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A manutenção do ato administrativo nulo no mundo jurídico

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29/05/2022 às 12:35

Resumo:


  • O ato administrativo nulo é considerado impassível de convalidação no mundo jurídico.

  • O princípio da legalidade no Direito Administrativo é de suma importância, mas deve ser sopesado com outros princípios igualmente relevantes, como segurança jurídica e boa-fé.

  • A manutenção de um ato administrativo nulo no ordenamento jurídico requer um juízo de ponderação entre os princípios em conflito, visando resguardar direitos e interesses de terceiros de boa-fé, sem isentar o agente público da responsabilidade por atos ímprobos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A sanação de vício não necessariamente deverá ser realizada por meio de declaração de invalidade do ato administrativo nulo.

Resumo: O ato administrativo nulo tende a ser considerado impassível de convalidação e manutenção no mundo jurídico. Há um entendimento de primazia do princípio da legalidade em sede de Direito Administrativo. Porém, há outros princípios de igual importância que também devem ser sopesados ao se examinar a pertinência da manutenção do ato administrativo nulo. A segurança jurídica e a boa-fé se cuidam de princípios de índole constitucional que devem sofrer juízo de ponderação juntamente com o princípio da legalidade para fins de analisar se o ato administrativo, mesmo maculado por vício grave, deve ou não ser mantido no ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Ato administrativo; nulo; anulável; princípio da legalidade; segurança jurídica; boa-fé; ponderação de princípios.

Sumário: Introdução. 1. Do ato administrativo. 2. Do princípio da legalidade no âmbito do Direito Administrativo. 3. Dos atos administrativos viciados. 4. Da obrigatoriedade da aplicação do postulado da ponderação entre os princípios da legalidade, da confiança e da boa-fé no exame em concreto do ato administrativo viciado. 5. Da ressalva necessária: dos reflexos no âmbito da improbidade administrativa em razão da manutenção do ato administrativo nulo. Conclusão. Referências.


Introdução

A Administração Pública é regida por princípios com feições próprias, que se prestam a liminar o poder inerente à condução da res publica, sempre com o desiderato de atender ao interesse público.

O princípio da legalidade, em particular, possui especial destaque nessa limitação do poder. Isso porque, na administração da res publica é imperativo que o administrador atue nos exatos termos da lei sob pena de o ato praticado ser considerado maculado.

Justamente por conta da rigidez desse princípio que se entende que qualquer ato administrativo que viole a legalidade tem por desfecho a declaração de sua nulidade/anulabilidade. Seria, em tese, incompatível com o sistema que tem como baluarte um princípio tão rígido cogitar da manutenção de um ato viciado. Contudo, se cuida de uma visão prima facie e que acaba por afastar regras balizares do Direito que também se aplicam na seara da administração pública.

O Direito Administrativo também é informado por princípios gerais do Direito, dentre os quais se incluem e se destacam os princípios da segurança jurídica e da boa-fé. Cuidam-se de princípios com assento constitucional, o que legitima e impõe sua incidência no campo da Administração Pública.

É regra geral do Direito que, havendo conflitos entre princípios, deve-se valer do postulado normativo da ponderação no intuito de verificar no caso concreto se há uma forma de salvaguardar os princípios aparentemente em conflito, impedindo a adoção de um entendimento que importe no total desprezo de um dos princípios em detrimento de outro.

E é por conta da obrigatória aplicação do postulado da ponderação que se evidenciará que um ato administrativo ilegal não deve obrigatoriamente ser declarado nulo, devendo ser observadas as peculiaridades do caso concreto para realizar esse juízo de invalidação.

1. Do ato administrativo.

Não há uma definição uniforme sobre o que seria um ato administrativo. A definição varia de acordo com a ótica sobre a qual é analisado o tema e de acordo com a formação jurídica do doutrinador que se propõe a estudar a matéria[1]. Não obstante, nos interessa no presente estudo a definição de ato administrativo como espécie de ato jurídico em sentido estrito.

Nesse átimo, cabe transcrever, inicialmente, a definição proposta por Hely Lopes Meireles, que traz uma conceituação ampla de ato administrativo, encampando diversos aspectos que usualmente são apontados como imprescindíveis para a adequação apreensão da expressão. Conceitua o ilustre administrativista o ato administrativo como toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria (2003, p. 145).

