Artigo Destaque dos editores

Preservação de territórios sagrados para as religiões de matriz africana

Exibindo página 2 de 3
14/02/2007 às 00:00
Leia nesta página:

5. Racismo Ambiental e Liberdade Religiosa

As desigualdades raciais que marcam a sociedade brasileira, e em particular a baiana, reclamam a especificação das manifestações do Racismo como pressuposto para a oferta de respostas competentes e orientadas a superação do quadro de desigualdade no acesso a direitos. Oportuno lembrar o caráter multifacetário das violações, conquanto a violação a um direito fundamental pode servir de porta para a violação de vários outros direitos.

No caso das religiões de matriz africana e da preservação de seus territórios sagrados, a indissociabilidade entre direitos fundamentais alcança contornos dramáticos. Isto porque, praticantes de religiões de matriz africana devem ter acesso a um meio ambiente sadio (recursos hídricos: mananciais de água doce, mares, etc, e espécies da fauna e da flora) como condição necessária ao exercício do direito fundamental à liberdade religiosa, que por sua vez oferece proteção jurídica não somente aos espaços privados de culto, mas também a todas as dimensões imprescindíveis à continuidade das liturgias, e, por conseguinte, das religiões.

O conceito Racismo Ambiental refere-se a práticas que voluntária ou involuntariamente definem a qualidade de vida e do ambiente em que as pessoas viverão, trabalharão, se deslocarão, e desenvolverão as demais atividades fundamentais à vida humana, a exemplo das práticas religiosas. Desse modo, a degradação ambiental pode servir como caminho para violação de outros direitos.

Com maior autoridade, "The problem of polluted black communities is not a new phenomenon. Historically, toxic dumping and location of locally unwanted land uses (LULUs) have followed the "path of least resistance", meaning black and poor communities have been disproportionately burdened with these types of externalities. However, organized black resistance to toxic dumping, municipal waste facility sitting, and discriminatory environmental and land-use decisions is a relatively recent phenomenon." (Bullard: 2000)

A preservação de territórios sacros se coloca como uma alternativa para a concretização e efetivação de direitos fundamentais, mediante a preservação de bens culturais de natureza material e imaterial. Dito de outro modo, a proteção do patrimônio cultural material e imaterial pode ser efetivada através da preservação de Territórios Sagrados para as religiões de matriz africana, através da gestão adequada destes espaços.

Uma proposta de gestão de espaços públicos utilizados para a realização de liturgias de religiões de matriz africana deve levar em consideração os diversos usos a que são afetos tais espaços, as práticas de Racismo Ambiental encontradas no interior desses espaços, as relações históricas mantidas pelas coletividades que se relacionam com tais espaços regular ou irregularmente.

Em suma, ferramentas de planejamento do Uso do Solo em Territórios Sagrados que tenham o condão de superar as barreiras ao exercício do direito constitucional à liberdade religiosa por parte dos praticantes de religiões de matriz africana devem passar pela análise das condições materiais e simbólicas necessárias ao livre exercício do direito constitucional à liberdade religiosa por parte do povo de santo, assim como pela análise dos critérios das práticas de planejamentos urbanos fundados em critérios racionais técnicos. Uma gestão garantista contém alternativas institucionais de soluções de eventuais, potenciais e presentes incompatibilidades entre as liturgias de matriz africana e as regulamentações do uso do solo mediante o comprometimento público e privado com a integridade dos espaços públicos de culto.


6. Possibilidades

A política de preservação mais consagrada ao longo do último século foi o tombamento. As motivações vão desde a pormenorização feita em nível infraconstitucional, passando pela longínqua data em que a lei do Tombamento foi promulgada, ainda na década de trinta do século passado, e também, pela forma participativa de elaboração do aludido decreto, pois, em que pese ter sido promulgado em período de regime de exceção, existiu ampla participação na sua elaboração, o que não permitiu que o ato fosse inquinado de qualquer vício de ilegitimidade. (Fiorillo: 2005)

A despeito desse largo uso do instituto do tombamento, o texto constitucional autoriza e fomenta a adoção de formas de preservação direta e indireta13 de bens culturais, são casos expressamente previstos, o uso de registros, inventários, vigilância, instrumentos legais de planejamento urbano14, todos estes dentro de um rol meramente exemplificativo, algumas operam ex-vi legis, outras requerem processo e ato administrativos. O termo preservação trata-se de um conceito genérico contemplado constitucionalmente na redação do parágrafo 1°, do artigo 216 do texto constitucional.

