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Preservação de territórios sagrados para as religiões de matriz africana

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14/02/2007 às 00:00
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7. Considerações finais

Com a adoção das medidas aqui mencionadas espera-se que, a médio-prazo, essas se convertam em mudanças estruturais provocadoras de uma redistribuição espacial dos benefícios que a cidade pode oferecer e, por conseguinte, de uma realocação de poder tendente a garantir a preservação de territórios sagrados para as religiões de matriz africana, em outras palavras, que a igualdade assuma feições materiais e que a vida de nenhum grupo, em nenhuma dimensão, seja o alvo preferencial das mazelas humanas.

Afinal de contas, uma política adequada de planejamento do uso do solo de espaços públicos sagrados, que deve ser perseguida por um imperativo de Justiça Ambiental, é condição para o desenvolvimento das relações simbólicas insertas nesse âmbito cultural. A preservação do patrimônio cultural brasileiro pode se interpor através da garantia das condições materiais e simbólicas de reprodução das religiões de matriz africana, assegurando, pois, a possibilidade de exercer sem embaraços uma das dimensões mais importantes da vida de todo ser humano: a religiosa.

Na tabela abaixo, tentamos esboçar um quadro síntese para a adoção mais adequada de cada instituto mencionado acima, consoante a natureza jurídica do bem a partir da titularidade do domínio pública ou privada.

Tabela 2

Tombamento

Anti-Property Rights

Advocacy Planning

Público

-

X

X

Privado

X

-

-

Reservamos a indicação do Tombamento aos casos de bens privados, conquanto os efeitos do tombamento e as obrigações criadas pelo mesmo, as quais recairão sobre um bem público tombado, em tese, já fariam parte das esferas de atribuições do órgão público, resultando numa mera sobrecarga para os órgãos de patrimônio. Dito de outro modo, não há, em princípio, medida de preservação por parte do Poder Público que não pudesse ser adotada independentemente de ato de tombamento.

Apenas o caráter de visibilidade simbólico-política é assegurado com esse tipo de iniciativa, contudo, não fica assegurada a preservação efetiva do bem. Sendo assim, a preservação que já seria feita pelo particular fica potencializada pela penosa atividade de busca de parceiros, com apenas mais um trunfo, o aval do Poder Público, nem sempre apto e disposto a estender seu chapéu de esmolas a terceiros interessados em preservar bens ambientais culturais.

O Anti-Property Rights e o Advocacy Planning se traduzem em formas mais efetivas de preservação indicadas para Preservação de Patrimônios de domínio titularizado pelo Poder Púbico, no qual o empurra-empurra oriundo da repartição de competências ambientais e culturais concorrente entre os agentes da Administração faz com que os bens ambientais culturais sejam deixadas à míngua indefinidamente, até que alguém resolva tomar uma atitude séria rumo à preservação.

Outras medidas preservacionistas afora as expressamente registradas nos textos legais, afora as enumeradas aqui, podem e devem ser propostas e implementadas a partir do exercício de possibilidades criativas a fim de se garantir a preservação do Patrimônio Cultural de um povo. Dentro desse rol, a restauração, a conservação, a valorização do Patrimônio Cultural, a inclusão de conteúdos de educação patrimonial nos currículos escolares dos diferentes níveis de ensino podem economizar milhões que seriam gastos para restaurar bens degradados.


8. Referências

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BELL, Abraham; PARCHOMOVSKY, Gideon. Of Property and Anti-Property. Disponível em: <www.biu.ac.il/law/unger/wk-papers.html> Acesso em Setembro de 2005.

CASTRO, Sonia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais: o tombamento. 1991. Rio de Janeiro: Renovar.

DIAS, Jussara. Territórios do candomblé: desterritorialização dos terreiros na região metropolitana de Salvador. Salvador: UFBA. 2003. Dissertação de mestrado. Curso de Pós-Graduação em Geografia.

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 4ª edição ampliada. 2003. São Paulo: Saraiva.

HARWOOD, Stacy Anne. Environmental Justice on the Streets - Advocacy Planning as a Tool to Contest Environmental Racism. 2003. Journal of Planning Education and Research, número 23. páginas: 24 à 38

LARAIA, Roque Barros de. Cultura. Um conceito antropológico. 12ª edição. 2001. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13ª edição. 2005. São Paulo: Malheiros.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18ª edição. 2005. São Paulo: Malheiros.

REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural: direito à preservação da memória, ação e identidade do povo brasileiro. 2004. São Paulo: Juarez de Oliveira.

REX, John. Raça e Etnia. 1987. Lisboa: Editorial Estampa, LDA.

RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Tombamento: instrumento de defesa do Patrimônio Cultural. Papel da Ação Civil Pública.

SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Os fundamentos africanos da religiosidade brasileira. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). História do Negro no Brasil, volume 1. O negro na sociedade brasileira: Resistência, participação, contribuição. Brasília: FCP/MinC, 2004".


Notas

01 Ações de salvaguarda de bens culturais imateriais, fazeres (exs.: Paneleiras de Goiabeiras do Espírito Santo, artesanato do Bico de Singeleza das Alagoas) concorrem com o reconhecimento de manifestações (Samba de Roda do Recôncavo Baiano e Círio de Nazaré) como patrimônio cultural imaterial do Brasil para exemplificarem esse fenômeno de inclusão do intangível, do imaterial, das populações e dos seus respectivos saberes no rol dos bens culturais brasileiros.

