DITADURA MILITAR DE 64 E IDEOLOGIAS RELATIVAS ÀS USINAS DO MADEIRA

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Resumo: o objetivo deste trabalho é abordar as questões ideológicas em relação às usinas do Madeira. Muitos criticam a construção de ambas, dizendo que não trouxeram benefícios para o local; outros, dizem que foram benéficas. Em outros casos, atribuem a utilização em larga escala das hidrelétricas como uma das estratégias geopolíticas dos militares de 64, colocando tal situação como negativa, embora as usinas hidrelétricas tenham contribuído para o progresso econômico do país. Há ainda aqueles que negam os problemas ambientais e reafirmam a imprescindibilidade das usinas. Entre todos os debates, há a questão ideológica como pano de fundo. Às vezes debater parece ser sinônimo de doutrinar ou impor verdades, e não questionar o debatente no sentido de se chegar a um consenso. assim, este trabalho tenta abordar a questão tentando averiguar os dois lados, verificando até que ponto as usinas hidrelétricas no Madeira são benéficas ou não.

Palavras-chave: Ditadura Militar, usinas hidrelétricas, ideologias, rio Madeira.

MILITARY DICTATORSHIP OF 64 AND IDEOLOGIES RELATED TO THE MADEIRA PLANTS

Abstract: the objective of this work is to approach the ideological questions in relation to the Madeira mills. Many criticize the construction of both, saying they have not brought benefits to the site; others say they were beneficial. In other cases, they attribute the large-scale use of hydroelectric plants as one of the geopolitical strategies of the military in the 1964, putting this situation as negative, although the hydroelectric plants have contributed to the country's economic progress. There are still those who deny environmental problems and reaffirm the indispensability of the plants. Among all the debates, there is the ideological issue in the background. Sometimes debating seems to be synonymous with indoctrinating or imposing truths, and not questioning the debater in order to reach a consensus. thus, this paper tries to address the issue by trying to ascertain both sides, verifying to what extent hydroelectric plants in Madeira are beneficial or not.

Keywords: Military Dictatorship, hydroelectric power plant, ideologies, Madeira river.

1. INTRODUÇÃO

As Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau estão situados em Rondônia, sobre o caudaloso rio Madeira, conforme o mapa abaixo:

figura 01. fonte: Google.

Alguns autores, antes mesmo da construção das referidas usinas, apontavam a importância delas para o progresso nacional e local, é o que dizia, por exemplo, Luiz Hildebrando Pereira da Silva:

As hidrelétricas do Madeira vão contribuir não apenas para ampliar a oferta de energia elétrica. Por meio de acordos com a Bolívia e o Paraguai elas criarão também condições, no futuro, para transporte fluvial de Belém a Manaus. Toda a atividade industrial e agroindustrial do Brasil Central e dos países limítrofes vai escoar por essa via. A perspectiva de abertura de estradas de rodagem de Porto Velho até o Pacífico, atravessando o Peru, deve facilitar o acesso da produção do interior da América Latina ao mercado asiático. Não estamos, portanto, falando só de hidrelétricas. Estamos pensando em vários aspectos importantes para o desenvolvimento da região. No início desse ano fiz uma conferência no Instituto Pasteur que teve como título: Como ir de Belém a Buenos Aires sem passar pelo oceano Atlântico e sem pegar malária (PEREIRA DA SILVA apud ZORZETTO; IZIQUE HYPERLINK "https://revistapesquisa.fapesp.br/autor/claudia-izique/", 2007, p. 01).

Tais usinas, para outros, geraram demasiados impactos socioambientais para as populações locais, pois, conforme Fearnside, a decisão de construir as barragens foi feita antes que os impactos fossem avaliados e o licenciamento prosseguiu sobre pressão política, apesar das preocupações levantadas pela equipe técnica da agência de licenciamento (2014, p. 01). Assim, questiona o autor, o órgão responsável pelo licenciamento não atuou corretamente.