Não obstante o brilhantismo, alguns aspectos merecem ser acrescentados e destacados. Com efeito, é de se grifar que os efeitos oriundos do ato administrativo são pré-estabelecidos em lei. Isso porque ao administrator público só é dado atuar nos exatos limites da lei, face ao princípio da legalidade.

Outrossim, é de se pontuar que nem todo o ato praticado pela Administração Pública é um ato administrativo, assim como há a possibilidade de um ato administrativo ser praticado por pessoa diversa da Administração Pública, desde que essa pessoa esteja investida em função administrativa que lhe atribua poderes para tanto.

Logo, em resumo, pode-se definir o ato administrativo como o ato jurídico praticado por quem esteja no desempenho da função administrativa, sob um regime jurídico especial de Direito Administrativo, cujos efeitos jurídicos sejam legalmente preestabelecidos. Essa definição aparentemente sumarizada de ato administrativo, proposta por Rafael Maffini[2], condensa o que há de essencial para a apreensão do tema.

2. Do princípio da legalidade no âmbito do Direito Administrativo.

É regra comezinha do direito que o princípio da legalidade, na seara do Direito Administrativo, possui contornos próprios que lhe garantem certa autonomia em relação ao princípio da legalidade geral.

Com efeito, se na administração da coisa particular é viável que se pratique qualquer ato não proibido pela lei, na administração pública as rédeas da legalidade são justas: ao administrador somente é dado atuar nos exatos limites dispostos na lei, sendo restrita sua autonomia. Significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal (MEIRELLES, 2003, p. 86).

Daí porque o princípio da legalidade, no âmbito do Direito Administrativo, possui especial destaque. Ao agir o agente público em descompasso com a lei, contra legem ou praeter legem, o ato praticado será considerado ilegal e, por conseguinte, nulo, com todos os nefastos reflexos legais daí decorrentes.

Cuida-se de princípio de suma importância para a própria manutenção do Estado Democrático do Direito, tendo em vista que ele tem o condão de combater o poder arbitrário do Estado, na medida em que os conflitos devem ser resolvidos pela lei e não por meio da força (CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 40).

3. Dos atos administrativos viciados.

A Administração Pública, por conduzir seu agir nos estritos termos da lei, possui a obrigação de anular os atos administrativos viciados por ilegalidade ou ilegitimidade por expressa disposição legal (art. 2º, parágrafo único, inc. I, da Lei n. 9.784/99). Aliás, a própria atuação do administrador público é regida pelo princípio da autotutela, o que lhe obriga a rever os atos tomados por ilegalidade.

É de se destacar, por oportuno, que as definições de ilegalidade e ilegitimidade que podem redundar na invalidação do ato administrativo não são restritas à mera violação direta do texto da lei. Cuida-se de conceito amplo que engloba não apenas a afronta direta, como também o abuso pelo excesso, desvio de poder, violação de princípios e todo o arcabouço normativo que rege a Administração Pública. Em qualquer dessas hipóteses, quer ocorra atentado flagrante à norma jurídica, quer ocorra inobservância velada dos princípios do Direito, o ato administrativo padece de vício de ilegitimidade e se torna passível de invalidação pela própria Administração ou pelo Judiciário, por meio de anulação (MEIRELLES, p. 198).

A doutrina, de forma geral, leciona ser viável a convalidação de atos administrativos ilegais que padeçam de anulabilidade. Isto é, atos cujo vício seja de somenos importância, consistente em mácula passível de correção por ato posterior. Por isso, consideram-se convalidáveis os atos administrativos que foram praticados com inobservância das regras de competência (desde que não se trate de competência exclusiva[3]) ou que não observaram alguma formalidade na execução e constituição do ato, desde que ela não fosse da essência dele. Por outro lado, seriam defesos à convalidação os atos administrativos nulos, isto é, que possuam vício relativo aos elementos da finalidade, motivo, objeto ou conteúdo.

