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Dolo eventual no trânsito

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A simples embriaguez não deve ser considerada como dolo eventual em casos de homicídio no trânsito.

1. O dolo eventual brasileiro

Dizia em suas aulas o saudoso professor da Faculdade de Direito de Pelotas, Alberto Rufino Rodrigues de Souza, de uma perversa criação do dolo eventual brasileiro, ao referir-se, nos anos 70, às primeiras condenações por homicídio com dolo eventual de motoristas em casos de grande repercussão social e midiática, com várias vítimas, algumas atingidas no passeio e outras em colisões frontais por ultrapassagens em ruas das cidades ou rodovias, especialmente quando presentes as circunstâncias da embriaguez, excesso de velocidade, manobras arriscadas e perigosas, devido à tímida reprimenda legal então dada ao homicídio no trânsito, transformando culpa em dolo. Como exemplo, do TJRGS: Para atender reclamos sociais contra aquilo que denominam de impunidade pelas penas brandas em acidente de veículo, a jurisprudência tem aceitado a tese do dolo eventual em que o agente, depois de beber grande quantidade de cerveja, em casa noturna, sai em velocidade elevada e abalroa outro veículo estacionado, ferindo várias pessoas.1


2. A embriaguez

Com o passar do tempo, devido ao aumento de eventos mortais no trânsito, os conceitos de dolo eventual e de culpa consciente foram sendo paulatinamente banalizados por simplistas e precárias assertivas de o só fato do consumo de bebida alcoólica equivale à assunção de risco de matar. A tese do dolo eventual foi ganhando importantes adeptos2, a ponto de serem formuladas acusações de homicídio dolosos de trânsito qualificados pela futilidade do motivo determinante3, pelo meio de perigo comum,4 pela surpresa como modo de execução que dificultou ou impediu a defesa da vítima,5 tudo num quadro que levou Rogério Greco a escrever:

O movimento da mídia exigindo punições mais rígidas fez com que juízes e promotores passassem a enxergar o delito de trânsito cometido nessas circunstâncias, ou seja, quando houvesse a conjugação da velocidade excessiva com a embriaguez do motorista atropelador, como hipótese de dolo eventual, tudo por causa da frase contida na segunda parte do inciso I do art. 18 do Código Penal, que diz ser dolosa a conduta quando o agente assume o risco de produzir o resultado.

Merece ser frisado, ainda, que o Código Penal, como analisado, não adotou a teoria da representação, mas, sim, as teorias da vontade e a do assentimento. Exige-se, portanto, para a caracterização do dolo eventual, que o agente anteveja como possível o resultado e o aceite, não se importando realmente com sua ocorrência. Com isso queremos salientar que nem todos os casos em que houver a fórmula embriaguez + velocidade excessiva haverá dolo eventual. Também não estamos afirmando que não há possibilidade de ocorrer tal hipótese. Só a estamos rejeitando como uma fórmula matemática, absoluta.

Imagine o exemplo daquele que, durante a comemoração de suas bodas de prata, beba excessivamente e, com isso, se embriague. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para a sua residência, pois queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia ao veículo, colide o seu automóvel com outro veículo, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava.6

Respeitosa vênia, juridicamente inadequada a imputação de dolo eventual ao motorista causador de homicídio no trânsito baseada apenas na embriaguez, na influência de álcool, na alta velocidade ou ultrapassagem perigosa, ou mesmo quando algumas destas circunstâncias estejam entre si associadas.

Nesse sentido, sempre nos posicionamos ao tempo de exercício de procuradoria criminal do MPRS perante o TJRS, em pareceres lançados em recursos contra sentenças de pronúncia e apelações de julgados do Tribunal do Júri.

A embriaguez, associada ou não a outra conduta de risco, não necessariamente quer dizer tolerância ou aceitação do motorista à eventual provocação de acidentes com mortes, apesar de revelar indesculpável inobservância ao dever objetivo de cuidado exigível de quem participa do tráfego de veículos.

