Durante mais de duas décadas, o regime implantado pela Revolução de 1964 fez com que os direitos e garantias fundamentais fossem integralmente desrespeitados, sob a alegação da necessidade de manter a estabilidade social e política no país. O clamor de vários segmentos da sociedade foi o terreno fértil para que nascesse a Constituição Federal de 1988, um instrumento com a missão de restabelecer a democracia no país. Nesta tarefa de reconstrução do Brasil, a preocupação do constituinte foi dar destaque à dignidade da pessoa humana, tão aviltada no período que se findava. Este fato é perfeitamente constatável no inciso III do art. 1º da Carta Magna, que instituiu a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais. No art. 5º, incisos I a LXXVIII da Constituição estão enumerados os direitos e deveres individuais e coletivos, dotando a pessoa humana de instrumentos capazes de protegê-la contra o arbítrio do Estado.
É perfeitamente previsível que o exercício concomitante destes direitos e deveres poderia gerar um conflito entre eles. Nestas hipóteses a missão do intérprete é averiguar a possibilidade de conciliar os interesses em conflitos, identificando qual deles deverá prevalecer na hipótese concreta. O importante é que se observe a impossibilidade de estabelecer uma regra prévia, anterior ao conflito, tal qual uma fórmula mágica, aplicável a qualquer caso. Cada situação que se apresenta diante do intérprete trás consigo características e contexto próprios, o que as torna diversas umas das outras, exigindo soluções diferentes, embora elas (as situações) sejam semelhantes. Nesta oportunidade vamos nos fixar na análise de dois destes direitos: o direito de informação e o direito da personalidade e a possibilidade de conflito entre eles.
O direito de informação é uma expressão do direito à liberdade, direito este que abrange a liberdade de locomoção, a liberdade de expressão, liberdade de escolha de uma profissão ou de uma religião, dentre outras.
Para Jose Afonso da Silva a palavra informação designa o conjunto de condições e modalidades de difusão para o público (ou colocada à disposição do público) sob formas apropriadas, de notícias ou elementos de conhecimento, idéias ou opiniões.
Jorge Miranda prefere a terminologia "liberdade de informação" afirmando que consiste em apreender ou dar a apreender factos e notícias e nela prevalece o elemento cognitivo.
A utilização do termo direito de informação, em lugar de liberdade justifica-se pela necessidade de sistematizar um complexo de direitos, liberdades, garantias e limites inerentes à informação, sendo por isso mais adequado referir-se a direito de informação.
Deve-se registrar que a expressão liberdade de imprensa foi superada pela terminologia liberdade de informação, em razão do surgimento de novos veículos de comunicação, que ampliaram os meios de difundir a notícia, que anteriormente tinham no rádio e nas agências noticiosas os instrumentos mais eficazes na tarefa de informar.
Não se pode perder de vista que ao direito de informar corresponde a um outro direito coletivo: o direito de ser informado sobre os fatos do dia a dia.
O papel dos veículos de informação vai mais além do que simplesmente manter os membros da sociedade atualizados. Na verdade exercem uma função de controle dos atos dos agentes do Estado. Por isso podemos dizer que a imprensa, em seu conceito amplo, representa os olhos e ouvidos do cidadão comum, contribuindo para o fortalecimento da democracia.
Ressaltada a grande importância que a difusão da informação ostenta no mundo moderno, podemos fazer alguns questionamentos: Este direito de informação é ilimitado? Podem os veículos de comunicação divulgar tudo que pretenderem escudados em direitos constitucionalmente previstos (art.5º, IX e XIV)? Em caso negativo, quais os limites do direito de informação?
Antes de respondermos a estes questionamentos torna-se necessário abordar o outro ângulo do tema.
A informação pode abranger não só fenômenos físicos (terremoto no Japão, chuvas intensas em São Paulo etc.) e fenômenos políticos (absolvição pela CCJ dos Parlamentares acusados de pertenceram à máfia das ambulâncias). Entretanto as notícias mais comuns são aquelas envolvendo a pessoa humana como foco principal. Vamos nos fixar neste último ponto para analisar outro importante direito constitucionalmente garantido - o direito da personalidade.
Direitos da personalidade compreendem os direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade. O jurista italiano Adriano De Cupis entende o direito da personalidade como aquele direito subjetivo cuja função, relativamente à personalidade, é essencial, constituindo o minimum necessário e imprescindível ao seu conteúdo.
Os direitos da personalidade têm natureza polêmica. A Escola do Direito Natural os vê como direitos inatos ou originários, focalizando os seus titulares em seu estado natural, tendo existência muito anterior ao direito legislado.
Em sentido contrário, De Cupis, afirma que os direitos da personalidade se firmam como produto do direito positivo, do qual retira uma particular força de pressão sobre o próprio ordenamento.