Ocorre que deve ser superada essa visão formalista e estagnada acerca da impossibilidade de manutenção de atos administrativos nulos no mundo jurídico. Embora essa divisão rígida funcione no âmbito acadêmico e sirva para apreender a problemática de forma global, ela não garante uma resposta certa para a resolução de todas as hipóteses que podem ser constatadas no mundo fenomênico.

Outrossim, não se pode passar despercebido que o ato administrativo nulo produzirá efeitos jurídicos concretos até que sobrevenha a declaração de sua ilegalidade. É que os princípios que regem a Administração Pública fazem presumir a idoneidade do ato exarado, bem como gera nos cidadãos uma expectativa legítima de conduta, ainda mais quando o ato administrativo lhes é benéfico. Ricardo Marcondes Martins bem pontua que todo o ato viciado é uma norma existente no ordenamento jurídico, tem um conteúdo e uma forma. Além disso, tem um objeto existente no mundo fenomênico, um mínimo de eficácia social, seu conteúdo não importa em intolerável injustiça e seu editor presenta a Administração Pública (2008, p. 261). Portanto, os reflexos materiais não podem ser simplesmente desprezados quando do exame da legalidade e legitimidade do ato administrativo, particularmente por parte do Poder Judiciário.

4. Da obrigatoriedade da aplicação do postulado da ponderação entre os princípios da legalidade, da confiança e da boa-fé no exame em concreto do ato administrativo viciado.

Como já foi escrito, o administrator público está limitado pela letra lei. É compreensível, portanto, sua atuação mais rígida no tocante ao autocontrole (autotutela) de legalidade e legitimidade dos atos administrativos. Assim deve ser, até mesmo para evitar casuísmos e subjetivismos, o que contrariaria os princípios que devem reger a própria Administração Pública (princípios da isonomia e da impessoalidade).

Ao Poder Judiciário, por outro lado, não é dado adotar postura exacerbadamente positivista, quanto mais quando constatar o conflito aparente de princípios aplicáveis à espécie.

É assente na doutrina constitucional que, quando há atrito entre princípios constitucionais, não se deve sacrificar um em detrimento de outro. Jorge Miranda (1990, p. 228-229) ensina que a contradição dos princípios deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios; deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade; os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto explicitamente quanto implicitamente, a fim de colher seu verdadeiro significado. Outrossim, mesmo persistindo o aparente conflito com essas regras de interpretação, deve ser invocado o postulado normativo da ponderação e encontrar, na medida do possível, uma solução que equalize e viabilize a convivência harmônica desses princípios[4].

Ademais, deve ser abandona a vertente doutrinária que eleva o princípio da legalidade à dogma jurídico no âmbito da Administração Pública. Malgrado seja deveras relevante, por vezes, ele terá que ceder e se adaptar ao caso concreto, modo a garantir a convivência com outros princípios de igual grandeza. O professor Almiro de Couto e Silva bem apreendeu a problemática envolvendo a aplicação indiscriminada do princípio da legalidade. Constatou o ilustre jurista que a invariável aplicação do princípio da legalidade da Administração Pública deixaria os administrados, em numerosíssimas situações, atônitos, intranquilos e até mesmo indignados pela conduta do Estado, se a este fosse dado, sempre, invalidar seus próprios atos. Prossegue destacando que apenas no começo dos anos 2000 é que passou a considerar-se que o princípio da legalidade da Administração Pública, até então tido como incontrastável, encontrava limites na sua aplicação, precisamente porque se mostrava indispensável resguardar, em certas hipóteses, como interesse público prevalecente, a confiança dos indivíduos em que os atos do Poder Público, que lhes dizem respeito e outorgam vantagens, são atos regulares, praticados com a observância das leis (SILVA, 2003, p. 14-15).

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Portanto, o princípio da legalidade deve ser sopesado com os princípios da segurança jurídica e da boa-fé (e os deveres anexos a ela atrelados[5]) para, após um juízo de ponderação, verificar se a declaração de nulidade do ato administrativo é ou não a melhor solução para colmatar os princípios em debate.