Há mais de cinquenta longos anos, já dizia o eminente Ministro Aliomar Baleeiro em seus votos no STF, que a embriaguez, seja voluntária ou culposa, por si só não caracteriza dolo eventual.7

À luz da teoria jurídica que conceitua e orienta a aplicação do dolo eventual, o consentimento com a possível produção resultado típico pressupõe uma situação objetiva-normativa em que o risco concreto não permitido criado pelo condutor seja irreversível ao seu comando ou poder individual, consentimento que não pode ser presumido.

Por isso, para a configuração do dolo eventual e correspondente adequação típica da conduta no homicídio doloso, não basta, exclusivamente, a constatação de embriaguez, de influência álcool ou velocidade excessiva empreendida pelo condutor do veículo. Não é simplesmente uma operação mental em que, somando-se embriaguez com excesso de velocidade, ou embriaguez com a inobservância de uma regra objetiva de cuidado no trânsito, se pode alcançar matematicamente um resultado mais gravoso, nas palavras do Ministro Schietti, constantes do seu voto no REsp 1486745, julgado pelo STJ, às quais acresceu: Isso eu digo porque verificamos muitas vezes que, dada a repercussão do fato, autoridades que atuam no processo tendem a conferir-lhe um grau de responsabilidade penal maior, imputando ao agente o dolo eventual.8

Imprescindível demonstrar, que as condições concretas do evento eram, igualmente, desfavoráveis ao agente, de modo que este não pudesse objetivamente invocar a expectativa de que o resultado não ocorreria ou poderia ser evitado.9 Caso contrário, o dolo eventual será presumido tão só pela embriaguez ou pela conduta perigosa, o que é de todo inadmissível: O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual.10

A representação concreta do resultado típico, contemporânea à conduta de risco, é o primeiro obstáculo ao reconhecimento do dolo eventual no homicídio de trânsito baseado na embriaguez do agente, porque, geralmente, a embriaguez é culposa e não preordenada, o sujeito sequer a prevê ao beber socialmente, muito menos prevê a possibilidade de produção da morte de alguém11, tal exemplificado por Greco, do pai que bebe e se embriaga completamente durante a comemoração de suas bodas de prata, retornando para casa com a esposa e três filhos a tempo de assistir desde o início uma partida de futebol na TV, dirige em velocidade excessiva e em razão do estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva, colide o seu automóvel com outro veículo, causando a morte de toda a sua família.

Na dicção do Ministro Luiz Fux, quando o agente, sabendo que irá dirigir um veículo, bebe antes de fazê-lo, precipita a sua imprudência para o momento em que atropelar e matar um passante, e responderá por homicídio culposo, pois o elemento subjetivo do crime projeta-se no momento de ingestão da bebida para o instante do delito12.

Mesmo nas situações em que o agente concretamente prevê, ao tempo de beber, que poderá embriagar-se e depois vir a matar alguém na condução de veículo por influência do álcool, ainda assim a imprudência em tomar a direção não se transforma em dolo.

A previsão concreta do resultado depende de uma situação real e não meramente hipotética, atualizada no fato e não em momento antecedente ao fato13. Situação diante da qual possa o agente antever o possível resultado decorrente da conduta caso dela não desista e decidir atravessar o Rubicon, assumindo o risco e consentindo com o eventual resultado mortal, seja o seu acompanhante, condutor ou passageiro de outro veículo, pedestre, ciclista ou motociclista, por colisão, capotagem, perda do controle do veículo etc. A representação mental concreta do fato, pressuposto do consentimento quanto à sua eventual consequência típica, deve ser sempre atual à conduta incriminada, sob pena da imputação de um dolo subsequente.

