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O reconhecimento do instituto da multiparentalidade e seus efeitos jurídicos morais e patrimoniais

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11/11/2021 às 17:30
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A multiparentalidade consiste na possibilidade de uma pessoa ter reconhecida sua filiação afetiva aliada à manutenção de sua filiação biológica, ou o inverso.

RESUMO: O objetivo desse artigo é analisar o reconhecimento do instituto da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro e seus efeitos jurídicos morais e patrimoniais. Trata-se de uma pesquisa exploratória, qualitativa, bibliográfica e documental. A multiparentalidade consiste na possibilidade de uma pessoa ter reconhecida sua filiação afetiva aliada à manutenção de sua filiação biológica, ou o inverso. As relações conjugais que se formam pelo desfazimento de outras constituem as famílias recompostas, em que se verifica a figura do padrasto ou da madrasta, que assumem, cada um, da sua forma, o papel de companheiro dos pais biológicos e o de pais socioafetivos substitutos dos filhos advindos das relações anteriores, sendo possível o enteado ou a enteada adotar o nome da família do padrasto ou da madrasta, sem a exclusão do nome do pai/mãe biológico (a), segundo a Lei de Registros Públicos. Verifica-se que o reconhecimento da parentalidade socioafetiva pode ocorrer de forma judicial ou extrajudicial, conforme as disposições do Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça. O reconhecimento da multiparentalidade gera todos os efeitos jurídicos morais e patrimoniais decorrentes da filiação em relação a relação paterno-filial biológica e à socioafetiva.

Palavras-chave: Multiparentalidade. Efeitos jurídicos. Provimento 63/2017.


1. INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea é composta por diversos tipos de famílias e o ordenamento jurídico brasileiro assegura a livre (des) constituição familiar. Dentre essa pluralidade familiar, encontram-se as famílias reconstruídas, onde se verificam múltiplos vínculos parentais, biológicos e afetivos, que unem pais e mães, filhos e enteados, advindos de relações anteriores e os presentes nas famílias recompostas. Nessa seara surge o fenômeno da multiparentalidade que se configura como um novo modo de preservação dos laços construídos entre familiares afetivos, sem que seja necessária a desvinculação do vínculo biológico, representando uma alternativa de tutela jurídica nos casos em que a exclusão de um dos vínculos parentais cause prejuízos irreparáveis para as partes envolvidas, principalmente, na desconstituição familiar e na formação de famílias reconstituídas.

Desse modo, busca-se resposta para a seguinte pergunta de pesquisa: Quais os requisitos e as formas para o reconhecimento da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro e seus efeitos jurídicos morais e patrimoniais? Desse modo, o objetivo desse artigo é analisar o reconhecimento do instituto da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro e seus efeitos jurídicos morais e patrimoniais decorrentes. Trata-se de uma pesquisa exploratória, qualitativa, bibliográfica e documental, baseando-se na doutrina, na legislação e nas decisões dos Tribunais brasileiros.

O artigo destaca o conceito e a configuração do instituto da multiparentalidade, no ordenamento jurídico brasileiro; a figura do padrasto/madrasta nas famílias reconstruídas e a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade; as disposições do Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça e o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva e da multiparentalidade; e os efeitos jurídicos morais e patrimoniais decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade.

CONCEITO E RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE

A multiparentalidade consiste na possibilidade de uma pessoa ter reconhecida sua filiação afetiva aliada à manutenção de sua filiação biológica, ou o inverso, legitimando-se a coexistência das duas formas de parentalidade, com fundamento nos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da afetividade e da convivência familiar, compreendidos na condição humana tridimensional. Desse modo, os direitos e garantias constitucionais inerentes a ambas as famílias persistem em detrimento de quaisquer conflitos que possam haver, não sendo recomendado submeter a criança ou o adolescente à escolha entre as duas famílias, para se evitar prejuízos a eles nessa relação, considerando-se comportamento irresponsável e inconstitucional a tentativa de fazer prevalecer a parentalidade biológica em detrimento da socioafetiva. Destaca-se que o reconhecimento da parentalidade genética ou socioafetiva é direito da personalidade, indisponível, imprescritível, intangível e fundamental à existência humana. A certidão de nascimento é o documento que demonstra a multiparentalidade, pois inclui os nomes dos pais biológicos e dos pais socioafetivos no registro civil do filho. (CASSETTARI, 2017; DIAS, 2020; FARIAS E ROSENVALD, 2017; LEITE; MURTA, 2017; MADALENO, 2019; PÓVOAS, 2012; REIS, 2015; TEIXEIRA E RODRIGUES, 2010).