Antes de analisar o tão festejado instituto do tombamento, "outras formas de acautelamento e preservação" serão objeto de nossa atenção. Convém ressaltar, preliminarmente, que mecanismos que afetam as faculdades do domínio e o próprio direito de propriedade, consoante a disposição dos artigos 216 e 186, ambos da Constituição Federal, são de uso expressamente autorizados. Desde o Direito Romano, fonte remota do Direito Civil brasileiro, a propriedade privada era obrigada a suportar inúmeras restrições orientadas a conforma-las a outros interesses privados ou da sociedade.

No caso da proteção do patrimônio cultural de matriz africana mediante a preservação de territórios sagrados para as religiões de matriz africana temos dois dados, pelo menos, da mais alta relevância no que toca a sua natureza de meio ambiente cultural urbano. Primeiro, a distribuição espacial desses territórios dentro de uma intrincada rede de relações e interesses da cidade, e, segundo, a possibilidade de tomada de decisões democráticas que orientarão políticas de preservação desses territórios.

As nossas manifestações culturais denunciam a tríplice origem das raízes brasileiras, Indígenas, Africanos e Europeus formam a Sociedade Nacional Brasileira. Contudo, o nosso processo de formação produziu um sistema que privilegia o grupo branco europeu. As exclusões e anulações de direitos experimentadas no interior do país pelas comunidades negras geraram um quadro de desigualdades, exaustivamente demonstrado estatisticamente, e em processo contínuo de atualização.

As manifestações religiosas de matriz africana, parte integrante da coletividade de bens que se referem à cultura e ação nacionais, requerem para a sua preservação e expressão territórios físicos que dêem vazão às suas necessidades. Expressões de resistência a tentativas de eliminação física e cultural de caráter voluntário e/ou institucional, os Terreiros são espaços sociais, culturais, míticos, religiosos, cujo objetivo principal é a vivência religiosa da espiritualidade africana aqui reelaborada (Siqueira: 2004). Ao lado dos terreiros, espaços privados, outros territórios são utilizados tradicionalmente pelos praticantes para prestar culto às suas divindades.

O grande desafio que se lança para os profissionais do Direito interessados em oferecer respostas para a preservação desses espaços, e por conseguinte para garantir a continuidade histórica dessas manifestações culturais, encontra-se na compatibilização dos diversos usos de espaços públicos, e na proteção dos espaços privados. Vejamos em seguida algumas propostas para a superação desses desafios.

6.1. Anti-Property Rights

Anti-Property Rights são mecanismos privados de conservação que permitem somente o desenvolvimento desejável da propriedade, mediante o uso de direitos de veto. Com o uso desse instituto, espera-se criar uma dinâmica de resistência coletiva, a qual evitaria riscos indesejados nos espaços em que a preservação fosse almejada. (Bell e Parchomovsky: 200?).

Embora não previsto em nosso Ordenamento Jurídico, a rubrica geral "outras formas de..." autoriza o uso do mesmo conforme alhures explicamos. Aos APR’s deve-se associar as Operações Urbanas Consorciadas (OUC) previstas no Estatuto da Cidade. A curiosa premissa vai de encontro às clássicas idéias de Coase, ao defender que a introdução de novos custos de transação pode levar a usos mais adequados dos bens, visto que evitará ameaças aos bens, seja de agentes públicos, seja dos privados.