Na mesma linha está Estupiñan, para quem, graças às barragens, houve alterações

no fluxo e dinâmica do pulso hidrológico do rio como resultado do represamento do rio Madeira; [...] dos acidentes geográficos naturais responsáveis por gerar parte da diversidade aquática, regular a movimentação das espécies e determinar a composição da ictiofauna; [...] da composição e abundância de espécies-alvo da pesca comercial, especialmente de espécies migradoras (2018, pp. 87-88).

E, mais especificamente:

Muita gente foi realocada de suas habitações e sítios, e as barragens, construídas em cima das principais cachoeiras da calha do rio Madeira. Era uma área tradicional de pesca de peixes lisos, fonte de renda de várias pessoas, e isso acabou. A diminuição da pesca no rio Madeira, entre Porto Velho e Humaitá, foi de 40% entre 2002 e 2017 (apud AMORIM, 2019, p. 01).

Por sua vez, Doria também mostra os pontos negativos das usinas, principalmente para os pescadores:

A gente acompanha os impactos desde antes da implantação das usinas. A partir de então, houve mudança acentuada, confirmada pelos relatos dos próprios pescadores e das alterações que observamos no mercado, apesar de as usinas não reconhecerem esses efeitos. As hidrelétricas foram instaladas há mais de dez anos e não se conhece nenhuma iniciativa de compensação ou mitigação concreta para os pesquisadores. As empresas causam o impacto e monitoram o impacto, portanto há certo controle da informação (apud AMORIM, 2019, p. 01).

A empresa responsável pelas usinas, Energia Sustentável do Brasil ESBR, contesta ao dizer que há muitas decisões judiciais confirmando a tese de que as alterações no ciclo pesqueiro são normais: nas referidas ações judiciais, o que resta demonstrado é o fato de que, com base em diversas pesquisa acadêmicas, a produção pesqueira no rio madeira varia enormemente ao longo dos anos, o que tem sido constatado desde os anos 1970, quando passou a ser medido (ESBR apud AMORIM, 2019, p.01).

A ESBR afirma, ainda, que os efeitos negativos das usinas foram mitigados através de programas socioambientais, avaliados em um bilhão de reais.

Na Academia, apesar dos embates judiciais favoráveis ao ESBR, é mais comum ouvir-se os impactos negativos do que debater-se friamente os motivos e razões alegados por ambas partes.

Ali, boa parte dos textos lidos defende a noção de território como uma forma de poder, implícita ou explícita, de um determinado grupo sobre outro. Afirma-se que o modelo de matriz energética nacional foi idealizado pela Ditadura Militar de 64, a qual estaria preocupada com o progresso material a qualquer custo. Neste contexto, os planejamentos estratégicos relativos à matriz energética nacional, portanto, não levariam em conta os interesses dos povos tradicionais amazônicos à hora de pensar megaprojetos, como as referidas usinas, as quais serviriam apenas para beneficiar o eixo Sul-Sudeste, mais industrializado e populoso.

Assim, a construção de tais usinas serviria apenas para suprir a demanda industrial dos centros urbanos, pouco ou nada preocupados com as consequências ao meio ambiente ou à economia dos povos atingidos pelas barragens. Por conseguinte, os idealizadores de tais megaprojetos estariam pensando em progresso econômico e não em desenvolvimento humano, ou em desenvolvimento sustentável e, muito menos, em meio ambiente.

O tema é defendido com muito ardor por intelectuais, mas até que ponto essa defesa representa o todo e não apenas uma perspectiva político-ideológica? O objetivo deste artigo, portanto, é pôr em ordem as distintas vozes desencontradas, analisar friamente os conceitos e, sobretudo, as tendências ideológicas por detrás de cada conceito.

Para tanto, resolveu-se aqui averiguar os discursos, buscando ser imparcial, se é que tal coisa é possível, afinal o homem não tem como separar-se de suas ideias, ele é o reflexo de sua cultura. Por isso, no mundo polarizado como o atual, deve-se ter em conta que as análises científicas sobre determinados temas nem sempre são isentas de paixões políticas. Colocar todos os argumentos dos interessados sobre a mesa e tentar analisá-los sem enviesamento político, eis o intento deste texto. Dito isso, considerar-se-ão interessados os militares e os seus antagonistas.