Salienta-se que o reconhecimento da multiparentalidade passou a ser possível a partir da Constituição Federal/1988 (art. 227 § 6º), ao instituir o princípio da igualdade entre os filhos, vedando quaisquer discriminações entre eles, independentemente da origem da filiação, em consonância com o Código Civil/2002 (art. 1.593), pelo qual o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Embora não haja legislação específica para regular o instituto, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Especial nº 898.060/2016, reconheceu a possibilidade jurídica de inclusão de dois pais e/ou duas mães no registro civil de nascimento do filho (DIAS, 2020; GONÇALVES, 2018; LEITE E MURTA, 2017; TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010).

Por outro lado, o reconhecimento da multiparentalidade impede que o pai biológico se esquive de seus deveres para com o filho, alegando que este mantém relação paterno-filial com terceiro, ou ao contrário, que o pai socioafetivo se utilize da existência da paternidade biológica para não configurar juridicamente (ou se desfaça) a parentalidade socioafetiva. Desse modo, nos casos em que o filho mantém relação paterno-filial com ambos os pais, não se pode condicionar o registro da paternidade socioafetiva com a desconstituição da paternidade biológica, devendo-se admitir a pluralidade em alguns casos, em oposição à lógica binária. (CALDERÓN, 2017; GONÇALVES, 2018; TARTUCE, 2018).

Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça, em Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº AgInt no AREsp: 962969 RJ 2016/0206069-3, do relator Ministro Lázaro Guimarães, Quarta Turma, julgado em 18/09/2018 e publicado no DJE em 24/09/2018, reconheceu a possibilidade de ajuizamento de ação de investigação de paternidade, mesmo na existência da paternidade socioafetiva, pois essa não tem o condão de afastar a busca pela verdade biológica do indivíduo, devendo se efetuar o registro civil do pai biológico sem exclusão do pai socioafetivo, produzindo-se todos os efeitos jurídicos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes do vínculo de filiação, concomitantes nesse caso (BRASIL, 2018; DAMIAN, 2019).

Sendo assim, a multiparentalidade é ato irretratável, irrevogável e indisponível. Todavia, o reconhecimento desse instituto dependo dos seguintes requisitos: a) legitimidade exclusiva do filho, pois somente esse pode requerer o direito de perseguir o conhecimento da verdade familiar biológica ou afetiva, embora haja entendimentos jurisprudenciais consolidados no sentido de permitir o pleito por todos os envolvidos na relação; presença de laços biológico ou afetivo, uma vez que para a realização do primeiro registro civil de nascimento do indivíduo é dispensável a comprovação de vínculo, geralmente, decorrente de presunção legal, o que não se verifica no segundo registro que requer a comprovação do laço afetivo ou biológico entre as partes, conforme o caso; c) demonstração do vínculo de afetividade entre pais e filhos, sejam biológicos ou socioafetivos, em consonância com os princípios e garantias estabelecidos pela Constituição Federal/1988, de modo a evitar abuso de direito, verificado por pessoas que buscam o reconhecimento de parentalidades concomitantes visando, exclusivamente, ganhos patrimoniais, sobretudo quando o ajuizamento da demanda se dá após a morte do genitor (CASSETTARI, 2017; LEITE; MURTA, 2017; MADALENO, 2019; SCHWERZ, 2015).