Ademais, encontra-se a idéia subjacente da possibilidade de alcance de bons resultados de conservação por meio das parcerias entre agentes privados (financiando), agentes públicos (proprietários dos bens) e sociedade civil (gerindo). Os conhecidos abandono estatal e superexploração dos espaços por particulares seriam evitados com os APR’s. Isto porque a concepção de propriedade, suporte físico dos bens culturais a serem protegidos, combateria a idéia de uso comum, ao passo em que promoveria o uso coletivo do bem.

No primeiro caso, agentes exercem vários usos regular ou irregularmente, todos destinam o uso que lhes parecer conveniente, e no tempo que lhes parecer adequado. No segundo caso, a promoção do uso coletivo, os agentes que mantem algum tipo de relação com a propriedade passariam a se responsabilizar pelo bem, inclusive, definindo a exclusividade ou o compartilhamento do uso da propriedade.

As cidades brasileiras gozam de uma importante ferramenta de planejamento urbano, prevista num dispositivo constitucional e regulada pela Lei 10.257, o Estatuto da Cidade, que por sua vez se apresenta como uma possibilidade de gestão participativa dos espaços urbanos. Através da realização de uma Operação Urbana Consorciada15 seria possível realizar um fracionamento ideal da propriedade dos espaços públicos sagrados, acompanhado da distribuição de frações ideais entre os praticantes de religiões de matriz africana e os moradores do entorno, duas coletividades diretamente interessadas nos espaços.

Tal atribuição de frações ideais do direito de propriedade ganhou nos Estados Unidos o nome de Anti Property Rights, e cumprirá duas funções: evitar intervenções urbanísticas julgadas indesejáveis pelos titulares das frações ideais, e criar um mercado de venda do direito de exploração considerada desejável pelos titulares do direito. Dentre outros benefícios, podemos destacar a geração de um fundo que deverá ser revertido integralmente em ações de recuperação e conservação dos espaços, e gerido pelos titulares das frações ideais, pelos investidores, e, obrigatoriamente, pelo poder público municipal em razão de previsão legal.

A inscrição dos bens em comento dentro de um rol mundial de preservação justificasse dentro de um contexto de consideração dos movimentos diaspóricos africanos, o qual nos revela o interesse da preservação desses espaços como elemento de interesse não só para o povo brasileiro, mas igualmente para comunidades negras fora e dentro de África, e ao mundo inteiro. Dentro de um quadro maior de fluxos de experiências, vivências e transformações, os Territórios Sagrados podem funcionar como elo de ligação de toda uma rede mundial afro espalhada e reelaborada no mundo afora.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Os territórios elo ainda podem manter estreito diálogo com outros territórios negros, falo dos bairros negros agora alçados a condição de quilombos urbanos, das feiras livres, dos blocos afros e afoxés, das irmandades religiosas. O ponto de convergência da diáspora africana serviria para garantir a reprodução cultural de organizações étnicas, e só seria possível se acompanhada de uma regulamentação da propriedade dos Territórios, e do uso dos símbolos, da regulamentação do Uso do Solo Urbano, das intervenções governamentais e não governamentais como estratégia de integração dos Territórios, e da adoção da lógica do étnico e do sagrado.

6.2. Advocacy Planning

Em Justiça Ambiental nas Ruas – Planejmanento Advocatício como uma Ferramenta para lutar contra o Racismo Ambiental, Stacy Anne Hardwood defende que a noção de Justiça Ambiental deve ser ampliada para incluir a má distribuição de condições ambientais benéficas nas cidades, e ainda propõe que o Advocacy Planning possa ser um efetivo caminho para orientar a alocação de serviços e comodidades (equipamentos) ambientais benéficos. Infraestrutura de bairros e planejamento dos transportes são vitais para segurança e qualidade de vida, inclusive, a oferta de respostas adequadas para essas duas questões pode resolver problemas físicos, até impactos de marginalização e exposição das comunidades a riscos. Através da análise de um processo de planejamento advocatício, o artigo recomenda o uso do mesmo como estratégia de promover Justiça Ambiental, em bairros com problemas, através de melhorias urbanas. (Harwood: 2003)