O autor analisará o tema da seguinte forma: partirá do contexto em que foi pensado o setor hidroelétrico para Amazônia até o contexto atual. Buscará interpretar os discursos dos interessados, como se isso fosse um júri. Assim, desde uma perspectiva local, regional, nacional e internacional verificará quais os benefícios e malefícios diretos ou indiretos, a curto, médio e longo prazo das usinas supracitadas para as comunidades locais, regionais, nacionais e internacionais.

2. A GUERRA FRIA

Muitas das construções relativas ao planejamento estratégico do país, inclusive a matriz energética, foram pensadas durante a Ditadura Militar de 64. Isso pode ser visto como positivo, negativo ou uma mescla de ambos, dependendo da formação ideológica de quem o analisa. Tal fenômeno se intensifica ainda mais quando a questão é a produção hidroelétrica. Se for uma pessoa atingida direta ou indiretamente pelas barragens, ou alguém realmente preocupado com o meio ambiente e os povos originários, provavelmente enfatize o lado pernicioso das usinas. Por outro lado, se for algum morador dos grandes centros urbanos, que esteja mais preocupado com o progresso material e as infraestruturas produtivas, quiçá defenda a construção de novas usinas, desde que estas supram as necessidades da nação. Por fim, há os que sopesam com prudência o tema, tentando verificar os porquês, os interesses envolvidos, as comunidades atingidas e as beneficiadas, enfim, tentam mensurar os prós e os contras.

No entanto, há os fortemente influenciados pelas tendências políticas. Estes veem as usinas não como um mal em si, porém as criticam apenas por terem sido idealizadas pelos militares. Ou seja, a questão vai mais além da preocupação com o meio ambiente ou os povos originários, mas sim com a negação daquilo que os militares defendiam: o sistema político-econômico capitalista. Por outro lado, há os que defendem a devastação das florestas e a construção de usinas, negando completamente haver desmatamento sistemático ou câmbios climáticos provocados pelo homem.

O conflito em tela não é recente, afinal, logo após a redemocratização, todos os posteriores presidentes mantiveram a base do planejamento geopolítico idealizado no período ditatorial. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, ambos opositores ferrenhos à Ditadura, tendo trabalhado juntos contra aquela, não mudaram as bases da matriz energética nacional. Na verdade, o segundo foi grande incentivador da construção das usinas no Madeira, tendo enfrentado a diplomacia boliviana, que não as aceitava.

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No entanto, entre intelectuais, parece haver certa defesa velada da administração Lula neste tocante, pois se diz que durante o governo do referido ex-presidente houve políticas públicas beneficiadoras da Amazônia, compensatórias e preocupadas com os povos locais. Se é assim, então, muitos dos clamores contra as supracitadas usinas seriam inconsistentes.

Ou seja, há dois pesos e duas medidas, porquanto se mitiga as atitudes de determinado governo ao investir na construção de hidroelétricas, mas se critica a outros governos por ter feito o mesmo.

Para entender-se adequadamente o dualismo ora tratado, deve-se remontar a outro dualismo, o da Guerra Fria, o qual foi um choque entre dois blocos imperialistas, um comandado pelos EUA, capitalista, liberal; o outro pela URSS, comunista e planificada. Não se está aqui a avaliar qual o melhor e o pior, pois ambos têm seus méritos e defeitos, não se pode, contudo, dizer que apenas os americanos eram intervencionistas e que os soviéticos eram os verdadeiros democratas. No quadro abaixo se visualiza bem o quão imperialista cada bloco era.

figura 02. Fonte: Google.

Como se nota, tanto Estados Unidos quanto URSS eram imperialistas e buscavam aumentar suas respectivas zonas de influência. Os soviéticos conseguiram implantar e fomentar seu modelo político-econômico em Cuba, praticamente às portas dos Estados Unidos. Os americanos, por sua vez, fincaram suas bases na Coreia do Sul, instalando-se à entrada da China comunista.

Deve-se ter essa ideia em mente à hora de analisar a política energética nacional, porque não raro se tenta demonstrar que apenas os americanos eram imperialistas, interferidores da soberania das demais nações, como se os soviéticos não houvessem feito o mesmo.