2. FORMAS DE RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade pode ocorrer de forma judicial, através de ação declaratória ou ação investigatória de paternidade ou maternidade socioafetiva; ou de forma extrajudicial, perante os oficiais do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, desde que observadas as disposições do Provimento 63/2017 (arts. 10 a 15), com as alterações do Provimento 83/2019, do Conselho Nacional de Justiça. Destaca-se que o reconhecimento extrajudicial da paternidade e da maternidade socioafetiva e da multiparentalidade de pessoa de qualquer idade por pessoa maior de dezoito anos, independentemente do estado civil é considerado ato irrevogável autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, podendo ser desconstituído somente pela via judicial, em decorrência de vício de vontade, fraude ou simulação. O pretenso pai ou mãe não pode ser irmão ou ascendente, devendo ser pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido. Se o filho tiver idade superior a 12 (doze) deve manifestar o seu consentimento. A coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de doze anos deve ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado (arts. 10 §§ 1º a 4º e 11 §§ 4º e 5º, Provimento 63/17) (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017; GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2017; RIZZARDO, 2019).

O reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva ocorre somente nos casos em que os vínculos afetivos estão consagrados e são incontroversos, envolvendo relação paterno filial resultante de muitos anos de convivência socioafetiva. A discussão judicial sobre o reconhecimento da paternidade ou de procedimento de adoção obstará o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, devendo o requerente declarar o desconhecimento da existência de processo judicial em que se discuta a filiação do reconhecendo, sob pena de incorrer em ilícito civil e penal. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral, ou seja, somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno, não implicando o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo filiação no assento de nascimento; no caso de inclusão de mais de um ascendente socioafetivo, o pedido deve tramitar pela via judicial. O reconhecimento espontâneo da paternidade ou maternidade socioafetiva não obstaculizará a discussão judicial sobre a verdade biológica (arts. 13, 14 e 15, Provimento 67/17). Sendo assim, independentemente da forma de reconhecimento, não há que se falar em distinção dos efeitos jurídicos da filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, visto que, interessa unicamente o estado de filho (CALDERÓN; TOAZZA, 2019; CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017; TARTUCE, 2019).

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3. APLICAÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE NO PADRASTIO

As famílias recompostas, reconstruídas ou mosaico, formadas por relações conjugais decorrentes do desfazimento de outras, nas quais, pelo menos, um dos partícipes, traz filhos ou mesmo situações jurídicas derivados de um relacionamento familiar anterior, incorporam novas e variadas relações familiares. Dessa forma, verifica-se a figura do padrasto ou da madrasta de filho biológico ou socioafetivo do companheiro (a); cônjuges, companheiros ou parceiros com outros parentes por afinidade e filhos outros irmãos; novas relações de convívio entre os filhos de uma parte com o novo cônjuge, gerando direitos e obrigações distintos modelados a partir de um clima ideológico desfavorável. Nessa perspectiva, o padrasto ou a madrasta é a pessoa que assume as responsabilidades paternas ou maternas em face do filho da pessoa com quem passa a conviver, substituindo e desempenhando a função de pai ou de mãe e auxiliando na formação social e psicológica e no sustento do seu enteado. O (a) enteado (a) é o (a) filho (a) biológico (a) de um dos cônjuges ou companheiros, geralmente, fruto de um relacionamento anterior ou de uma produção independente, podendo ser filho de pai biológico registral que não tem relacionamento amoroso com sua mãe biológica; ou que não tenha um pai reconhecido, ou que seja filho de pai registral falecido. (ALVES, 2016; DAMIAN; 2019; FARIAS E ROSENVALD, 2017; KIRCH E COPATTI, 2013).

Todavia, nem sempre o padrasto ou a madrasta assumem as responsabilidades de pai ou de mãe substitutos, como ocorre no caso em que não convivem diretamente com o (a) enteado (a), não desenvolvendo laços afetivos e tão pouco uma relação sólida e harmoniosa, baseada no amor e no afeto, por falta de convivência. No entanto, quando se verifica a legitimação da paternidade do padrasto ou da maternidade da madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado como se fosse seu filho, ao mesmo tempo em que o enteado (a) o considera como seu pai ou como sua mãe, torna-se importante a aplicação do instituto da multiparentalidade, para que se preserve a relação socioafetiva entre padrasto, madrasta e enteado (a) sem exclusão do nome do pai ou mãe biológicos da certidão de nascimento do pretenso filho (a), visando o melhor interesse da criança e do adolescente. (SANTOS, 2016; TARTUCE E SIMÃO, 2016).