Tomando emprestada tal perspectiva, podemos afirmar com tranqüilidade que as cidades têm destinado pouca ou nenhuma atenção para o que tem sido feito em zonas sacrificadas, legitimando desse modo, uma verdadeira tentativa de extermínio dos elementos alusivos à memória e ação cultural das religiões de matriz africana. Haja vista que a distribuição espacial desses territórios sagrados, como não poderia ser diferente, concentra-se em locais de profusão de comunidades negras, sejam os territórios sob responsabilidade do Estado, sejam territórios particulares. Isto porque nas áreas mais valorizadas das cidades, as alterações que envolvem os interesses das comunidades de santo são feitas de forma ágil e não participativa 16.

O procedimento aludido, desse modo inviabiliza a densificação dos dispositivos constitucionais concernentes a defesa do patrimônio cultural, e impede categoricamente o exercício de uma parcela dos Direitos Fundamentais inscritos nos artigos alusivos ao Meio Ambiente e ao direito à liberdade religiosa como outrora referido.

Em Salvador, capital da Bahia, os espaços públicos sagrados para o povo de santo, utilizados ancestralmente para prestar reverência aos orixás, voduns e inquices (Parque São Bartolomeu, Dique do Tororó, Parque de Pituaçú, Lagoa do Abaeté, região da Avenida Paralela) têm sido alvo de ações e omissões públicas e privadas (ação policial, situações de violência, urbanização paisagística em detrimento da conservacionista) degradações ambientais que têm inviabilizado o exercício do direito à liberdade religiosa por parte do povo de santo.

Desse modo, é forçoso ressaltar a função do Advocacy Planning para o comprometimento dos gestores públicos envolvidos no processo, dentro dessa perspectiva o gestor agiria como um advogado da causa, deliberadamente lutando pelos interesses de grupos; e a mundialização da cidade do Salvador através do mercado de transação de direitos de propriedade, dentro dessa perspectiva, Salvador funcionaria como eixo mundial do turismo étnico diaspórico, a partir do vínculo com a ancestralidade africana reelaborada nesses espaços públicos sagrados para o povo de santo.

6.3. Tombamento

6.3.1. Conceito

O instituto do tombamento, forma de intervenção do Estado na propriedade, pode ser encarado como uma forma de proteção do patrimônio cultural brasileiro em razão do interesse público. Entretanto, muitas querelas jurídicas pairam em torno do instituto, indagando, principalmente, a sua natureza jurídica e o alcance dos efeitos produzidos pela aplicação do mesmo.

Pode-se definir o tombamento como sendo um ato administrativo pelo qual o Poder Público declara o valor cultural de coisas móveis ou imóveis, inscrevendo-as no respectivo Livro do Tombo, sujeitando-as a um regime especial que impõe limitações ao exercício do direito de propriedade, com a finalidade de preserva-las. Portanto, trata-se de ato ao mesmo tempo declaratório, já que declara um bem de valor cultural, e constitutivo, vez que altera o seu regime jurídico. (Rodrigues: 2002) Ou ainda, é o regime jurídico que, implementando a função social da propriedade, protege e conserva o patrimônio cultural privado ou público brasileiro, através da ação dos poderes públicos e da comunidade, tendo em vista, entre outros, seus aspectos históricos, artísticos, arqueológicos, naturais e paisagísticos, para a fruição das presentes e futuras gerações. (Machado: 2005)

6.3.2. Finalidade

Neste trabalho, o tombamento deve ser encarado como mais uma possibilidade, como mais uma alternativa, como mais um instrumento de preservação do patrimônio cultural presente em espaços sagrados de religiões de matriz africana, e nada mais. Contudo, em alguns momentos específicos, como já se podia esperar, tendo em vista a sua natureza instrumental, o tombamento pode assumir importância capital para o caso. Nesses casos específicos, a exemplo do terreiro da Casa Branca, o tombamento despontou como a melhor alternativa, em que pese outras dificuldades técnico-políticas, o que se traduz num exemplo do necessário multiinstrumental arsenal para o enfrentamento de questões dessa natureza.

