujeito passivo permanente de todos os crimes de abuso de autoridade, mas quando a conduta tiver lesado ou ofendido diretamente bem jurídico pertencente a alguma pessoa física ou jurídica, o Estado deve ser considerado como sujeito passivo secundário.

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Sobre a autora
Letticia Azeredo Viana

Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes, em Campos dos Goytacazes (RJ).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Candido Mendes - Campos, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Dr. Frank Pavan de Souza.

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