De acordo com a Lei nº 6.015/1973 (art. 57, § 8º), é possível o enteado ou a enteada adotar o nome da família do padrasto ou da madrasta, podendo requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família. Destaca-se que, esse reconhecimento da paternidade socioafetiva não se trata de um ato unilateral, pois não há a substituição de nenhum dos pais biológicos, mas apenas o reconhecimento de pai e/ou de mãe socioafetivos, prevalecendo e reconhecendo o vínculo construído pelas partes (padrasto, madrasta, enteado, enteada), conjuntamente com a relação que criaram ao recompor uma família. Nessa perspectiva, verifica-se que, uma vez desvinculada a função parental da ascendência biológica, por ter a paternidade o real objetivo de desenvolvimento dos filhos, esse papel pode ser desempenhado por mais de um pai e/ou mãe de forma harmônica e conjunta. Contudo, entende-se que deveria ser criado um estatuto jurídico para relacionar e entrelaçar todos os níveis de relações do padrastio, analisando-se as situações casuais e de convivências, que são corriqueiras, e para declarar e definir responsabilidades parentais e socioafetivas subjacentes, jurídicas e sociais. (BREU, 2014; ALVES, 2016; BRASIL, 1973).

4. EFEITOS JURÍDICOS DECORRENTES DA MULTIPARENTALIDADE

O reconhecimento da multiparentalidade significa a legitimação da parentalidade socioafetiva, em conjunto com a biológica e registral, gerando efeitos jurídicos de ordem moral e patrimonial, segundo a doutrina e a jurisprudência. Nesse sentido, destaca-se a tese de Repercussão Geral nº 622/2016 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal e fixada no Recurso Extraordinário (RE) 898.060/2016, pela qual a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. Por sua vez, o Enunciado nº 09/2013, do Instituto Brasileiro de Direito de Família, estabelece que a multiparentalidade gera efeitos jurídicos. Ademais, por força do princípio constitucional da igualdade entre filhos e entidades familiares (art. 5º, CF), que veda a hierarquização entre as variadas formas de família e tipos de parentesco, os efeitos decorrentes da multiparentalidade devem se efetivar da mesma forma e extensão em que se operam nos casos de entidades familiares biparentais, tanto no âmbito pessoal, quanto patrimonial, como também, em razão do princípio da solidariedade, veda-se a diferenciação das consequências da procedência da multiparentalidade ante as demais formas de perfilhação (BRASIL, 1988; BRASIL, 2016; IBDFAM, 2021).

Assim sendo, o parentesco socioafetivo produz todos e os mesmos efeitos do parentesco biológico, sendo que as obrigações e responsabilidades advindas da relação de parentesco consolidada devem ser de ambos os pais e/ou mães; e os filhos têm os mesmos direitos em face de todos, sejam morais ou patrimoniais. Ademais, entende-se que o reconhecimento da paternidade socioafetiva representa uma verdadeira relação jurídica, que tem por fundamento o vínculo afetivo, capaz de possibilitar à criança e ao adolescente, com amparo no princípio constitucional da igualdade entre os filhos, a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana e daqueles que lhes são próprios, tais como: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, o que lhes garante o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (DIAS, 2020; TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010).

Nesse seguimento, destacam-se os seguintes efeitos jurídicos em face do reconhecimento da multiparentalidade: extensão do parentesco, registro civil, guarda e direito de visitas (efeitos de ordem moral); direitos (deveres) a alimentos e direito sucessório (efeitos de ordem patrimonial).