Veja-se que, em dados casos, a observância indiscriminada da legalidade, sem sopesar os reflexos da declaração de invalidade do ato, pode gerar uma situação ainda mais gravosa do que a se verificaria caso se mantivesse o ato nulo no mundo dos fatos. Tal postura acabaria por malferir situações jurídicas postas e sedimentadas no tempo, podendo atingir indivíduos que sequer participaram ou deram causa à invalidade do ato impugnado. O Superior Tribunal de Justiça, aliás, já se deparou com situação similar, concluindo pela impossibilidade de se declarar a ilegalidade do ato quando tal fato importar em danos ainda mais drásticos[6].

Além disso, é de ser considerado que, contrariamente ao que pode parecer num exame apressado do tema, a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegal não é a única maneira de se corrigir o vício constatado. Há formas outras de corrigir a ilegalidade. Formas essas preferíveis quando, além de espancarem a mácula, salvaguardam os princípios da segurança jurídica e da boa-fé, criando um ambiente harmônico de convivência entre os princípios. A ilustre doutrinadora Weida Zancaner (2008, p. 64-65), ao se debruçar sobre o tema, conclui que se poderia supor que o princípio da legalidade imporia sempre à Administração o dever de invalidar seus atos eivados de vícios, para restaurar a ordem jurídica por ela mesma ferida. A suposição, todavia, não procede, pois a restauração da ordem jurídica tanto se faz pela fulminação de um ato viciado quanto pela correção de seu vício. Em uma e outra hipóteses a legalidade se recompõe. O princípio da legalidade visa a que a ordem jurídica seja restaurada, mas não estabelece que a ordem jurídica deva ser restaurada pela extinção do ato inválido.

No mesmo sentido são as lições do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello. Segundo ele, sendo viável a sanação do vício sem a declaração de nulidade do ato, preservando-se as situações consolidadas e os direitos dos terceiros de boa-fé, ela é preferível por atender de modo mais extenso os interesses da Administração Pública e da própria Justiça. As asserções feitas estribam-se nos seguintes fundamentos. Dado o princípio da legalidade, fundamentalíssimo para o Direito Administrativo, a Administração não pode conviver com relações jurídicas formadas ilicitamente. Donde, é dever seu recompor a legalidade ferida. Ora, tanto se recompõe a legalidade fulminando um ato viciado, quanto convalidando-o. É de notar que esta última providência tem, ainda, em seu abono o princípio da segurança jurídica, cujo relevo é desnecessário encarecer. A decadência e a prescrição demonstram a importância que o Direito lhe atribui. Acresce que também o princípio da boa-fé sobreposse ante atos administrativos, já que gozam de presunção de legitimidade concorre em prol da convalidação, para evitar gravames ao administrado de boa-fé (MELLO, 2003, p. 469).

Aduza-se que esse entendimento foi encampado pelo Supremo Tribunal Federal. Por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança n. 26.117, ponderando os valores em espeque, concluiu que a anulação de um ato administrativo de forma tardia, após a consolidação de uma situação de fato e de direito, ofende o princípio da segurança jurídica, de modo que a situação deve ser preservada[7].

Aduza-se que essa ponderação entre os princípios da segurança jurídica e da boa-fé, de um lado, e do princípio da legalidade, de outro, com prevalência dos primeiros, não se cuida de solução doméstica. Trata-se de solução há muito encampada por diversos países europeus. A título de exemplo, Alemanha, França, Itália e Portugal adotam como critério objetivo para fins de convalidação do ato administrativo ilegal o decurso de prazo razoável de tempo e a boa-fé dos beneficiários, segundo informa o professor Almiro de Couto e Silva.[8]

Logo, deve ser fixado como premissa que a modificação de um ato administrativo maculado por ilegalidade (nulo ou anulável) deve ser limitada pelo interesse público e, em especial, pela (i) preservação da boa-fé objetiva, pela (ii) garantia da prevalência da segurança jurídica e pelo (iii) resguardo dos direitos de terceiros. Ou seja, ainda que nulo o ato administrativo, ele não seria suscetível de declaração de invalidade caso tal ato irradiasse benefício a terceiros que estejam em situação de boa-fé, e que tal situação perpetuasse por lapso temporal considerável. O princípio da legalidade, nessas hipóteses, deve ceder lugar aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, reforçando os anseios depositados por todos cidadãos perante a Administração Pública e na presunção de regularidade dos atos por ela praticados.