A teoria da actio libera in causa, que trabalha com a noção de causalidade voluntária, sem exigir que a vontade originária se mantenha durante todo o processo executório do delito, e que tem como fator decisivo a previsibilidade da embriaguez e do fato criminoso ao tempo do ato de embriagar-se, por isso mesmo ação livre na causa, não se presta para dar fundamento jurídico consistente e razoável ao enquadramento do tipo do homicídio de trânsito no modelo doloso do delito. Isso porque a teoria pressupõe embriaguez preordenada completa, aplicável tão somente quando o motorista se embriaga e se coloca em estado de inimputabilidade com o próprio de cometer um crime de homicídio no trânsito na condução do veículo, e aí o dolo seria direto e não eventual.

Exceto em situações de inimputabilidade por doença mental, de propósito suicida ou de intenção delituosa, à luz do corriqueiro, do ordinário da experiência da vida social, ao ingerirem bebidas alcoólicas, os motoristas, mesmo possam prever a embriaguez, a perda de reflexos decorrente e os riscos ao trânsito inerentes, jamais assumem a produção de resultados lesivos a direitos alheios e, especialmente, aos próprios direitos. Nem deixam de ingerir a substância alcoólica por seguirem a fórmula proposta por Frank adaptada às circunstâncias, do seja no que for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de beber e depois dirigir, além do que não seria uma previsão concreta nem contemporânea, reiterando-se que a aplicação correta da teoria da liberdade na causa pressupõe a embriaguez completa, nem sempre ocorrente em todos os casos de embriaguez judicialmente sentenciado a título de dolo eventual. Inclusive, os autores que admitem a teoria da actio libera in causa a todas as condutas cometidas pelo sujeito que se embriaga dolosa ou culposamente, com ou sem prévia intenção direcionada à prática delitiva, exigem observância ao princípio da culpabilidade.

Diz Toledo:

[...] parece-nos que, à luz do pensamento penalístico moderno, pode-se ver nos dispositivos do art. 28, incisos e parágrafos, do Código vigente, com boa técnica redigidos, um conteúdo atual, que não conduza a punir como doloso um resultado que só possa ser atribuível a título de culpa, ou o que seria pior a se punir pelo só resultado quem dele não participa sequer culposamente. É que os preceitos em causa devem ser interpretados, hodiernamente, em conjugação com o princípio da culpabilidade.14

No mesmo passo, Cirino dos Santos:

O princípio da culpabilidade determina a seguinte interpretação do art. 28, II, do Código Penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade penal, mas a imputação do resultado por dolo ou por imprudência depende, necessariamente, da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo respectivo no comportamento do autor.15

Conclusivamente, compartilhamos com o pensamento esposado por Wunderlich:

Os indícios de excesso de velocidade e de embriaguez, por si só, inclusive em caso de colisão frontal (numa ultrapassagem, por ex., sem que o agente estivesse em competição automobilística, vulgarmente chamada de racha), não concluem pelo agir doloso. [...] Ao colocar a sua própria vida em jogo, o agente que colide seu veículo contra o de outrem não poderia, num raciocínio bastante elementar, consentir ou anuir com o resultado. Impossível a presença do elemento volitivo no enquadramento fático referido. Não se pode tolerar a produção do resultado. É impossível haver consentimento, anuência, pelo simples fato de que se o agente concordasse com o resultado morte da vítima, estaria ao mesmo tempo, consentindo com a sua (também provável) morte. 16 Raro não é que a pessoa se embriague culposa e inconscientemente, sem perceber a alteração do seu estado clínico em função da ingestão do álcool, e depois saia a dirigir e termine cometendo um fato do qual jamais se imaginou capaz, muito menos consentido e relativo ao mais gravoso evento que o ser humano pode ser protagonista, que é o de ceifar a vida alheia, gratuitamente. A conduta deve ser avaliada em seu aspecto global, não como ato isolado, senão como um conjunto de atos sucessivos. Os casos de embriaguez culposa em que o agente não planeja, não assume e nem sequer pensa na possibilidade de cometer um homicídio no trânsito, não ensejam a imputação dolosa. A embriaguez, por si só, sem outros elementos do caso concreto, não pode induzir à presunção, pura e simples, de que houve intenção de matar.17