Parentesco e registro civil do nome na multiparentalidade: O efeito da multiparentalidade no estabelecimento do parentesco ocorre tanto em relação aos pais biológicos e socioafetivos, como também em relação a todos os parentes destes, em linha reta e colateral até o quarto grau, possibilitando a adoção do nome das famílias e todos os efeitos decorrentes. Desse modo, os efeitos impeditivos existentes na filiação biológica também serão aplicados na multiparentalidade, como no caso de casamento entre pais e filhos socioafetivos e entre parentes até o terceiro grau, sem distinção entre parentesco biológico e socioafetivo. Sendo, assim, é possível ter dois pais e/ou duas mães no registro civil, sem exclusão do nome dos pais biológicos, pois não se pode negar que não reconhecer a relação paterno filial por inexistência do liame biológico, fere a dignidade da mãe ou do pai socioafetivo, violando o princípio da afetividade (PÓVOAS, 2012).

Dessa forma, o reconhecimento jurídico da multiparentalidade se exterioriza a partir da alteração do registro civil de nascimento, sendo que essa consequência confere segurança jurídica às relações familiares. Desta forma, podem ser adotadas as seguintes formas de registro de nascimento, independentemente da mudança no direito registral: a) o filho poderá acrescer ao seu o nome dos pais genéticos e afetivos; b) caberá ao filho o direito de adotar a ordem do nome dos pais genéticos ou afetivos; c) fazer constar do registro de nascimento o nome dos pais e avós genéticos e afetivos; d) fazer constar da certidão de nascimento apenas o nome dos pais com que o filho é conhecido no meio social, fazendo-se o registro da paternidade genética ou afetiva não na certidão de nascimento, e sim no Cartório de Registro Civil (DIAS, 2020; FARIAS E ROSENVALD, 2017).

Guarda e visita na multiparentalidade: Considera-se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o princípio da afetividade para se estabelecer a guarda e o direito de visita na multiparentalidade, devendo a criança ou o adolescente deve permanecer com aquele (a) pai/mãe, biológico ou socioafetivo, com quem possui relacionamento mais harmonioso, podendo ser estabelecida a guarda unilateral ou compartilhada (POVOAS, 2012).

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em Agravo de Instrumento nº AI: 70068699842/RS, de Rosário do Sul, do relator Luiz Felipe Brasil Santos, Oitava Câmara Civil, julgado em 07/07/2016 e publicado no DJE em 13/07/2016, manifestou entendimento esclarecendo que a guarda da infante deveria ser provida pelos pais socioafetivos, ainda que provisória, em função do princípio do melhor interesse, estabelecido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo em vista que ela se encontrava em ambiente familiar e social mais bem adaptado com os seus pais socioafetivos, o que lhe proporcionava maior segurança e tranquilidade. (DAMIAN, 2019; RIO GRANDE DO SUL, 2016).

Por sua vez, o direito de visitas é protegido constitucional e infraconstitucionalmente, sendo deferido na multiparentalidade do mesmo modo que nos casos de biparentalidade, quando a guarda compartilhada não é a opção adotada. Esse direito assegura que o pai ou a mãe, biológico ou socioafetivo, em cuja guarda não estejam os filhos, possa visitá-los e tê-los em sua companhia, garantindo o direito à convivência familiar entre pais e filhos, podendo se estender aos avós, irmãos, padrasto e demais parentes, biológicos ou socioafetivos, o que possibilita desfrutar do afeto positivo existente entre eles, fundamental e necessário para que possam viver e desenvolver-se em todos os aspectos, principalmente no que diz respeito à capacidade de lidar com os próprios sentimentos e emoções. Desse modo, o estabelecimento da guarda e do direito de visita na multiparentalidade deve considerar o princípio do melhor interesse da criança conjuntamente com o princípio da afetividade, os quais devem ser analisados minuciosamente para que esses direitos sejam assegurados a todos os envolvidos na relação familiar, possibilitando que pais e filhos estabeleçam elos de convivência com todos os envolvidos (BOSCH, 2005; DINIZ, 2012; LÔBO, 2017; POVOAS, 2012).