De forma mais elucidativa, cabe transcrever as ponderações exaradas por Márcio Nunes Aranha (1997, p. 66):

A necessidade da manutenção dessa confiança do administrado na legalidade dos atos emanados pelo Poder Público fornece a importância de um aspecto da segurança jurídica evidenciado na preservação de um ato, mesmo que originalmente viciado de ilegalidade, preservação essa em respeito à inércia daquele Poder. Surge, então, um segundo elemento, que, somado à boa-fé, impõe a convalidação do ato nulo, qual seja, o do transcurso razoável de tempo. Já dizia Bobbio que o tempo sana as feridas da história, e é com base nisso que a segurança jurídica, a despeito da legalidade estrita, triunfa para salvaguardar os atos administrativos eivados de vícios, vícios esses originais ou adquiridos posteriormente, e que se consolidaram em uma sua perpetuação temporal pacífica. Preenchidas as condições de boa-fé do particular e do razoável transcurso de tempo, torna-se imperativa a preservação do ato administrativo para salvaguarda da segurança jurídica. Intenta-se, pois, um esforço, nunca demais, de relembrar que, no direito, a aplicação rígida de um princípio, muitas vezes, leva a injustiças, e que, nos casos de complacência do Poder Público, ou mesmo de entendimento seu modificado, há outro princípio a ser levado em conta para que não persista a injustiça em nome de uma pretensa legalidade. Tal princípio é a manifestação concreta da segurança jurídica, razão fundamental do direito, que, sem desprezo do perigo de supervalorização da autoafirmação, detém seu significado em preservar, manter, salvar, dar sobrevida àquilo que se perpetuou no tempo pelo simples fato deste, auxiliado pela inexigibilidade de comportamento diverso boa-fé , galgar posição digna de proteção jurídica.

Pertinente ao que se consideraria lapso temporal razoável, para afastar, na medida do possível, subjetivismos, é de se adotar, por analogia, a regra insculpida no art. 54 da Lei Federal n. 9.784/99, que trata justamente da possibilidade de a Administração Pública revisitar seus atos. Referida norma instituiu um prazo decadencial de 5 (cinco) anos para a anulação de atos administrativos pela própria Administração, salvo se comprovada a má-fé, quando não haveria prazo para a desconstituição do ato. A regra, por ser clara, objetiva e por contar com previsão legal, deve irradiar seus efeitos no campo das nulidades dos atos administrativos sem maiores intempéries.

5. Da ressalva necessária: dos reflexos no âmbito da improbidade administrativa em razão da manutenção do ato administrativo nulo.

A prática de um ato administrativo nulo por ilegalidade lato sensu ou ilegitimidade, regra geral, resultará na prática de um ato ímprobo, seja por violação de princípios, seja por ensejar dano ao erário ou enriquecimento ilícito, consoante artigos 11, 10 e 9º, da Lei n. 8.429/92. E, como tal, o ato deve ser punido, ainda que se conclua pela manutenção do ato administrativo viciado no mundo jurídico.

Como restou esclarecido, a manutenção do ato maculado deriva de um juízo de ponderação de valores e princípios voltados à proteção do terceiro que suporta (suportou) os efeitos do ato administrativo. Além disso, se exige inclusive a boa-fé desse terceiro para que essa convalidação forçada seja-lhe aplicável.

Essa ponderação, de forma alguma, tem ou poderá ter a qualidade de irradiar efeitos benéficos ao agente público, particularmente o de isentá-lo da responsabilidade civil e administrativa decorrente da edição desse ato que não atendeu aos ditames legais. Conclusão em contrário engendraria a subversão do sistema de ponderação, afora acabar por malferir outros princípios constitucionais, como e principalmente o da probidade administrativa.