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Não fosse o bastante, o Código de Trânsito, como norma especial, prevê ao homicídio no trânsito cometido sob influência de álcool uma disciplina jurídica específica, com sanções severas no plano da privação da liberdade e da suspensão ou perda de direitos: reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Quem bebe e depois dirige é irresponsável e merece ser devidamente responsabilizado. Alarmantes os dados estatísticos das mortes assim provocadas no país. Todavia, censurado e responsabilizado na forma prevista pela lei especial do trânsito, mais especificamente o art. 302, § 3º do Código.18


3. O racha

Sobre o racha, sem dúvida acontecimento também censurável, perigoso à segurança no trânsito e à incolumidade das pessoas que circulam no entorno, apesar disso, tão somente pela sua ocorrência, não tem o condão de transformar em doloso o resultado culposo eventual produzido.

De per si, não pode ser juridicamente considerado circunstância decisiva de um agir doloso eventual, especialmente diante do art. 308 do CBT, tipo que prevê o delito de participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada, com cominação de pena privativa de liberdade, entre 5 e 10 anos de reclusão, especificamente quando da prática do racha resultar morte.

A presunção de dolo eventual na conduta de quem participa de competição perigosa, mesmo quando capaz de expor a riscos a vida e a saúde de terceiros, é penalmente inadmitida tanto quanto em relação à embriaguez, além do que, na mente do participante, não se passa a representação e menos ainda um consentimento com a morte de ninguém, salvo na excepcional hipótese de ideação suicida, pois, e pelo contrário, ele confia nas suas habilidades para condução segura do veículo exatamente em face da alta velocidade imprimida. O racha é um desafio de velocidades e de habilidades, de forças mecânicas e de aptidões humanas.

Eduardo Viana e Adriano Teixeira, em artigo publicado na Revista do Ministério Público de Goiás, 19 comentam o veredicto do Tribunal de Berlim que, em fevereiro de 2017, condenou dois jovens à pena de prisão perpétua por homicídio com dolo eventual no trânsito.

Segundo relatam, apesar de não ter sido o único caso de racha discutido nos tribunais alemães, o caso de Berlim exigiu especial atenção da literatura científica porque foi a primeira vez que os condutores participantes de um racha foram condenados, não por homicídio culposo, mas por homicídio qualificado doloso na modalidade eventual. 20

O fato ocorreu nas primeiras horas da madrugada, durante uma aposta de corrida, ao conduzirem potentes veículos a uma velocidade de 170 km/h, numa avenida em que a velocidade máxima é de 50 km/h, até que, num cruzamento, o automóvel dirigido por um deles avançou o sinal vermelho e colidiu violentamente em outro veículo que cruzava a avenida com o sinal verde, cujo condutor morreu no local em razão das graves lesões sofridas com o choque.

Em grau de recurso, o Tribunal Federal da Alemanha entendeu que o julgado equivocou-se em três pontos fundamentais:

1º - condenação na figura do dolo subsequente o dolo de matar teria de ser provado antes da entrada dos condutores no cruzamento, pois, depois disso, como o tribunal de Berlim afirmou, eles nada mais podiam fazer. A possível circunstância de que, no momento do atravessar do cruzamento, em que mais nada poderia ser feito, os agentes possuíam dolo de matar é irrelevante. tratar-se-ia do que sói chamar-se de dolus subsequens;

2º - não conferiu valor suficiente ao fato de que os próprios autores estariam se colocando em perigo questão fundamental para análise do dolo deixou de ser enfrentada, a saber: o fato de se colocarem em perigo, também, os acusados. O BGH aduz que, em casos como esse de comportamentos arriscados no trânsito, nos quais o interesse primário dos envolvidos não é lesionar terceiros , a possibilidade de lesão dos agentes faz que estes tendencialmente acreditem em um desfecho positivo o que afastaria o dolo, segundo a (tradicional) fórmula jurisprudencial. O argumento do tribunal de Berlim, de que os condutores se sentiam seguros nos seus automóveis, não teria sido acompanhado por nenhuma evidência, seja do caso concreto, seja do senso comum;

3º - afirmou a coautoria, apesar de inexistir um plano conjunto de realização do homicídio. 21

O Tribunal, não anulando nem negando a hipótese de dolo eventual, determinou um novo juízo de valoração ao Tribunal de Berlim, porque o sopesamento aos dados objetivos e subjetivos do fato foi deficiente e insuficiente para embasar o reconhecimento do dolo eventual.