Enquanto a Rússia considerava o Leste europeu o seu quintal, os estadunidenses faziam o mesmo com a América Latina. Aqui, as burguesias locais, assustadas pelo que já havia passado em alguns países caribenhos e da América Central, resolveram reagir e proteger-se, aliando-se com a potência do Norte.

Os burgueses tinham o direito de defender-se, e o fizeram. Assim, começou uma reação ao avanço socialista. A luta não era por democracia, a luta era para destruir o modelo político-econômico do outro. No período, quase toda a América Latina estava sob ditaduras, e no Brasil não foi diferente. Da mesma forma que havia ditaduras que defendiam o capital e os princípios individualistas, o mesmo ocorria na zona de influência soviética, onde as ditaduras defendiam a coletividade e a planificação estatal.

Então, tem-se o seguinte quadro no Brasil: militares pró capital de um lado, guerrilheiros pró socialismo do outro, e o povo no meio de ambos sendo constantemente bombardeado por propagandas ideológicas por ambos grupos.

Assim, como os militares estavam no poder, e queriam resguardar os interesses políticos econômicos do capital, necessitavam criar estratégias que impedissem a expansão de seus inimigos ideológicos. Um dos lemas para a Amazônia era Integrar para não entregar. Ou seja, foram criadas uma série de mecanismos que mantivessem a nação unida contra o avanço daquilo que os militares consideravam nocivo.

3. A DITADURA DE 64 E OS GRANDES PROJETOS

Os militares de 64 continuam a ser criticados por sua política territorial, pois esta, dizem os críticos, tinha como base a integração nacional e o planejamento territorial centralizado, cujos objetivos imediatos eram os seguintes: diminuir as questões relativas ao desemprego e o excedente populacional dos centros industrializados, combater a expansão dos movimentos de cunho socialista e, ao mesmo tempo, proteger as fronteiras brasileiras, sobretudo as amazônicas.

Paradoxalmente, os projetos estratégicos usados pelos militares não eram tão distintos dos utilizados por Roosevelt, Getúlio ou mesmo Kubitscheck, todos com matizes keynesianos, ou seja, utilizavam-se do Estado máximo para a criação de políticas públicas geradoras de emprego e renda. Com isso, os militares atingiram dois grandes objetivos: minimizar os problemas sociais, sobretudo o desemprego no Sul/Sudeste, e garantir o domínio da Amazônia, pois temiam que a região pudesse ser tomada pela guerrilha, tal qual aconteceu na Colômbia. Dentre os projetos citados, destaca-se o conjunto de obras de infraestrutura, conhecido como Grandes Projetos:

O regime investiu num modelo desenvolvimentista marcado por empresas estatais e obras públicas gigantescas nas áreas de transporte, energia e estratégia militar, que buscavam a soberania do Brasil. Apelidadas de obras faraônicas pela imprensa da época, neste período foram construídas a rodovia Transamazônica (BR-230), as hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Itaipu (a maior do Brasil), a ponte Rio-Niterói, as usinas nucleares de Angra, a Ferrovia do Aço e o projeto de minério de ferro de Carajás e de celulose de Jari (CUNHA, 2018, p. 01).

Se as ideias contidas na citação acima fossem colocadas para um cidadão corrente, e lhe fosse perguntado se os Grandes Projetos foram positivos para o país, talvez a resposta fosse sim. No entanto, há um discurso que critica o planejamento dos militares, sem atentar para o contexto em que foram realizados. E por que isso? Porque muitos dos elementos da Guerra Fria, embora em grau menor, nunca deixaram de existir, apenas tomaram novos contornos, como se verá mais abaixo.

3.1. Progressismo

Quando a tensão entre EUA e URSS já parecia minguar, a mesma burguesia que havia posto os militares no poder, começou a sentir-se incomodada, e, por conseguinte, ajudou a tirá-los de lá. Por conseguinte, após a redemocratização, dois grandes grupos políticos passaram a comandar o Brasil, um liderado pelo PSDB e outro pelo PT. Ambos tinham em comum muitas ideias, afinal haviam sido aliados contra a Ditadura Militar. Desta forma, enquanto os militares iam para o ostracismo, tais grupos gradativamente foram assumindo o poder.

