2. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL
A partir de um enfoque doutrinário,15 tem-se que o princípio da irretroatividade da lei penal decorre do princípio da legalidade, cuja prescrição encontra-se, como notoriamente sabido, no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988, pelo qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".
A importância do princípio em questão é tamanha que vigora no Brasil desde a Constituição do Império de 1984, encontrando previsão em alguns dos principais tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos (art. XL, 2), a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 9º) e o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (art. 15, §1º).
Pelo princípio em comento, em linhas gerais, determina-se a irretroatividade da lei penal mais severa, ou seja, a lei penal mais grave não pode retroagir no tempo para abarcar fatos praticados antes de sua entrada em vigor ou, noutra interpretação, uma ação impune no tempo em que foi cometida não pode ser considerada mais tarde como punível, da mesma forma que se exclui o posterior agravamento da pena. Por isso, "a lei penal mais grave não se aplica aos fatos ocorridos antes de sua vigência, seja quando cria uma nova figura penal, seja quando se limita a agravar as penas de uma figura já existente".16
Se a lei penal mais grave não deve retroagir, interpretação distinta é aplicada quando se trata de lei penais mais benéfica, ou seja, aquela norma que beneficia o réu. Disso se constata que a lei penal mais favorável é retroativa, aplica-se aos fatos praticados anteriormente a sua vigência.
Além desse fator, a lei mais benigna é ultra-ativa, ou seja, praticado o fato delituoso na vigência de lei anterior mais benigna, ela prevalecerá, no julgamento, em detrimento da lei posterior mais severa, mesmo após a sua revogação.
O princípio da irretroatividade da lei penal tem aplicação, por exemplo, quando a lei posterior não incrimina novas condutas, mas agrava situação penal de condutas já existentes, tais quais aquelas relacionadas ao aumento de pena, criação de circunstâncias agravantes ou qualificadoras, eliminação de causas de extinção de punibilidade ou exigência de mais requisitos para a concessão de benefícios, o que é conhecido como novatio legis in pejus, cuja incidência pode ocorrer tanto na Parte Geral quanto na Parte Especial do Código Penal e na legislação penal extravagante.
Diferentemente, incide o princípio da retroatividade da lei penal quando há a denominada novatio legis in mellius, isto é, a nova lei que tem características mais benéficas ao réu. Por essa razão que o mencionado art. 5º, inciso XL, prescreve que a lei somente retroagirá para beneficiar o réu. São os casos em que lei penal nova, ainda que continue incriminando o fato, comina pena menos rigorosa, ou favoreça o agente de outra forma, acrescentando circunstância atenuante não prevista, eliminando agravante anteriormente prevista ou que estabelece novos casos de extinção de punibilidade.
Deve-se dizer, também, que o princípio da irretroatividade da lei penal mais severa e o da retroatividade da lei penal mais benéfica são aplicados somente a leis que possuam conteúdo material, ou seja, de norma de Direito Penal, não se aplicando àquelas de caráter processual penal estrito.17
Neste ponto, o conteúdo da lei deve ser precisamente definido, pois no caso de lei penal mista (com conteúdo material e processual) os princípios em análise devem ser aplicados. E se a norma tiver conteúdo puramente processual? Aplica-se o art. 2º do Código de Processo Penal: A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. Veja-se:
A cláusula constitucional inscrita no art. 5º, XL, da Carta Política (que consagra o princípio da irretroatividade da lex gravior) incide, no âmbito de sua aplicabilidade, unicamente, sobre as normas de direito penal material, que, no plano da tipificação, ou no da definição das penas aplicáveis, ou no da disciplinação do seu modo de execução, ou, ainda, no do reconhecimento das causas extintivas da punibilidade, agravem a situação jurídico-penal do indiciado, do réu ou do condenado.
(STF AI 177.313 AgR-ED, rel. min. Celso de Mello, j. 18-6-1996, 1ª T, DJ de 13-9-1996).
