Toda ciência, quer seja ou não jurídica, tem como alicerce, princípios, que norteiam todos seus demais fundamentos, a fim de sustentar a veracidade de suas posições e postulados elaborados. Os princípios nada mais são do que ferramentas postas às mãos dos cientistas, que devidamente trabalhadas e cultivadas, são, seguramente, as bases de toda uma construção científica.
Diferentemente não se verifica com o direito penal, que apesar de possuir princípios próprios, s vezes se empresta de princípios típicos de outras ciências para introduzir em seus ordenamentos fundamentos e teorias que lhe aproveitem. Daí a existência do princípio da insignificância, onde se busca preencher um vácuo ainda existente em nosso ordenamento jurídico — a efetiva aplicabilidade das leis penais.
Pelo mesmo direito, crime é toda conduta humana, positiva ou negativa, típica e antijurídica, a que o ordenamento jurídico impõe uma sanção penal, como forma de punir o criminoso pelo ato lesivo praticado à sociedade, ainda que indiretamente, e inibir que esse ato venha a se repetir.
Entrando na seara da teoria do crime, onde muitos doutos do direito penal fizeram escola, como Beccaria, Ferrara e Asúa, peço venia em afirmar que para haver crime, impõe-se a presença obrigatória de dois elementos (culpabilidade não está incluída): tipicidade e antijuridicidade. Sendo justamente sobre a primeira, que iremos dissertar com maior fundamentação, introduzindo em seu bojo o aspecto do conflito existente entre a Doutrina Clássica e a Doutrina Moderna, no que diz respeito à conveniência, conforme as legislações processuais e penais do Brasil, de se poder aplicar ou não o princípio da insignificância no direito penal.
Assim, o tipo penal nada mais é que a descrição da conduta humana, feita pela lei, correspondente ao crime. Com isso, somente haverá crime quando o comportamento humano é, expressamente, descrito, amolda-se ao tipo penal, o que corrobora à proteção do princípio geral de direito, nullum crimen sine lege.
O tema, segundo Salles Júnior, gira em torno dos problemas com a adequação típica: saber se a conduta se ajusta a um modelo, isto é, se apresenta o requisito da tipicidade, conformidade com o tipo, e cita o entendimento de José Frederico Marques acerca da questão:
“O legislador fixa os paradigmas das condutas ilícitas que são relevantes para o direito penal, através das descrições típicas. Formulados esses tipos legais de crimes, neles devem subsumir-se os acontecimentos da vida, para que melhor se possa atribuir a dignidade jurídico-criminal. Daí a importância da adequação típica, não só no campo do direito penal, como também na esfera do direito processual penal: é o que Jiménez de Asúa, com tanto acerto, denominava de valor procesal de la tipicidad”.
( Tratado de Direito Penal, v. 2, Saraiva, pág. 77)
Acontece, que para que se possa estabelecer uma relação existente entre a Doutrina Clássica e a Doutrina Moderna, acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância no direito penal, oportuno se faz, mais uma vez, recorrermos a um outro tema: a tipicidade, de acordo com a sua concepção formal e concepção material.
Do ponto de vista formal, a tipicidade se define exatamente como outrora consignamos — o criminoso se adequa à conduta ilícita, à conduta tipificada na lei penal, ou seja, é a mera correspondência entre uma conduta da vida real e o tipo legal do crime, que consta no ordenamento punitivo.
No entanto, segundo modernos doutrinadores, cultores da opinião de que a pena somente deve ser aplicada à pessoa humana em casos nos quais não possa ser substituída por outra sanção, deve o aplicador da lei penal se ater a uma singular consideração: o tipo penal traz em si mesmo outra “variante” - o aspecto material da conduta.
Nesse sentido, é que não basta apenas que a conduta humana esteja descrita formalmente na lei, tem-se que visualizar “algo mais”: se esse comportamento humano foi, verdadeiramente, lesivo a bens jurídicos, moral ou patrimonialmente. Com isso, considerar-se-iam atípicas condutas humanas que não lesem a vida em sociedade, por serem tão ínfimas e insignificantes, não merecendo qualquer apreciação da função judiciária.