Num intento de conciliação, tanto burgueses e socialistas começaram a repensar uma Carta Magna para a nação, é nesse contexto que é promulgada a Constituição de 1988, no fundo uma colcha de retalhos, tentando unificar concepções distintas sobre o papel do Estado.

No entanto, a queda do muro de Berlin e a derrocada da URSS marcaram profundamente os ideais revolucionários das esquerdas, não os destruíram, porém. A esquerda resolveu reunir-se para pensar novas estratégias. É assim que surgiu o Fórum de São Paulo, buscando encontrar as falhas da debacle momentânea:

Analisamos a situação do sistema capitalista mundial e a ofensiva imperialista, coberta de um discurso neoliberal, lançada contra nossos países e nossos povos. Revisamos as estratégias revolucionárias da esquerda desta parte do planeta e dos objetivos que o quadro internacional coloca. Seguiremos adiante com estes e outros esforços unitários [] (Fórum de São Paulo, 1990).

Os membros do fórum perceberam que pelas armas não seriam capazes de chegar ao poder. Por isso, enfatizaram mais as propostas da Escola de Frankfurt e de Antonio Gramsci. Segundo Márquez y Laje (2016), como o antagonismo de classes já não era suficiente para manter os ideais revolucionários, se fez necessário criar outros mais, que polarizaram distintos segmentos sociais. A ata do Fórum de São Paulo o confirma, pois assegura que uma democracia deve ser tal como um processo em vigor e a

creación de nuevos derechos incorpora necesariamente reivindicaciones y alternativas que son presentadas por el movimiento de mujeres, por los que luchan por Ia preservación del medio ambiente, por los jóvenes, por Ias nacionalidades y etnias minorías o no que sufren la opresión y discriminación en nuestras sociedades (Fórum de São Paulo, 1990).

Segundo Márquez y Laje (2016), logo após o Fórum, algumas reivindicações sociais ganharam notoriedade, dentre elas, a dos ambientalistas contra os grandes produtores agroindustriais, contra o desmatamento e contra um Estado centralizador capitalista e incentivador do consumismo.

Do fórum saiu um novo lutador, o que mudou o próprio discurso, mas que ainda manteve o anelo de uma sociedade sem capitalismo. O objetivo era criticar o capitalismo, mas sem identificar-se diretamente com o socialismo e o comunismo.

Essa luta por um ideal é um direito, diga-se de passagem, porém termina por prejudicar as pesquisas relativas ao meio-ambiente, pois alguém pode indagar-se: Serão estes ou aqueles dados relativos ao meio-ambiente verdadeiros ou apenas uma propaganda ideológica disfarçada de informação científica contra uma forma de política-econômica?

Não se quer aqui dizer que todos os pesquisadores estejam nessa situação. Mas é provável que muitos reproduzam o discurso sem perceber que estão fazendo críticas mais em prol da política do que da conservação ambiental em si mesma.

Para tentar ilustrar o dito acima, tomar-se-ão aqui os discursos de alguns pesquisadores de peso sobre o tema. Rogério Haesbaert, por exemplo, entende que o conceito de espaço como passível de alteração em prol do progresso material é algo simplista:

Numa visão mais simplista o espaço era visto como aquilo que é fixo, estático, destituído de movimento, domínio implícito do conservador e do reacionário, entrave ao progresso e responsável mesmo pela desaceleração da história, como indicava o primeiro Fernand Braudel em seu tempo de longa duração como tempo geográfico (HAESBAERT, 2008, p. 100).