Direito/dever a alimentos na multiparentalidade: A prestação alimentar tem característica de ordem pública, em razão de sua importância e de seu objetivo de perpetuar a vida e a saúde, sendo devida, independentemente, se os genitores os são por afetividade ou consanguinidade e não sendo relevante o caráter bi ou multiparental. Entende-se que a obrigação alimentar decorrente da multiparentalidade não se difere daquela estabelecida a partir da relação da biparentalidade ou de outras das espécies de paternidade ou maternidade afetiva reconhecida judicialmente, pois é consequência do parentesco. Desse modo, tanto com relação ao pai biológico, quanto ao pai afetivo, o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros, conforme preceitua o Código Civil (art. 1.696). Nessa linha, o Enunciado nº 341, do Conselho de Justiça Federal estabeleceu que para fins do artigo 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar. Sendo assim, mesmo não havendo previsão legal, a prestação alimentar é necessária para uma vida digna; uma vez criado o vínculo de parentalidade, cabe aos pais, sejam biológicos ou afetivos, o dever de prestar alimentos aos filhos, e a esses, a seus pais. Entende-se que na multiparentalidade, o filho pode requerer alimentos de qualquer um dos pais, atendendo o princípio do melhor interesse, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente, o que tem o liame de contribuir para o seu desenvolvimento e não o seu prejuízo; assim como os pais, em relação ao filho biológico ou socioafetivo, estendendo-se a obrigação alimentar aos parentes socioafetivos, da mesma forma. (BRASIL, 2002; CONSELHO DE JUSTIÇA FEDERAL, 2012; MENDES E QUEIROZ, 2015; PÓVOAS, 2012).

Nessa perspectiva, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em Apelação Civil nº 03026749320158240037/SC, de Joaçaba, 0302674-93.2015.8.24.0037, do relator Saul Steil. Terceira Câmara de Direito Civil, julgado em 17/04/2018, manifestou entendimento reconhecendo a multiparentalidade, esclarecendo que se produzem os efeitos jurídicos quanto ao nome, à herança, à guarda, à visitação e aos alimentos, em face de todos os pais (biológicos e socioafetivos) concomitantemente, permitindo-se que a criança exerça seus direitos em relação a todos. Esclareceu que a fixação de alimentos para o pai socioafetivo é medida possível, pois não se exclui sua responsabilidade mesmo que a criança seja registrada também com o nome do pai biológico; destacando que o reconhecimento da multiparentalidade caracteriza-se pela inclusão do pai e/ou mãe biológicos e socioafetivos no registro civil de nascimento do filho, com todas as consequências decorrentes destas parentalidades, incluindo-se o direito aos alimentos. (DAMIAN, 2019; SANTA CATARINA, 2018).

Direitos sucessórios na multiparentalidade: A multiparentalidade trata das situações em que o indivíduo possui mais de uma mãe ou mais de um pai, formando três linhas parentais. Desse modo, reconhecido os múltiplos vínculos familiares, passam a ser parentes em linha reta, descendente e ascendente, assegurados pela lei como herdeiros legítimos e necessários, capazes de participar da ordem hereditária na sucessão, uma vez que o direito sucessório é uma das decorrências da filiação (seja qual for) e, como tal, é inerente à filiação socioafetiva. Com isso, deverão ser aplicadas todas as regras sucessórias existentes na legislação, equiparando os pais socioafetivos aos biológicos. Nesse sentido, o reconhecimento da multiparentalidade implica em uma nova relação de parentesco estabelecida entre o pai e/ou a mãe e o filho, que produz efeitos sucessórios. Desse modo, no momento da transmissão da herança cria-se uma linha de sucessão para cada pai ou mãe que o filho tiver, figurando como herdeiro necessário de todos os pais e ou mães. Quanto à sucessão dos ascendentes, na ausência de descendentes, todos aqueles que figurarem como pais do mesmo filho são considerados herdeiros no mesmo nível de igualdade, concorrendo com eventual cônjuge ou companheiro sobrevivente. Desse modo, o filho tem direito à herança de quantos pais e ou mães tiver, sem nenhum tipo de empecilho ou impedimento que o diferencie de outros filhos em razão da origem de sua relação. O reconhecimento dos direitos de sucessão ocorre em consonância com a ordem de vocação hereditária (arts. 1829 a 1847, CC). No caso de haver divergências dos pais/mães em relação aos direitos de sucessão devem ser aplicadas as mesmas disposições estabelecidas para as relações hétero e homossexuais convencionais, ou seja, os conflitos devem ser resolvidos por via judicial, sem distinção ou hierarquização entre os genitores biológicos e socioafetivos. Destaca-se que o filho socioafetivo tem o direito de pleitear o reconhecimento judicial de tal filiação a qualquer tempo, seja vivo ou já falecido o pai ou a mãe; entretanto, algumas decisões não são favoráveis, sob o argumento de que a ação objetiva somente o interesse patrimonial, ou seja, visa somente a quota do direito hereditário. Sendo assim, considerando-se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, na multiparentalidade, todos os pais são herdeiros do filho, e o filho é herdeiro de todos os pais; da mesma forma se estabelece entre o filho e os ascendentes e com os parentes colaterais até o quarto grau. Destaca-se que, embora figurem dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai, as sucessões destes não se comunicam entre si, salvo àqueles que já são cônjuges ou companheiros, conforme ocorre na sucessão comumente (CASSETTARI, 2017; GOULART, 2013; MENDES E QUEIROZ, 2015; PÓVOAS, 2012; PRETTO, 2013).

Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº REsp:1618230 RS 2016/0204124-4, RS 2016/0204124-4, do relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 28/03/2017 e publicado no DJE em 10/05/2017, reconheceu a multiparentalidade, esclarecendo que a existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética; o reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem restrição, contra os pais ou seus herdeiros. Ainda, ressaltou que diversas responsabilidades de ordem moral ou patrimonial são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. Nessa perspectiva, a Corte reconheceu o direito do filho a receber a herança do pai biológico, através de uma ação de reconhecimento de paternidade biológica, sendo que já havia recebido o patrimônio de seu pai socioafetivo, destacando que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as parentalidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. (BRASIL, 2017; DAMIAN, 2019).

Destaca-se que, no caso de multiparentalidade superveniente, situação em que novas relações familiares são admitidas às já existentes, há divergências quanto à possibilidade desses novos herdeiros receberem a herança, se ocorrer o reconhecimento post mortem dos laços afetivos. Entretanto, o fato de um filho poder herdar de vários ascendentes não significa uma inconstitucionalidade; assim, independentemente da origem do vínculo familiar, na multiparentalidade, o filho é herdeiro necessário e legítimo de ambos os pais (biológicos e socioafetivos), o que não caracteriza ofensa à norma jurídica, mas garantia do princípio da igualdade entre os filhos. Dessa forma, podem haver o ajuizamento de ações de investigação de paternidade, com vistas aos efeitos sucessórios, cabendo ao magistrado verificar a existência ou não do abuso de direito e as atitudes antagônicas à boa-fé objetiva. Dessa forma, a garantia do reconhecimento da paternidade biológica ou socioafetiva, com a ocorrência dos efeitos patrimoniais, não se constitui como direito absoluto, pois se sujeita às ponderações, quanto a outros direitos tutelados pela Constituição Federal, cabendo ao julgador avaliar o caso concreto, não se podendo presumir tratar-se de interesse meramente patrimonial, pois o direito à herança é garantido aos pais e filhos biológicos e socioafetivos. Assim, se reconhecida judicialmente a filiação socioafetiva em coexistência com a biológica, gerando a multiparentalidade, o direito sucessório deverá ser aplicado conforme a lei prevê, beneficiando a relação socioafetiva da mesma forma que a biológica (MORAIS, 2016; PEREIRA, 2017; SCHREIBER, 2016).