Com estes esclarecimentos, precisa-se trazer ao contexto em que específica hipótese uma lei penal torna-se mais gravosa, de modo que não deve retroagir. Eis aqui uma das questões centrais: a nova redação dada ao art. 75. do Código Penal.
Sabe-se que a Lei nº 13.964/2019, conhecida por instituir o chamado Pacote Anticrime, que aperfeiçoou a legislação penal e processual penal, entre as diversas mudanças implementadas na legislação penal, há aquela do citado art. 75. do Código Penal. O que este dispositivo previa antes da Lei nº 13.964/2019?
O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos.
A redação desse dispositivo fora dada originalmente pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, que implementou uma nova Parte Geral do Código Penal. Assim, por vinte e cinco anos o limite máximo de cumprimento de penas no Brasil foi de 30 (trinta) anos.
Então, em 24 de dezembro de 2019, entrou em vigor a aludida Lei nº 13.964/2019, que deu a seguinte redação ao art. 75. do Código Penal, cuja proposta de redação fora dada pelo Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal:
Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos.
§1º Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 40 (quarenta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.
Trata-se, portanto, de nova lei penal material claramente mais gravosa (novatio legis in pejus), que não pode e não deve retroagir para incidir sobre fatos e condenações ocorridos antes do advento da Lei nº 13.964/2019. Somente a partir de 24 de dezembro de 2019 é que este limite de 40 (quarenta) anos passa a ser considerado, incidindo sobre todos os fatos criminosos praticados daquela data em diante, jamais antes disso.
O problema surge quando uma pessoa estrangeira pratica um crime em seu país de origem, antes de 24 de dezembro de 2019, e logo após foge para o Brasil, para assim furtar-se da investigação e persecução penal em seu país. Em seguida, o Estado estrangeiro toma conhecimento de que o agente encontra-se foragido no território brasileiro, pelo que o país de origem requer a extradição ao Brasil. Aplica-se o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa em processo de extradição? É o que será analisado em seguida.
3. JULGAMENTO DA EXTRADIÇÃO Nº 1.652/DF
O caso parte de fato ocorrido no dia 28 de novembro de 2016, quando, por volta das 20h45min, em via pública, no cruzamento das Ruas de San Martin com Companhia de Jesus, na comuna de Santiago, Chile, o acusado de nacionalidade chilena Francisco Javier Zavala Díaz, se aproximou da vítima Sergio Galaz Martínes e de forma surpreendente e à força introduziu uma das mãos em seu bolso, arrebatando-lhe o celular da marca Samsung, que entregou a um terceiro para que se evadisse com o objeto.
Já no dia 11 de fevereiro de 2017, aproximadamente às 19h00, no cruzamento das Ruas Nataniel Cox com Franklin, na comuna de Santiago, Chile, os acusados Hernán Gajardo Gajardo e Francisco Javier Zavala Díaz se aproximaram da vítima Denis Maccet, ocasião em que, sob ameaças, subtraíram-lhe a carteira, na qual guardava $140.000 em dinheiro, tudo enquanto o acusado Zavala Días ameaçava e intimidava também a vítima com o gargalo de uma garrafa, fugindo os acusados com os valores subtraídos.18
De logo, duas questões devem ser percebidas: as datas dos fatos praticados e a natureza jurídico-penal dos fatos. Primeiro: foram praticados antes de 24 de dezembro de 2019; segundo: são fatos que, em tese, amoldam-se ao tipo previsto no art. 157. do Código Penal (Roubo).
Diante dos crimes praticados por Francisco Javier Zavala Díaz, a justiça chilena o processou e, por conta disso, expediu diversas ordens de detenção em seu desfavor, a partir de 24 de outubro de 2019. No entanto, Francisco Javier Zavala Díaz findou por se evadir do Chile para o Brasil.
Tomando conhecimento de que o acusado em questão estava foragido no território do Brasil, o governo do Chile outra opção não teve senão requerer a extradição com pedido de prisão cautelar de Francisco Javier Zavala Díaz ao Brasil, nos termos do Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul e a República da Bolívia e a República do Chile, tendo sido o pedido encaminhado por via diplomática ao Ministério da Justiça, do Poder Executivo brasileiro.