Há, implicitamente, um rechaço a pessoas que possuem visão simplista, justamente por entenderem o espaço como fixo, estático e destituído de movimento. O espaço, desta forma, segundo o autor, representaria o domínio implícito do conservador e do reacionário, sendo estes os mesmos que consideram o espaço como um entrave ao progresso e responsável pela desaceleração da história. Ou seja, refere-se ao capitalista, ao agropecuarista, com suas famílias e igrejas conservadoras, ou os militares, com seu ideal de ordem e progresso, que veem as florestas apenas como uma terra a ser domesticada, cultivada, preparada para a agropecuária, para a extração de recursos minerais, para construção de usinas etc., e não como um lugar onde habitam povos originários, uma região onde se pode conseguir riquezas através da pesquisa aplicada, ao entendimento dos processos ambientais para a conservação do planeta. Neste rumo, Vainer e Araújo (apud CHÉLEN, p. 04), criticando a noção de território utilizada pelos conservadores à época da Ditadura de 64, dizem:

(...) A totalidade do território não é vista nem como conjunto de regiões hierarquicamente articuladas, nem como amálgama de regiões programa, mas como um somatório de recursos mais ou menos acessíveis. A ação estatal não tem mais em vista a captura das regiões (na verdade já concluída), mas a viabilização da apropriação de recursos localizados ao largo do território.

Para os militares de 64, a Amazônia, portanto, era algo a ser conquistado, domado, não levando em conta os conflitos entre os povos que já habitavam na região. O que importaria seria, pois, o conceito de progresso econômico para o país. No entanto, cabe uma pergunta: por que a ação estatal que viabiliza a apropriação de recursos localizados ao largo do território seria má? A resposta, para Chélen Lemos, seria devido ao autoritarismo militar e o não diálogo com os povos tradicionais, sobretudo durante a implantação dos Grandes Projetos, os quais

consumaram uma nova regionalização imposta pelos projetos especiais (grandes usinas hidrelétricas, complexos industriais portuários, complexos mínero-metalúrgicos etc.) que tornaram-se os geradores e gestores das novas regiões. Num processo contraditório de nacionalização/transnacionalização, o Estado brasileiro associou-se a corporações transnacionais para intervir no território, excluindo do processo toda a sociedade, especialmente a sociedade local. Este novo modelo produziu um novo e ordenado devassamento amazônico, cujo marco do novo padrão é a produção de tecnologia (BECKER, 1990: 12). A fim de alcançar seus objetivos, o Estado Brasileiro estabeleceu uma malha de duplo controle técnico-político, sobre o espaço preexistente (LEMOS, 2017, p. 05).

Como se nota na citação, há outro ponto criticado: o controle político-técnico-científico do espaço-território. Durante a Ditadura, de fato, os militares usaram as técnicas científicas para garantir o domínio e a utilização do espaço, construindo uma base energética, defeituosa em alguns pontos, mas viável em outros. Ou seja, a ciência para transformar a natureza em prol do homem, assim como já havia sido preconizado desde a Idade Moderna por Francis Bacon. Neste ponto, os militares não mediram esforços para garantir uma alternativa energética para o país, pois, vendo que a dependência do petróleo, em relação aos países árabes era grande, resolveram investir em outras fontes, principalmente as hidrelétricas.

Por conseguinte, em alguns casos, as hidrelétricas no Brasil foram criticadas mais por serem consequências de um planejamento feito à época da Ditadura do que propriamente por seus impactos ambientais. Neste sentido, para Lemos (2017), as usinas são fonte de pobreza e desigualdade social e o capital como contrário ao conceito de desenvolvimento sustentável. Para fundamentar seu pensamento, a autora cita o Relatório Brundtland, o qual propunha na década de 80 políticas ambientais a longo prazo para se obter desenvolvimento sustentável por volta do ano 2000 e, daí em diante, recomendar maneiras para que a preocupação com o meio ambiente se traduza em maior cooperação entre países em desenvolvimento e em estágios diferentes de desenvolvimento econômico e social e leve a consecução de objetivos comuns que considerem as inter-relações de pessoas, recursos, meio ambiente e desenvolvimento." No entanto, para a autora, "a pobreza é apontada como causa da degradação ambiental. Ao atribuir-lhe papel central na crise ecológica, aponta-se como solução para o problema o crescimento econômico dos países pobres e não a mudança nos padrões de consumo que afetaria também os países ricos" (LEMOS, 2017, p. 15).