6.3.3. Modalidades

O tombamento pode ser de três espécies: via Executivo, via Legislativo e via Judiciário. A maneira mais consagrada é através do Poder Executivo, ocasião na qual, na maioria das vezes, lança-se mão do Decreto – Lei 25/3717. Nesta modalidade, materializa-se para o Poder Executivo, a faculdade de restringir direitos de propriedade e condutas de agentes em geral, mediante o exercício do poder de polícia, para resguardar interesse público geral de preservação de bens de valor cultural que determinadas coisas possam conter.

O Decreto – Lei 25/37 e suas modificações posteriores dispuseram sobre o processo administrativo que culminará com a inscrição do bem móvel ou imóvel identificado como de valor cultural no livro do tombo, assim como dispôs sobre a causa determinante da proteção, do órgão competente para julgar o valor de eventuais indenizações, os efeitos decorrentes da tutela especial. Em suma, os elementos do ato administrativo decorrente do poder de polícia administrativa, o qual restringirá a atuação de terceiros para resguardar interesse público geral de preservação.

Requisitos do tombamento são os dos atos administrativos em geral: competência, finalidade, objeto, motivo e forma. Quanto ao primeiro, ao Conselho Consultivo do Patrimônio, órgão democrático e de ampla composição, cabe reunir-se para determinar o valor simbólico de um bem, e a relevância para a identidade e ação nacionais, inclusive, podendo solicitar procedimentos preparatórios. Estudos técnicos servirão para verificar o motivo do ato administrativo, mencionando a base teórica corrente na qual se pautou para determinar o valor cultural de determinado bem, por meio de critérios objetivos, ainda que subjetivamente escolhidos pelo sujeito competente para determina-los, e variáveis em relação ao espaço-tempo de sua aplicação.18

Quanto ao último, a forma, o processo administrativo descrito pelo Decreto - Lei 25/37 c/c lei 6.292/75, consta de: notificação do proprietário do bem; prazo de quinze dias para anuir, ou não, ao tombamento; envio do processo ao Conselho Consultivo do Patrimônio, em ambos os casos; deliberação do Conselho seguida de homologação ministerial. O objeto material é o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Quanto ao motivo, ou condição é que a coisa seja um bem de valor cultural. Quanto ao objetivo ou finalidade específica do tombamento de um bem é a sua conservação por interesse público, é a conservação para preservação do patrimônio cultural, a proteção do interesse público através da preservação do bem cultural.

Durante muito tempo, apelos foram endereçados aos tomadores de decisões na seara da preservação de bens culturais para que fosse criado instituto apto a salvaguardar os bens de natureza imaterial, uma vez que o Decreto – Lei 25/37 não se encontra apto a protege-los.19 Até que o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso instituiu, através do decreto 3.551/2000, o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, além de criar o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.

O tombamento via Poder Legislativo reveste-se de maior força do que o tombamento via Executivo, visto que para sua revogação será necessária outra lei inovar a ordem jurídica revogando o disposto na anterior que tombara o bem. Assim, relembramos o caráter específico da proteção oferecida pelo tombamento através do decreto-lei 25/37, e as inúmeras outras formas legais de proteção dos bens de valor cultural calcadas no dever de proteção por parte do Estado.

Quanto ao aspecto da generalidade exigido para a lei que define o tombamento, ele estará presente se, de alguma forma, o objeto da preservação estiver inserido em alguma categoria ampla, ou em outras palavras, se o que estiver sendo objeto de preservação, por decorrência direta da lei, não for um bem específico, mas uma categoria de bens de modo a não estabelecer distinção infundada, resguardando a isonomia.