É bem verdade que isso não quer dizer que a manutenção de um ato administrativo viciado não irradiará qualquer efeito na seara do agente ímprobo. Há reflexos orbitais que podem, sim, interferir na esfera de responsabilidade do agente público e que deverão ser observados justamente para garantir a harmonia de todo o sistema de regras e princípios do ordenamento jurídico. Um exemplo pode elucidar com maior riqueza a conclusão. Determinado candidato à reeleição, visando angariar ilegítimo apoio político da classe de professores, edita norma conferindo aos professores com especialização um acréscimo remuneratório, no período que antecede 60 dias o pleito eleitoral. A prática é vedada expressamente pela lei das eleições (art. 73, inc. V, da Lei n. 9.504/97), configurando ato de improbidade administrativa por violação a princípios (§ 7º do art. 73 da Lei n. 9.504/97). Ajuizada ação de improbidade administrativa pelo Ministério Público, sobrevém sentença de parcial procedência, reconhecendo-se a ilegalidade do ato, mas determinando a manutenção, ex tunc, do ato viciado após juízo de ponderação. Nesse caso, é evidente que o agente ímprobo deverá responder pela prática de ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 12, III, da Lei n. 8.429/92. Todavia, considerando a manutenção do ato nulo com efeitos ex tunc, seria inviável condenar o agente ímprobo a reparar o dano material, em tese, suportado pelo município. Ao concluir pela manutenção do ato, o valor adicional pago aos professores com especialização não importou em prejuízo ao erário uma vez que os serviços foram prestados e se reconheceu por legítimo o pagamento desse acréscimo patrimonial. Conclusão em sentido contrário redundaria em enriquecimento ilícito do município. Outrossim, resultaria em uma condenação ad eternum do agente público, que apenas cessaria com o falecimento dos professores quando deixariam de receber o adicional. Ambas as hipóteses são impensáveis.

Em resumo, conquanto a manutenção do ato administrativo nulo no mundo jurídico, após juízo de ponderação, não importe em irresponsabilidade civil e administrativa do agente ímprobo, deve ser atendado que alguns aspectos dessa manutenção podem irradiar efeitos orbitais ou reflexos na penalização do agente ímprobo, o que deverá ser analisado casuisticamente.

Conclusão

O princípio da legalidade tem especial destaque no âmbito da Administração Pública não podendo ser desconsiderado pelo agente público e muito menos pelo Poder Judiciário.

É de ser realizada, todavia, uma leitura constitucional do direito contemporâneo. A Constituição Federal, afora o princípio da legalidade, garante em seu bojo a tutela de outros princípios de igual hierarquia como o da segurança jurídica e o da boa-fé. Havendo conflitos entre princípios constitucionais, é regra comezinha que a solução do litígio se resolva no campo da ponderação e não na simples escolha de um princípio em detrimento de todos os demais.

Se o princípio da legalidade é deveras relevante para a Administração Pública, jamais se deve desprezar que a relação público-privada existente entre a administração e o cidadão é regida pelos princípios da confiança depositada na validade e legitimidade dos atos administrativos, na estabilidade das realizações postas e criadas, além dos princípios anexos à boa-fé, que servem de baliza para toda a relação jurídica, desde o seu nascedouro até depois do seu fim.

Nessa quadra, ainda que viciado um ato administrativo por vício grave, é impositivo que o julgador se atente para as peculiaridades do caso concreto e, por meio de ponderação, avalie se a manutenção do um ato maculado não será mais benéfica para todos aqueles por ele atingidos, harmonizando os princípios e direitos em conflito. A sanação do vício não necessariamente deverá ser realizada por meio de declaração de invalidade do ato administrativo nulo.

Por fim, a manutenção de um ato administrativo viciado no mundo jurídico de modo algum equivale a isentar o agente público da responsabilidade pela prática de um ato, em tese, ímprobo. A manutenção de um ato viciado serve para resguardar direitos e interesses de terceiros de boa-fé, nos quais, logicamente, não se inclui o agente considerado ímprobo. Não obstante, essa permanência do ato pode refletir, secundariamente, no âmbito da responsabilidade civil e administrativa, podendo, inclusive, reduzir penalidades ou obstar que uma ou outra espécie de pena seja aplicada, o que deverá ser examinado em cada caso concreto.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ECHE, Luís Mauro Lindenmeyer. A manutenção do ato administrativo nulo no mundo jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6906, 29 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94943. Acesso em: 21 dez. 2024.

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