Sem generalizações, esta corrente vê a tecnologia como responsável pelo desemprego, e o capitalista como o destruidor do sistema biológico do planeta. As críticas a países como Estados Unidos e Brasil são constantes, em relação à China e à Rússia, por exemplo, há certa condescendência. Em suma, o que parece desvelar-se disso é que a preocupação com o clima é algo mais político-ideológico do que propriamente ecológico.

Assim, para a corrente em tela, o desenvolvimento regional não pode prescindir do desenvolvimento sustentável, e este deve ser voltado para as pequenas indústrias artesanais, agricultura familiar, pequenas usinas etc. Contrária ao grande capital, vê no sistema de cooperativas a saída para o pequeno agricultor. Há um caso exemplar: no Maranhão, o coco babaçu constitui uma das formas de renda do povo maranhense. Até a década de noventa, havia uma indústria do babaçu que empregava muita gente e produzia em grande quantidade para exportação. A partir de meados da década de noventa, a administração pública passou a preocupar-se mais com a questão ambiental e voltar seus incentivos fiscais para a agricultura familiar e o desenvolvimento sustentável. Diminuiu, consequentemente, o incentivo à grande indústria e, pior, passou a tributá-la com maior intensidade. Resultado: as empresas começaram a falir ou a não querer investir em novas tecnologias, pois podiam a qualquer momento terem um recrudescimento das políticas estaduais contra o grande produtor. Nisso, as cooperativas de quebradeiras de coco ganharam relevância, e os técnicos começaram a planejar a forma de elas exportarem o que produziam. A produção tem sido cada vez mais pífia, pois há necessidade de uma empresa organizada e motivada em todas as fases, desde a produção até comercialização.

Então, o problema não são as usinas, mas o fato de pertencerem a um modelo capitalista.

3.2. A desigualdade energética e a destruição ambiental

Para alguns ambientalistas, a desigualdade na distribuição da riqueza na sociedade brasileira reproduz-se na desigualdade de distribuição de consumo energético. A energia, como mercadoria capitalista, separa cada vez mais o sentido político-social da energia como definidora de um padrão de qualidade de vida das populações (LEMOS, 2017). O mapa abaixo poderia representar bem esta linha de pensamento. Em tal mapa, quase toda a Amazônia estaria sem energia elétrica, enquanto o Sul e o Sudeste se apresentam como grandes consumidores de energia elétrica.

figura 03. Fonte: Google.

Com isso, afirma-se que as hidrelétricas no Madeira só serviriam para suprir as necessidades daquelas regiões altamente industrializadas. Até que ponto isso é verdade? E se for verdade, é nocivo para o Brasil? Pode o país prescindir de tais usinas?

Geralmente os comentários sobre a desigualdade energética são acompanhados do problema ambiental: as usinas teriam um potencial devastador para alterar a vida animal e vegetal, o clima, o solo e, como isso, contribuir para a extinção de algumas espécies. Então a sugestão são as micro hidrelétricas, a energia solar, eólica etc. Se é assim, por que então os países com potencial hidrelétrico cada vez mais utilizam essa forma de produção energética?

figura 04. Fonte: Google Earth.

Se houver, porém, uma comparação entre a necessidade de manter o meio ambiente intacto e a preocupação em que todas as comunidades amazônicas tenham acesso à energia, infraestrutura mínima, educação, saúde e lazer, conforme preconiza a constituição, isso gera um choque ideológico. Como ter tudo isso sem ter progresso econômico? Como conciliar este com a proteção ao meio-ambiente?

O que se pode notar é que, em alguns momentos, se critica o conceito de progresso materialista-capitalista, em outros a crítica parece ser que tal progresso não chega aos povos tradicionais e originários. Em outros, há uma ânsia de conservar intacta a Amazônia, deixando-a mais para buscas de pesquisas do que a exploração dos recursos minerais e energéticos que possui.