Vê-se, portanto, que se trata de extradição passiva, pois o Brasil figura como requerido, bem como é caso de extradição instrutória, já que o intento do governo chileno é processar o seu nacional pelos crimes lá praticados, caso de extradição para fins de instrução processual penal.
Dito isso, após o trâmite no Poder Executivo, abriu-se no Supremo Tribunal Federal a Extradição 1.652 Distrito Federal e, em 03 de fevereiro de 2021, a Corte Suprema, órgão judicial competente para análise e aprovação do pedido, por meio da Min. Relª. Rosa Weber, estando preenchidos os requisitos do art. 84. da Lei nº 13.445/2017 e do art. 29. do Acordo de Extradição, deferiu e decretou a prisão preventiva para fins de extradição do nacional chileno Francisco Javier Zavala Díaz.19
O mandado de prisão preventiva foi dado por cumprido em 10 de fevereiro de 2021, tendo o extraditando sido recolhido no Centro de Detenção Provisória (CD) ASP William Nogueira Benjamin.
Por conta disso, o Supremo Tribunal Federal determinou à autoridade policial que procedesse, após o cumprimento do mandado prisional, a comunicação formal da prisão ao Consulado do Chile com jurisdição sobre o distrito consular em que custodiado o extraditando, para o fim de assegurar a respectiva assistência, nos termos do art. 36. da Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Na ocasião, a Corte Suprema brasileira aferiu que:
[...] Na hipótese, o pedido de prisão formulado pelo Governo do Chile está instruído com a informação do mandado de prisão expedido por autoridade judicial estrangeira, bem como as indicações sobre local, data, natureza, circunstâncias do fato criminoso, identidade e paradeiro do Extraditando, em observância ao Acordo de Extradição (art. 29) e à Lei de Migração (art. 84, § 1º). O presente feito colima submeter posteriormente o Extraditando à justiça chilena pela suposta prática de crimes de roubo arts. 432. e 436 do Código Penal chileno - com pena máxima prevista de 20 (vinte) anos. Em análise sumária do caso, observo que os fatos configurariam no Brasil, em tese, o crime de roubo (arts. 157. do CP). Além disso, o crime não estaria prescrito pelas leis espanhola (sic) e brasileira. O crime encontra-se abrangido pelo Tratado de Extradição pertinente (Decreto nº 5.867/2006) e não se detectam óbices à prisão preventiva para a extradição no referido diploma ou ainda na Lei de Migração. Por outro lado, a prisão, em processos de extradição, é necessária para assegurar a executoriedade da medida de extradição (art. 84, caput, da Lei 13.445/2017) e prevenir a fuga, máxime no caso de acusado foragido no país de origem.20
Percebe-se que o referido Decreto nº 5.867/2006, que promulgou o Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul e a República da Bolívia e a República do Chile, atesta em seu art. 1, que:
Os Estados Partes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas no presente Acordo, as pessoas que se encontrem em seus respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Parte, para serem processadas pela prática presumida de algum delito, que respondam a processo já em curso ou para a execução de uma pena privativa de liberdade.
Além das especificidades relativas aos requisitos exigidos pelo Decreto nº 5.867/2006 e pela Lei nº 13.445/2017, o Supremo Tribunal Federal atentou-se para o princípio da dupla incriminação do fato ou da dupla identidade da infração penal, haja vista ter ficado assentado que os crimes praticados por Francisco Javier Zavala Díaz são tipificados como roubo tanto no Chile quanto no Brasil.
Uma questão, entretanto, haveria de ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal: o limite de aplicação das penas ao extraditando Francisco Javier Zavala Díaz quando este fosse processado, julgado e condenado no Chile.
Pois o extraditando havia praticado dois crimes de roubo, crime cuja pena máxima, pelo Código Penal do Chile, é de 20 (vinte) anos, ou seja, o dobro daquela prevista para o mesmo tipo penal no Código Penal brasileiro, que é 10 (dez) anos, na sua forma simples e sem as majorantes.