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02 A denominação terreiro, genericamente atribuída ao interior dos espaços simbólicos, míticos, rituais, sociais desses povos, pode ser substituída por Casa, Ilê, Ashé, Tenda, Salão, Roça.

03 Ao lado dos terreiros poderíamos enumerar uma numerosa lista que se encontra no mesmo patamar de dignidade, porém nos limitaremos à capoeira e ao já tombado acarajé.

04 Ver leis do Município de Salvador de numeração 5.773/2000, 3.591/1985, 3.590/1985, 3.515/1985, as quais dispõem sobre tombamento de terreiros, ou criam áreas de preservação cultural que incidem nos territórios que se localizam terreiros de candomblé.

05 Deve-se compreender insertos nessa categoria, todos aqueles terreiros que, interessados em tombamentos, estejam em franco funcionamento, apresentem elo ancestral com a África, organizem-se socialmente com um referencial étnico, que a sua respectiva figura sacerdotal goze de competência e legitimidade reconhecidas publicamente.

06 A população predominantemente negra do município de Santo Amaro da Purificação na Bahia tem sido alvo de contaminação por metais pesados há décadas sem que providências efetivas sejam tomadas pelos Poderes Públicos, neste período, dezenas de centenas de pessoas têm sido contaminadas fatal ou definitivamente, assim como suas respectivas proles. Não há patrimônio cultural de um povo, sem que o mesmo possa continuar existindo.

07 A referência é feita aos valores de cidadania e dignidade da pessoa humana trazidos no artigo 1º da Constituição Federal.

08 Conferir artigos 5, 23, 24 e 30, respectivamente nos seus incisos, LXXIII, IV, VII, IX, e artigo 216.

09 Refiro-me, por exemplo, a Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas oficiais e particulares.

10 São exemplos categóricos, o Parque São Bartolomeu, o Dique do Tororó e a Lagoa do Abaeté em Salvador; assim como o Parque da Tijuca no Rio de Janeiro.

11 O conhecimento referente às plantas consiste em um simbolismo territorial marcante, tendo, inclusive, uma terminologia particular com categorias etnobotânicas de classificação inerentes a esta forma cultural de apropriação.

12 O caráter dinâmico da cultura foi levado em consideração pelo Decreto 3.551/2000, em cujo período para a reavaliação da validade do registro de bens imateriais no patrimônio brasileiro foi estipulado em dez anos.

13 Dentre formas previstas em nível infraconstitucional podemos enumerar, sem prejuízo de outras, as seguintes: lei 3.924/61, lei 4.845/65, lei 4.771/65, lei 6.938/81, lei 6.513/77.

14 Excelente caminho pode ser trilhado pelo Estatuto da Cidade, contudo limitações técnicas, políticas, de várias naturezas têm impedido a implementação de instrumento potencialmente saudável à preservação.

15 Operação Urbana Consorciada é um instrumento de política urbana trazido pelo Estatuto da Cidade e destinado à valorização ambiental, transformações urbanísticas estruturais e melhorias sociais.

16 Por exemplo, no espaço aéreo de um terreiro em Salvador, foi construída passarela de pedestres sem que ninguém fosse consultado da (im) possibilidade. Não fosse a atuação de um lobby político nada seria feito para determinar a retirada do equipamento urbano. Aliás, assim tem funcionado, o exercício do direito fundamental, e, portanto auto-aplicável, vem apenas com a atuação de pessoas influentes ligadas aos rituais.

17 Na esfera nacional, contudo alguns Estados possuem legislações específicas, é caso baiano e paulista.

18 Estudos e trabalhos técnicos, com mero caráter instrutório, não são parte do processo de tombamento.

19 O artigo 1° do decreto dispõe sobre. ...bens móveis e imóveis....

20 Exemplificando, ação cautelar orientada a sustar atos, enquanto houver coisa litigiosa envolvendo o bem, que possam descaracterizar um bem de valor cultural ainda não protegido.

21 José Eduardo Ramos Rodrigues defende que a discussão em torno da indenizabilidade do tombamento como nota diferenciadora do instituto, que por sua vez, é fruto direto da distinção entre a afetação da exclusividade das faculdades do domínio, ou não, é absolutamente inócua conquanto faz muito tempo que a doutrina européia já adota a tese da propriedade dividida, na qual se vê a distinção entre coisa (suporte físico) e bem (determinada utilidade da coisa). Nesta, sobre uma determinada coisa é possível se estabelecer uma pluralidade de bens, cada um com um objeto de tutela específica.


Abstract: In the present paper, it can see found pioneering words toward preservation of African origins’ cultural goods, from studying constitutional devices related the subject, of symbolic and material conditions required to exercise the constitutional right to religious freedom, and to guarantee the preservation of the cultural brazilian heritage. The hindrances to fight against problems found in this task, such as Environmental Racism, and some feasibilities to defeat the battle are written in the last part of work, in a conclusion with purposeful approach.

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Sobre o autor
Arivaldo Santos de Souza

bacharelando em Direito pela UFBA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Arivaldo Santos. Preservação de territórios sagrados para as religiões de matriz africana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1323, 14 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9490. Acesso em: 25 abr. 2024.

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