No Brasil as teorias positivadoras, como a do jurista italiano, logo foram encampadas por grande parte dos doutrinadores que trataram do tema. Hoje o tema deve ser tratado sob o ponto de vista civil-consitucional, tendo em vista que a fonte normativa da matéria está disciplinada na Constituição Federal.
Pontes de Miranda classificava os direitos da personalidade em: a) direito à vida: b) direito à integridade física; c) direito à integridade psíquica; d) direito à liberdade; e) direito à verdade; f) direito à igualdade formal; g) direito à igualdade material; h) direito de ter nome e direito ao nome, aquele inato e este nato; i) direito à honra; j) direito autoral de personalidade.
A questão dos direitos da personalidade ganhou maior relevo dentro do ordenamento jurídico pátrio, no momento em que o constituinte de 1988 considerou a cidadania e a dignidade da pessoa humana como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, no qual se constituiu a República Federativa do Brasil (art.1º, II e III, CF).
Dentre os direitos da personalidade figura o direito à intimidade, que é definido por Ada Pellegrini Grinover como a esfera de que o indivíduo necessita vitalmente para poder livre e harmoniosamente desenvolver sua personalidade, ao abrigo de interferências arbitrárias. Quando se fala em direito à privacidade no lugar de direito à intimidade, não se está tratando da mesma figura, mas de direitos semelhantes, mas não iguais. O direito à intimidade representa uma esfera mais profunda do direito da personalidade da pessoa humana, enquanto o direito à privacidade indica uma esfera mais superficial. A Constituição Federal no inciso X do art.5º trata expressamente da proteção à intimidade, o que não quer dizer que deixe ao desabrigo o direito à privacidade, uma vez que ambas I(a intimidade e a privacidade) fazem parte do patrimônio subjetivo da pessoa humana, sendo colocadas a salvo da curiosidade alheia, se assim o desejar o titular destes direitos. Desde que não afete a moral e os bons costumes, tem o indivíduo o direito de exercitar atos inerentes à sua vida íntima sem que isso possa escapar ao círculo de proteção por ele estabelecido. Assim, se determinada mulher resolver tomar banho de sol, inteiramente despida na piscina de sua cobertura, não tem direito o vizinho de prédio próximo, utilizando lentes potentes, fotografá-la para posteriormente vender as fotos à revista de grande circulação. A hipótese é de violação do direito à privacidade, podendo gerar uma pretensão indenizatória por danos morais a ser suportada pelo infrator.
Tendo em vista tudo o que foi mencionado anteriormente a respeito da relevância do direto de informação, devemos buscar um meio de conciliá-lo com os direitos da personalidade. Caso isto não seja possível, perquirir qual destes direitos constitucionalmente assegurados deve prevalecer quando houver conflito entre eles.
O constituinte de 1988 ao estabelecer um capítulo na Carta Magna, dedicado exclusivamente aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, em nenhum momento conferiu a qualquer deles um caráter absoluto. A grande prova disso é que nem o direito à vida, que é um bem supremo do homem, ostenta esta qualidade, como se pode ver do inciso XLVII, letra a do art. 5º, que admite, excepcionalmente, a pena de morte nas hipóteses previstas na mesma Carta Magna. XLVII.
Assim sendo, o direito de informação encontra várias limitações, sendo o respeito ao direito à intimidade uma delas.
Devemos ter em mente que a informação transmitida deve ter algum interesse público, algo que vá acrescentar alguma coisa ao seu destinatário, como a cotação da Bolsa de Valores; o resultado das eleições para cargos eletivos etc. Por outro lado, que interesse público existe na divulgação do adultério cometido pela mulher de determinado parlamentar? Interesse público nenhum, mas sim violação ao direito à intimidade, já que ninguém pode pretender vigiar a vida alheia, para revelar detalhes dela.
O que pode gerar polêmica são as restrições ao direito de informar, quando aquele que for enfocado pela notícia se tratar de pessoa pública. Tanto os políticos como os artistas não podem pretender ficar totalmente longe do foco dos órgãos de informação. No tocante aos primeiros, o fato de serem detentores de um mandado, tem o cidadão direito de saber se eles estão valorizando os votos que lhes foram conferidos nas urnas. Quanto aos segundos, ter o seu nome lembrado pela imprensa ou serem assediados nas ruas pelo público, significa valorizar a sua atividade profissional. Tem por isso tanto os primeiros quanto os segundos, mais do que qualquer do povo, um dever de suportar este incômodo da imprensa em geral ou mesmo do cidadão comum. Isto não quer dizer que quanto a estas pessoas, o direito de informar se torne absoluto. Isto porque também a pessoa pública possui uma esfera privada, que tem o direito de manter a salvo da curiosidade alheia. A única exceção a esta regra é quando um ato da vida privada tiver reflexos relevantes na sua vida pública. A divulgação pela imprensa da compra de um imóvel de alto valor, por um parlamentar que está sendo investigado por desvio de verba pública é um ato atinente a vida privada, mas que passa a ser do interesse público pelas circunstâncias.