Encerram o artigo expondo o visão normativa do dolo que esposam e sustentam, concordes com o veredicto do Tribunal de Berlim. Pela clareza e aprofundamento técnico dos argumentos que defendem, a seguir reproduzidos seus principais fragmentos:

De acordo com a ideia de dolo como um compromisso cognitivo com o perigo representado, o nível de imputação indicado pelo Tribunal de Berlim merece concordância. Está bastante claro que os condutores não queriam causar qualquer acidente fatal; sua motivação é hedonista e, por isso mesmo, o acidente é completamente incompatível com a meta de cada um: o prazer de ganhar a corrida. Como demonstrado, adotando-se uma concepção volitiva de dolo, seríamos forçados, neste ponto, a não prosseguir com a análise do caso, eis que a inexistência do estado mental em relação ao resultado inviabilizaria uma imputação dolosa. Chegamos, então, a um ponto crucial: acaso uma hipotética posição mental do indivíduo contrário ao resultado efetivamente existisse, isso seria suficiente para justificar uma imputação culposa? Cremos que essa pergunta merece uma resposta negativa. Trocando em miúdos, julgamos que a imputação subjetiva não pode ser determinada a rogo de uma (hipotética e insondável) postura mental, sob pena de se abrir para o autor uma porta de possibilidades de manipulação dos fatos (e do direito). [...] O caminho adotado pelo LG Berlim foi a normatização do elemento volitivo do dolo. Uma pessoa racional, no lugar do condutor, não adotaria o comportamento dos participantes do racha de Berlim se não estivesse de acordo com o resultado. Mas essa não é a única opção.

[...] O elemento volitivo também pode ser completamente desconsiderado. Observe-se que, nem mesmo diante do direito brasileiro e estamos nos referindo ao art. 18, I, do Código Penal, diz-se do crime: I doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo o elemento volitivo, tal como a doutrina clássica o compreende, mostra-se necessário. Primeiro porque não está nem um pouco claro qual o significado das expressões querer ou assumir o risco utilizadas pelo legislador. Isso nos conduz a sustentar a tese de que esse querer não precisa ser necessariamente interpretado dentro de uma configuração psicológica. Afirmar que A quis isso ou aquilo depende muito mais de um rigoroso processo de valoração de seu comportamento do que de seu patrimônio psíquico. Naturalmente, compete à ciência indicar quais são os parâmetros que devem ser manejados pelo magistrado para que se possa, com segurança, valorar o comportamento humano. E, nesse caso, a rigor, já não fará qualquer diferença indagar sobre se o indivíduo teve ou não vontade. [...] O processo de determinação da responsabilidade depende nesse ponto em sintonia com o LG Berlim da interpretação do terceiro. Não uma interpretação do comportamento à luz do resultado, mas sim como consequência da própria qualidade do perigo criado. Responderá dolosamente aquele indivíduo que, aos olhos do terceiro racional, realiza um comportamento idôneo para a realização do tipo. Por exemplo: quem atira um coquetel Molotov em um quarto com pessoas ou bate com uma barra de ferro na cabeça de outra realiza um método adequado para matar. No nosso caso, o veículo não foi outra coisa, senão uma arma para matar.22

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Sobre o autor
Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999. Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG. Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito. Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS. Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos. Possui livros e artigos jurídicos publicados. À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas. Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Carlos Otaviano Brenner. Dolo eventual no trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7424, 29 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94853. Acesso em: 27 abr. 2024.

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