Observa-se, pois, que há uma valoração no comportamento praticado pelo “pseudo-criminoso”, não bastando apenas policiar sua conduta, mas, sobretudo, ao efetivo prejuízo causado por essa atitude — é a aplicabilidade da concepção material da tipicidade, que não guarda sustento, vale ressaltar, na Doutrina Clássica da teoria do crime.
Ao legislador cabe, sobremaneira, a função de elaborar leis. s vezes, por uma miopia, quase que permanente, não consegue enxergar o verdadeiro alcance delas, havendo necessidade do aplicador da lei corrigir essa anomalia jurídica. O tipo penal, especificamente, agrupa, em si mesmo, aspectos tão variados, que o comportamento humano pode praticar sem que estivesse na mira do legislador. A lei, quando reprime, deve guardar uma perfeição tal que impeça a condenação de alguém por uma conduta que o legislador não desejou incriminar.
Exatamente nesse aspecto que se aplica o princípio da insignificância no direito penal. Essa é a posição de Vico Mañas, a respeito da matéria:
“O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.”
(O Princípio da Insignificância como Excludente no Direito Penal, Saraiva, pág. 56)
Por outro lado, o Estado-Juiz deve apenas punir aquilo que considera grave. Com efeito, assistimos a todo instante notícias de que o Código de Processo Penal e Penal devem ser reformados, reformulados seus preceitos, por estarem desgastados e desatualizados, não conseguindo sobreviver e acompanhar o “desenvolvimento” da sociedade brasileira.
Essa mudança passa justamente pela efetivação das normas penais, ou seja, torná-las mais eficazes, atuantes. O Estado não pode mais se preocupar com fatos de pouca relevância jurídica, sob pena dos acontecimentos importantes perderem espaço para aqueles, afogando, assim, o já conturbado ordenamento jurídico do país.
O princípio da insignificância, auxiliado pelo princípio da intervenção mínima, almeja, pois, desafogar a máquina judiciária, onde processos sem o menor potencial jurídico de importância, ocupam tempo e despesas processuais, de outros que, por comoverem bem mais a sociedade, deveriam andar mais celeremente.
Os adeptos da aplicabilidade do princípio da insignificância no direito penal entendem haver uma séria desproporção entre o fato delituoso praticado pelo agente e sua correspondente pena, em determinados delitos. Sustentam esses estudiosos que seria injusto essa medida igualitária a ambas as situações, onde aplicando-se o citado princípio se estaria distribuindo justiça mais eqüitativamente. Daí, verbi gratia, não poderia ser computada a mesma pena a uma pessoa que furta coisa alheia móvel, no valor de 1.000 reais, e outra que furta, nas mesmas condições, coisa alheia móvel de apenas 3 ou 4 reais.
Os opositores ao princípio da insignificância no direito penal, expõem, primeiramente, não se poder auferir o que venha a ser insignificante, quais, verdadeiramente, são os delitos de bagatela (do alemão bagatelldelikte). Neste aspecto, deve-se atribuir à capacidade intelectual e jurídica de nossos magistrados, bem como na jurisprudência que, ainda que timidamente, já está se firmando, o que são delitos de pouca importância, a ponto de não afetarem seriamente o ordenamento jurídico-punitivo, considerando-se como atípica a conduta praticada pelo agente. Essa medição levará em conta todas as circunstâncias ocorridas ao tempo da conduta, observando, contudo, o resultado provocado por esse comportamento. A valoração não pode ser apenas no aspecto normativo — há de se dar ao juiz um poder, não absoluto, logicamente, que o faça crer estar juridicamente correto em suas decisões, que sofre limitações exatamente na obrigação que tem o julgador de motivá-las.