Outro exemplo digno de nota ocorreu nos anos 60 e ocupou a imprensa mundial, sendo conhecido como o "Caso Profumo", em que Ministro da Defesa da Inglaterra, mantinha um relacionamento amoroso com uma jovem prostituta, que por sua vez ostentava análoga ligação amorosa com um adido militar soviético. Tal fato escapava a um singelo caso amoroso mantido por um político, para repercutir no interesse nacional inglês.
O direito à imagem constitui outro dos direitos da personalidade e talvez o mais violado pela imprensa. Quase que diariamente a imprensa escrita ou os noticiários televisivos mostram a imagem de pessoas, por vezes, meramente suspeitas de terem cometido alguma espécie de prática delituosa, induzindo o leitor/espectador a ter a certeza de estar diante do autor de um crime. Recentemente, um casal de idosos foi morto de forma cruel em São Paulo. Na mesma noite, os principais telejornais divulgaram o fato, apresentando o filho do casal como forte suspeito de ter cometido o duplo crime. Além da imputação, mostraram a imagem do suposto homicida. A comoção foi intensa e logo a comunidade se manifestou, pichando o muro da residência da família com expressões – Assassino! - demonstrando revolta contra o suposto matador. Ocorre que dias depois, o verdadeiro criminoso se apresentou à autoridade policial, confessando a autoria dos crimes. Verifica-se então que o direito de informação foi exercido abusivamente, colocando inclusive em risco a vida do suposto matador, que poderia sofrer violência física por parte da vizinhança revoltada. Tudo isso poderia ter sido evitado se a imprensa divulgasse o fato, sem tecer comentários sobre a autoria do crime, que é uma tarefa da policia judiciária investigar, Após devidamente esclarecido o caso é que surge o direito de divulgar os seus detalhes. Houve uma violação à honra e à imagem do filho do casal, em razão de uma atitude meramente especulativa da imprensa, que num total desvio de sua atividade, acusou e condenou um inocente, escudada no exercício do direito de informação.
Não estamos aqui defendendo o cerceamento do direito de informação nem a censura prévia, procedimentos inteiramente incompatíveis com o Estado de Direito. A questão é apenas de exigir maior responsabilidade daqueles que lidam com o direito de informar. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho resume a questão afirmando que se os órgãos da imprensa optaram pela publicação de determinada matéria jornalística nasce para o leitor um direito à informação verdadeira. Portanto, os órgãos da imprensa têm o dever de antes de divulgar uma informação, averiguar se ela é verdadeira e logo após avaliar se esta divulgação está preservando o direito à intimidade. Se estas providências forem tomadas, é perfeitamente possível que estes dois direitos (direito de informação e direito à intimidade) coexistam.
Cabe-nos agora questionar: Diante de tudo o que foi exposto é possível afirmar que o direito à intimidade deve prevalecer sempre sobre o direito de informar?
A princípio somos tentados a responder que sim, posto que o direito à intimidade constitui a manifestação de um dos direitos da personalidade, e estes devem ser assegurados em nome da dignidade da pessoa humana, que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, implantado pela Constituição Federal de 1988. Por outro lado, o direito de informação constitui apenas um dos componentes do longo rol de direitos fundamentais previstos no art.5º da mesma Carta Magna.
Ocorre que a questão não é tão simples. A regra de que não existem direitos absolutos abrange os direitos da personalidade também, pelo que eles poderão sofrer restrições em determinadas situações. Vamos imaginar que determinada pessoa seqüestre uma criança, pretendendo retirá-la, indevidamente do território nacional. É perfeitamente lícita a divulgação da fotografia do seqüestrador ou de seu retrato-falado pelos órgãos da imprensa, com o intuito de alertar as autoridades e as pessoas em geral, procurando impedir a consumação do intento criminoso. Há um interesse maior em jogo – a liberdade e a vida da criança seqüestrada – que deve se sobrepor ao direito à preservação da imagem e da intimidade do criminoso.
Reiterando posicionamento anterior no sentido de que o constituinte de 1988 não estabeleceu qualquer hierarquia entre os direitos fundamentais, na hipótese de conflito entre eles, a solução mais segura é a ponderação de interesses, por meio da qual irá se valorar qual o bem jurídico deverá preponderar. É importante observar que tal ponderação deverá ser feita diante do caso concreto, já que as hipóteses podem ser semelhantes, mas não totalmente iguais.
A consciência de que não existem direitos absolutos é fundamental para que eles coexistam lado a lado em um mesmo ordenamento jurídico, permitindo a manutenção da paz no seio da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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