Cotejou-se que havia um risco óbvio de a pena a ser a aplicada ao extraditando no Chile superasse os 30 (trinta) anos, e sobre essa questão o Supremo Tribunal Federal não poderia fechar os olhos. Veja-se que a Corte não pode adentrar, por exemplo, no exame das especificidades das provas colhidas quanto aos fatos praticados pelo extraditando, pois vige na extradição, como visto, o sistema de contenciosidade limitada e não exauriente.
Porém, a questão de fundo aqui é estritamente legal, e quanto a isso o Supremo Tribunal Federal tem competência para impor limites ao processo extradicional em face do Estado requerente. E foi justamente o que ocorreu na Extradição 1.652 Distrito Federal.
Para melhor intelecção, a Lei de Migração tem previsão expressa no sentido de que:
Art. 96. Não será efetivada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente assuma o compromisso de:
[...]
III - comutar a pena corporal, perpétua ou de morte em pena privativa de liberdade, respeitado o limite máximo de cumprimento de 30 (trinta) anos.
Logo, o Supremo Tribunal Federal somente concede a extradição a Estado estrangeiro se este se comprometer a respeitar o limite máximo de cumprimento de 30 (trinta) anos. Mas e a nova redação do art. 75. do Código Penal dada pela Lei nº 13.964/2019, que aumentou o limite de cumprimento de penas para 40 (quarenta) anos?
É preciso afirmar que o citado art. 96, inciso III, da Lei de Migração deve ser lido à luz da nova redação do art. 75. do Código Penal dada pela Lei nº 13.964/2019, mas somente para os fatos, que derem ensejo ao pedido extradicional, praticados após o dia 24 de dezembro de 2019.
Quando o Ministério Público Federal opinou na Extradição 1.652 Distrito Federal, o Parquet federal considerou que a motivação para o pedido de extradição é considerada crime no Brasil e no Chile, bem como que não houve prescrição do delito segundo as leis brasileiras e chilenas, sendo a aplicação da pena válida em ambos os países e, por fim, entendeu que a extradição está em conformidade com a lei e opinou pelo deferimento, com pena máxima de 30 (trinta) anos.21
A razão para este entendimento é que os fatos praticados pelo extraditando ocorreram em novembro de 2016 e fevereiro de 2017, antes, portanto, da Lei nº 13.964/2019 que, por ser norma mais gravosa ao dar nova redação ao art. 75. do Código Penal, não poderia como não pode retroagir para prejudicar o réu.
Deste modo, ao ser submetida a Extradição 1.652 Distrito Federal para julgamento perante a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, tais parâmetros foram levados em consideração, especialmente quanto à irretroatividade de lei penal mais gravosa.
Por maioria dos votos, em 19 de outubro de 2021, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal definiu que, para fins de extradição, o estado estrangeiro se comprometa a estabelecer pena máxima de 30 anos para o cumprimento de pena de extraditandos que praticaram crimes até 24/12/2019, quando o Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) foi sancionado.22
Na apreciação do caso, verificou-se a existência dos requisitos necessários ao deferimento da extradição, quais sejam, a dupla tipicidade e a dupla punibilidade (a conduta ser considerada crime nos dois países) e, com fundamento no princípio constitucional da irretroatividade da lei mais gravosa, a Ministra Relatora Rosa Weber observou que o tempo máximo de cumprimento da pena deve ser definido em 30 (trinta) anos, uma vez que os fatos pelos quais o extraditando está sendo investigado no Chile ocorreram antes da alteração do Pacote Anticrime, ocorrida em dezembro de 2019.
Além disso, ao votar pelo deferimento da extradição, a Ministra Rosa Weber condicionou a entrega do extraditando à extinção de ação penal em curso na justiça brasileira, ressalvada eventual manifestação expressa do Presidente da República em sentido contrário e observados os compromissos previstos no artigo 96 da Lei de Migração (Lei 13.445/2017), assumidos pelo governo do Chile.