4. CONCLUSÃO

No fundo, de todo o dito acima, infere-se que, em uma sociedade capitalista, o dinheiro prevalece por cima dos interesses da coletividade, sendo o território um motivo de conflito e luta. Bem, se por acaso, o Brasil se tornasse socialista, quem dá garantia de que o conceito de território como luta de poder deixaria de existir? Deixariam, por exemplo, que os índios tivessem suas terras restituídas, formando, assim, seus próprios países soberanos? Se o país estivesse necessitando de energia para progredir, deixariam de usar a Amazônia para conseguir os recursos? O que alegam é que a destruição da Amazônia é devido ao ideal capitalista, que em uma economia socialista a coisa seria diferente. A sociedade socialista deixaria de consumir? Mesmo controlando a taxa de crescimento das famílias, a população brasileira diminuiria? Deixaria de haver crescimento urbano? As grandes produtoras de alimentos seriam destruídas para em seu lugar entrar a agricultura familiar?

O conceito de produção ocidental está sendo questionado pelo próprio Ocidente. Enquanto isso, os países asiáticos começam a ter o predomínio sobre as questões econômicas. É este o contexto de surgimento de uma nova bipolaridade, na qual a China ganha prestígio e a Rússia, fôlego. A grande potência capitalista hoje é a China, e um dos motivos é que o governo chinês não tem que viver explicando-se para sua população a respeito da matriz energética que deva utilizar. O mesmo faz a Rússia, e ambos países, embora aceitem o capitalismo como regime econômico, rejeitam a democracia ocidental. A intenção de ambos é o progresso material, a riqueza econômica e a questão ambiental para eles é secundária.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Daniel. Estudo aponta impactos econômicos e ambientais das hidrelétricas do Madeira. A crítica (periódico), 2019, disponível em: https://www.acritica.com/channels/governo/news/estudo-aponta-impactos-sociais-economicos-e-ambientais-das-hidreletricas-do-madeira

CUNHA, Carolina. Ditadura militar - Grandes obras e truculência policial são heranças do regime. Uol, 2018, disponível em: https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/ditadura-militar-grandes-obras-e-truculencia-policial-sao-algumas-herancas-do-regime.htm?cmpid=copiaecola

FEARNSIDE, Philip M. Barragens do Rio Madeira-Impactos 7: Impactos sociais e Hidrovia. Periódico Amazônia Real, 2014, disponível em: https://amazoniareal.com.br/barragens-do-rio-madeira-impactos-7-impactos-sociais-e-hidrovia/

FÓRUM DE SAN PABLO. Actas del fórum de san pablo de 1990 a 2007. Disponível em:

FUKUYAMA, F. El fin de la historia y el último hombre. Editora Planeta. 1992.

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Editora Era, Cidade do México, 1981.

HAESBAERT, Rogério. Espaço-território e contenção territorial. In: TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES: TEORIAS, PROCESSOS E CONFLITOS. Editora da UNESP, São Paulo, 2008.

LEMOS, Chélen Fischer de. Energia na Amazônia: caminho para o desenvolvimento ou aprofundamento da exclusão? Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional IPPUR, 2017. Disponível em: https://silo.tips/download/titulo-energia-na-amazonia-caminho-para-o-desenvolvimento-ou-aprofundamento-da-e

MÁRQUEZ, Nicolás; LAJE, Agustín. El libro nuevo de la nueva izquierda: ideología de género o subversión cultural. União Editorial, Buenos Aires, 2016.

ZORZETTO, Ricardo; IZIQUE, Claudia. Luiz Hildebrando Pereira da Silva: Às margens do rio Madeira. Revista de pesquisa Fapesp, ed. 142, 2007. Disponível em https://revistapesquisa.fapesp.br/as-margens-do-rio-madeira/

Sobre o autor
Elton Emanuel Brito Cavalcante

Doutorando em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente - UNIR; Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia (2013); Licenciatura Plena e Bacharelado em Letras/Português pela Universidade Federal de Rondônia (2001); Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia (2015); Especialização em Filologia Espanhola pela Universidade Federal de Rondônia; Especialização em Metodologia e Didática do Ensino Superior pela UNIRON; Especialização em Direito - EMERON. Ex-professor da rede estadual de Rondônia; ex-professor do IFRO. Advogado licenciado (OAB: 8196/RO). Atualmente é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

Informações sobre o texto

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