Por fim, temos a hipótese de tombamento ou preservação de bem cultural através de decisão judicial transitada em julgado. A legitimidade ad causam para requerer em juízo medida20 de proteção de um bem, é bom que se diga, é do Poder Público, compreendidos União, Estados, Municípios, Ministério Público, em conjunto com a comunidade. No último caso, o reconhecimento pelo Estado do valor de determinado bem institui um direito público subjetivo do cidadão ver o bem protegido. Ademais, a lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) oferece fundamento legal expresso no inciso III, do artigo 1°, em que as denominações lá contidas são nada mais, nada menos que Patrimônio Cultural.

Note que os bens tombados por via jurisdicional e ainda não inscritos no livro do tombo devem ser respeitados em respeito ao efeito erga omnes da coisa julgada, e não ao efeito do tombamento, conquanto ainda não pode produzir efeitos em razão da não inscrição do bem no respectivo livro do tombo.

6.3.4. Natureza jurídica

Há grandes debates indagando acerca da natureza jurídica do tombamento, alguns afirmam ser o tombamento uma servidão administrativa, outros defendem que se trata de uma limitação administrativa, e ainda há aqueles que acham não ser possível estabelecer uma discussão nestes termos21. O pano de fundo dessa discussão reside na indagação sobre a intensidade da limitação do exercício do direito individual à propriedade em função do interesse público encerrado no tombamento, além disso, se é possível harmonizar limitações administrativas com o desfrute individual do bem.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o tombamento de bens em favor do Patrimônio Histórico é uma modalidade de servidão administrativa, que por sua vez se trata de um direito real que assujeita um bem a suportar uma utilidade pública, por força da qual ficam afetados parcialmente os poderes do proprietário quanto ao seu uso ou gozo. (Mello: 2005)

Servidões administrativas são aquelas que afastam o proprietário, total ou parcialmente, da titularidade exclusiva do desfrute de um de seus elementos, e se caracterizam pela natureza de direito real, de finalidade pública, sobre coisa alheia, o qual conta com prédio serviente sem que exista o prédio dominante.

Sonia Rabello de Castro defende que o tombamento se trata de uma limitação administrativa, entendida como aquela que não implica desdobramento do direito de propriedade, mas na regulamentação do seu exercício, e se traduz em uma imposição de caráter geral, gratuita, unilateral, de ordem pública, condicionadora de direitos ou atividades particulares ao bem-estar social, que formam o conteúdo do poder de polícia da administração pública. Ao especificar uma limitação administrativa, o Estado não é titular de um direito específico, mas gestor de um interesse público indeclinável. (Castro: 1991)

Tal confusão jurídica se deu, também, em razão da existência de um mito que ignora o caráter público das normas que condicionam o uso e gozo da propriedade, e, portanto mutáveis segundo o interesse coletivo, e que leva ao "sofisma" de que ao ser proprietário de um bem estar-se-ia adquirindo também o direito público da forma de exercita-lo. Contudo, a forma do exercício do direito não se incorpora ao patrimônio do titular do domínio senão quando já realizado, permanecendo, até então, como mera potencialidade. (Castro: 1991)

Tendo em conta que as limitações não devem tirar do proprietário a faculdade do exercício exclusivo de qualquer dos elementos que compõem seu direito, mas faz o mesmo suportar uma utilidade pública, e que pode haver casos de tombamento que afetam parcialmente os poderes de uso e gozo do proprietário do bem tombado, devemos forçosamente concluir que o tombamento não se trata de uma limitação administrativa. Por outro lado, levando em consideração que podem existir tombamentos que não afetem o uso e gozo do proprietário, temos que concluir que o tombamento não se trata de uma servidão administrativa.

O instituto do tombamento se trata de um instituto autônomo, elaborado no Brasil e com características próprias, embora com paralelos em outros ordenamentos. As restrições à propriedade de natureza privada cabem ao Direito Civil, ao passo que as restrições de natureza pública podem caber ao Direito Ambiental, Administrativo. Sucede que ora o tombamento pode se comportar como uma servidão ou como uma desapropriação indireta, ocasião na qual o proprietário do bem tombado deverá ser indenizado, ora pode se comportar como uma limitação administrativa, hipótese na qual não caberá indenização ao proprietário do bem tombado.