Por outro, esses opositores sustentam a inaplicabilidade do princípio, quando o legislador incrimina expressamente condutas de pouca relevância. Ora, são contraditórios esses doutrinadores ao fazerem essa consideração. Deve-se interpretar essas normas restritivamente, da mesma maneira que se interpretam outras normas que expressam condutas relevantes.
A Carta Magna de 88 expõe à função judiciária uma máquina eficaz à boa aplicabilidade da lei penal — os juizados especiais de pequenas causas. Nesses fóruns, onde são julgados crimes cujas pena, na sua maioria, não ultrapassam três anos de detenção, o juiz pode, ou melhor, deve, dependendo da situação concreta do caso, aplicar o princípio da insignificância, sem temer erro judiciário.
Outro ponto seriamente discutido e que devemos analisar de forma bastante cuidadosa, é da aplicabilidade ou não do princípio sob o enfoque de não estar previsto legalmente. Essa fundamentação não subsiste, atualmente, no verdadeiro Estado de Direito que passamos. O ordenamento jurídico-punitivo não se resume apenas e, tão somente, a um caráter puramente positivista. Deve-se dar uma maior disponibilidade ao magistrado, que não pode estar preso à lei.
A propósito, os princípios existem justamente para dar uma maior segurança e eficácia às normas, mas nunca de estarem sempre supervenientes a elas. Ao se afirmar que o Judiciário deve apenas se ater aos fatos significantes, por analogia, consubstancia-se o princípio da insignificância no direito penal, sob pena de congestionar a máquina judiciária com processos que de nada interessam à sociedade, como já ficou exposto.
Vejamos a crítica dos defensores da inaplicabilidade desse princípio, pensamento de Vani Bemfica (Da Teoria do Crime, Saraiva, pág. 72):
“O princípio é muito liberal e procura esvaziar o direito penal. E, afinal, não é fácil medir a valorização do bem, para dar-lhe proteção jurídica. E sua adoção seria perigosa, mormente porque, à medida que se restringe o conceito de moral, mais fraco se torna o direito penal, que nem sempre deve acompanhar as mutações da vida social, infelizmente para pior, mas detê-las, quando nocivas”.
Como se está a ver, seus opositores são ferozes, mas não conseguem enxergar além do que a norma penal deseja exprimir, preferem a “pseudo-segurança jurídica”, a incorrer em decisões controvertidas.
A moral, certamente, neste enfoque, exerce forte influência, mas o Direito não pode apenas se resumir às leis, aos seus postulados kelsenianos. O Direito é fluente e mutante, devendo estar sempre aberto a inovações que, naturalmente, venham a aperfeiçoá-lo, na aplicabilidade e cumprimento de seus próprios mandamentos.
É compreensível que o princípio da insignificância no direito penal não seja acatado pela maioria dos doutrinadores, talvez por ser uma modificação que trouxe, de supino, pontos outrora intocáveis, verbi gratia, a indisponibilidade da ação penal do Ministério Público, ou a aplicação da pena pelo juiz sem que esteja concluída a instrução criminal. A verdade, porém, é que se pode aplicar sanções administrativas ao denunciado, não havendo necessidade de condená-lo criminalmente.
Por outro lado, não se pode aceitar decisões judiciais, adeptas da escola clássica, que cientes da verificação do fato típico e da antijuridicidade, ou seja, caracterizados os elementos do crime, absolvem o réu por falta de provas, quando, contudo, elas são por demais suficientes à condenação. Somente pelo fato de que a ação praticada foi “insignificante” — o magistrado sente compaixão, não eqüidade, vale dizer, e absolve por falta de provas concretas.
Diante disso, asseguramos a conveniência da aplicabilidade do princípio da insignificância no direito penal, entretanto, com certas limitações, especialmente quilatando o que seja insignificante, e não abrindo espaço para que pequenos delitos, que na verdade possam se tornar comprometedores da ordem social, venham a ser considerados insignificantes, quando não o são. Seguramente, as sanções administrativas e civis ajudarão a provocar no agente causador da ação um temor inerente à sanção penal.