Direitos dos pais multiparentais na sucessão dos seus filhos: No caso de falecimento de um filho multilateral, sem descendentes, devem os pais socioafetivos e biológicos ter o direito à herança, conforme o que determina o Código Civil em relação a esses últimos. Do mesmo modo, determina-se a relação entre o filho e os ascendentes, bem como aos parentes colaterais até o quarto grau. Destaca-se que apesar de figurarem dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai as sucessões destes não se comunicam entre si, salvo àqueles que já são cônjuges ou companheiros, conforme ocorre na sucessão comumente. Sendo assim, na linha reta ascendente, haverá mais de 2 linhas entre as quais a herança deverá ser partilhada; na hipótese do falecido ter dois pais e uma mãe e não ter descendentes, nem cônjuge, a herança deve ser partilhada em três partes iguais, cada qual destinada a uma linha. No caso de falecimento do filho multiparental que não deixa descendente, mas deixa pai, mãe e cônjuge sobreviventes, o Código Civil (art. 1.837, CC) prevê 1/3 da herança para cada parte: cônjuge, pai e mãe. Já, no caso do falecimento do autor da herança que deixa dois pais e uma mãe, ou duas mães e um pai e o cônjuge, cabe a cada um a quarta-parte do montante a ser partilhado; se já falecido um dos pais, fica o cônjuge com a terça parte, e se falecidos os dois, a metade, ou seja, a solução estabelecida na legislação civil se consubstancia na repartição da herança em partes idênticas (art. 1.837, CC) (KIRCH; COPATTI, 2013; MENDES E QUEIROZ, 2015; PRETTO, 2013).

E, no caso de falecimento do filho que deixa somente avós de três linhas de parentesco vivos, pode-se partilhar a herança por linhas, e não por cabeça, segundo o qual a igualdade de grau e de linhas assegura metade da herança aos ascendentes da linha paterna e metade aos ascendentes da linha materna, não importando se uma delas se compõe de um ou dois ascendentes (art. 1.836 §§ 1º e 2º, CC). Nesse sentido, é que o instituto da multiparentalidade no Direito sucessório apresenta diferença no caso do falecimento do filho multiparental que não deixa descendente, pois todos os pais são herdeiros do filho, e o filho é herdeiro de todos os pais (MORAIS, 2016; PEREIRA, 2017; NADER; 2016; SCHREIBER, 2016).

Assim sendo, estabelecendo-se a coexistência das duas formas de parentalidade, cumulam-se os direitos jurídicos morais e patrimoniais daquele indivíduo em relação aos pais biológicos e afetivos, e desses em relação àquele, pois o reconhecimento da multiparentalidade não exclui, nem sobrepõe um tipo de parentesco em relação ao outro.

5. CONCLUSÃO

A multiparentalidade consiste na possibilidade de uma pessoa ter reconhecida sua filiação afetiva aliada à manutenção de sua filiação biológica, ou o inverso, representando uma alternativa nos casos em que a exclusão de um dos vínculos parentais cause prejuízos irreparáveis para as partes envolvidas.

Desse modo, o reconhecimento da parentalidade socioafetiva depende de três requisitos: legitimidade exclusiva do filho, presença de laços biológico ou afetivo, e demonstração do vínculo de afetividade entre pais e filhos; podendo ocorrer de forma judicial, por meio de ação declaratória de paternidade/maternidade sociafetiva ou ação investigatória; ou extrajudicial, perante os oficiais do cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, conforme as disposições do Provimento 63/2017 (arts. 10 a 15), com as alterações do Provimento 83/2019, do Conselho Nacional de Justiça.

Destaca-se que, segundo a Lei nº 6.015/1973 (art. 57, § 8º), é possível o enteado ou a enteada adotar o nome da família do padrasto ou da madrasta, podendo requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.

Ademais, o reconhecimento da multiparentalidade gera todos os efeitos jurídicos morais e patrimoniais decorrentes de ambas as relações paterno-filiais, tais como: extensão do parentesco, registro civil, guarda e direito de visitas (efeitos de ordem moral); direitos (deveres) a alimentos e direito sucessório (efeitos de ordem patrimonial), conforme a tese de Repercussão Geral nº 622/2016 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal e fixada no Recurso Extraordinário (RE) 898.060/2016; o Enunciado nº 09/2013, do Instituto Brasileiro de Direito de Família; e o princípio constitucional da igualdade entre filhos e as entidades familiares.

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Sobre a autora
Terezinha Damian

Advogada, especialista em responsabilidade civil e direito do consumidor e em comércio exterior, mestre em administração, professora de direito e gestão empresarial e contratos internacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAMIAN, Terezinha. O reconhecimento do instituto da multiparentalidade e seus efeitos jurídicos morais e patrimoniais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6707, 11 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94494. Acesso em: 28 mar. 2024.

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