O tombamento e as restrições impostas à vizinhança da coisa tombada caracterizam-se como limitações administrativas ao uso e gozo da propriedade em função do interesse público de proteção do patrimônio cultural, acoplado a uma obrigação de fazer – a conservação da coisa, não sendo indenizáveis.

A generalidade dos bens não significa que os mesmos não possam ser determináveis quantitativamente no momento em que a administração impõe a limitação, mas sim que o aspecto da generalidade deve ser compreendida como uma classe de bens, uma universalidade. Tal característica justifica a gratuidade da limitação, mesmo porque os benefícios coletivos igualmente atingirão a todos (Castro: 1991).

6.3.5. Efeitos

O tombamento como ato administrativo visa à proteção do interesse público genérico, que é a cultura nacional, manifesta e materializada em coisas móveis ou imóveis, existentes no território nacional e identificada pelo órgão que a lei atribuiu competência para tal. Através do ato administrativo do tombamento, a administração pública insere o bem identificado na classe dos bens culturais, passando a tutelar o interesse público que a coisa detém, sem detrimento das suas relações de direito concernentes ao domínio, criando as seguintes obrigações gerais:

Tabela 1

Obrigação

Proprietário

Obrigação de fazer e de não fazer, conservar a coisa e não lhe causar dano.

Vizinhos do bem tombado

Obrigação de não fazer, não prejudicar a visibilidade e ambiência do bem tombado.

Cidadãos em geral

Obrigação de não fazer, não causar dano ao bem tombado.

Poder Público

Intervenção no bem tombado através de vistoria, vigilância, fiscalização, etc

Vantagens podem ser obtidas a partir do tombamento, tais como obtenção de recursos financeiros, promoção do bem com interesses turísticos, proteção do bem frente às pressões para sua deterioração. Contudo, o principal efeito jurídico do tombamento é transformar em direito os valores culturais, simbólicos contidos na coisa, e, por conseguinte, enfatizar o dever de conservação de bens culturais pelo Poder Público. A finalidade de conservar implica, depois de determinado o que conservar, determinar de que modo faze-lo. Os efeitos jurídicos do tombamento serão, para o caso de bens tombados, um expediente encontrado para realizar a preservação.

As pessoas políticas gozam do direito de preferência em casos de alienação onerosa dos bens tombados. Ainda quanto à alienação, os bens públicos se sujeitam a restrições, igualmente os particulares sofrem limitações à faculdade de dispor do bem tombado, inclusive, tendo que averbar junto aos registros de imóveis transferências de domínios e registrar o tombamento, e comunicar a transferência de bens ao órgão do patrimônio. Face ao proprietário, os efeitos do tombamento são a criação de obrigação de não causar dano ao bem, traduzidos na vedação da destruição, demolição e mutilação; na obrigação de conservar o bem tombado, realizando para tanto as benfeitorias úteis e necessárias, ou mantendo as condições vitais para bens naturais; e da obrigação de não reparar, pintar ou restaurar sem prévia autorização do órgão do patrimônio. Quanto a terceiros, há o dever de reparar o dano causado, bem como restrições à vizinhança do bem tombado, traduzidas em medidas de proteção à visão, a ambiência do bem tombado.

Alguns falam em tombamento mundial, o qual interessaria a todo o mundo, pois se encontraria na esfera jurídica de algum ente político, um país, por exemplo. Em contraposição ao patrimônio mundial, há quem fale em patrimônio Internacional, que por sua vez, interessaria a todo o planeta, e encontrar-se-ia na esfera jurídica de todas nações do planeta enquanto patrimônio comum das nações do globo. Não apropriar, utilizar racionalmente, gestão internacional, repartição eqüitativa dos benefícios seriam requisitos para a configuração desses bens.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Arivaldo Santos de Souza

bacharelando em Direito pela UFBA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Arivaldo Santos. Preservação de territórios sagrados para as religiões de matriz africana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1323, 14 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9490. Acesso em: 4 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos