8. DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO: TÉCNICA DE AFASTAMENTO DE ENTENDIMENTO QUE VIOLE A UNIDADE INTEGRALIZADORA DO TEXTO DA LEI MAIOR
Hans Kelsen, ao defender a Teoria Pura do Direito como fonte taxativa e positivada, dispensando tudo aquilo que se apresentasse contrário à norma fundamental hipotética, baseou-se no dever-ser e desprezou os juízos axiológicos, rejeitando a ideia jusnaturalista e combatendo a metafísica, compreendendo o Direito como uma estrutura normativa.
Essa abordagem é relevante neste trabalho, pois, ao defender sua tese — supostamente alterada pelas diversas situações em que a norma, por si só, não é suficiente para abarcar todo o processo evolutivo da sociedade —, Kelsen elaborou a famosa pirâmide normativa, na qual a Constituição ocupa o topo do vértice, devendo ser respeitada por todas as normas infraconstitucionais.
Embora o modelo da pirâmide kelseniana seja adotado pelo direito brasileiro, sabe-se que todo e qualquer conteúdo jurídico deve ser interpretado à luz do espírito da Constituição, com vistas a conformá-lo ao caso concreto. Dessa forma, o STF utiliza a técnica da interpretação conforme para determinar qual interpretação se aproxima mais do caso concreto, afastando aquelas que não se coadunam com a realidade política, jurídica, social, cultural e protetiva dos direitos fundamentais.
Percebe-se, assim, que os direitos administrativo e constitucional reservam-se, teoricamente, à estruturação do Estado, sendo que os Poderes possuem autonomia e independência temperadas, no sentido de que a regra é a não invasão de um sobre o outro. Todavia, há inúmeras hipóteses permissivas, dado o exercício da função típica de cada um deles e as brechas que se abrem com determinados entendimentos, permissa venia.
Nesse sentido, o Poder Executivo fixa orçamentos, o Poder Legislativo os aprova e fiscaliza por meio do Tribunal de Contas, e o Poder Judiciário busca a conformação dessas leis ao ordenamento jurídico, formando entendimentos jurisprudenciais.
Pois bem.
Ao fixar a Tese de Repercussão Geral no Tema 485, percebe-se nitidamente que há uma regra e uma exceção, ambas balizadas na interpretação do caso concreto, de modo a garantir a unicidade da Constituição. Assim, a regra consiste na não intromissão do Poder Judiciário nas questões de concurso público (entendimentos adotados pelo Poder Executivo), pois a legislação conferiu ao Administrador a prerrogativa de deliberar sobre o mérito, atuando, nesse contexto, como banca examinadora de concurso público.
Todavia, embora a regra geral seja a não intervenção, esse critério deve ser analisado percucientemente em cada caso concreto. Salvo melhor juízo, quando a interpretação adotada não se conforma ao texto constitucional, o próprio Tema 485 deve comportar a exceção, ou seja, a preponderância interventiva do Poder Judiciário.
Isso se torna ainda mais evidente quando se está diante de um caso abusivo, absurdo e gritante, em que não restam dúvidas de que a interpretação conforme a Constituição deve ser aplicada para afastar a impossibilidade de intromissão do Judiciário.
CONCLUSÕES
Concluímos, assim, que a aplicação da exceção prevista no Tema 485, no caso da questão debatida — que alterou significativamente a classificação no certame —, é medida que se impõe, pois a decisão fere todo o ordenamento jurídico e quase o alfabeto inteiro, senão vejamos:
Não existe qualquer tese jurídica, texto normativo, trabalho científico, jurisprudência ou doutrina que limite o legislador ordinário na fixação de restrições à liberdade de locomoção no Brasil.
A liberdade de locomoção, na Carta de 1988, é uma norma de eficácia contida e passível de restrição, sem que isso caracterize ofensa ao texto constitucional, dado que os direitos fundamentais não são absolutos.
Ao adotar o entendimento de que a elaboração de restrição à liberdade de locomoção é incompatível com a Constituição, a banca examinadora ofende a soberania nacional, o Poder Legislativo, a moralidade, a legalidade e diversos outros princípios norteadores do direito.
O entendimento da banca também viola o texto literal dos arts. 5º, inciso XV; 37, incisos I e II; e 150, inciso V, todos da Constituição Federal de 1988.
Tal interpretação contraria diversos dispositivos da legislação tributária, consumerista, de trânsito, marítima e aeronáutica, no que diz respeito às limitações impostas por essas normas sobre a liberdade irrestrita de pessoas, bens e serviços.
O entendimento adotado pela banca permite que, em conjunto com o Poder Executivo, seja feita a manipulação da lista de classificados, escolhendo arbitrariamente candidatos. Isso ocorre porque a banca impõe uma interpretação de questão contrária a tudo o que o candidato mais preparado sabe e estudou para respondê-la, retirando a meritocracia por meio de um procedimento notoriamente duvidoso.
As bancas examinadoras faturam milhões de reais por ano para legitimar candidatos na Administração Pública sem a devida preparação, muitas vezes por meio de "arrumadinhos" com gestores, utilizando-se da dispensa de licitação nos moldes da Lei nº 14.133/21.
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Uma questão cujo entendimento é inconstitucional e ilegal tende a exigir do candidato um conhecimento que vai além do aspecto cognitivo, baseando-se na necessidade de "adivinhar" o que a banca pretende como resposta correta, sem qualquer respaldo jurídico, seja para considerá-la certa ou errada, o que transforma a avaliação em um jogo de sorte e azar, em prejuízo da preparação efetiva do concurseiro.
Há legitimação de médicos, procuradores, auditores, professores, psicólogos, administradores e outros profissionais com base em provas mal elaboradas e duvidosas, com indícios de manipulação de resultados.
A adoção de critérios desarrazoados para manipulação da lista de aprovados em certames públicos prejudica o interesse público, pois seleciona candidatos menos preparados para o exercício do cargo e, consequentemente, compromete a qualidade da prestação dos serviços públicos.
A própria dispensa de licitação nos certames ora debatidos, fundamentada na Lei de Licitações, já demonstra, por si só, a existência de contratação direta, desconsiderando os limites estabelecidos para as modalidades de concorrência ou tomada de preços. Nenhuma banca examinadora detém exclusividade na aplicação de provas de concurso público.
Entendimentos como o adotado na questão 8 da prova para procurador do município de Santa Cruz do Capibaribe podem ter legitimado candidatos que responderam conforme a expectativa da banca, afirmando que "o estabelecimento de restrições à locomoção no território nacional é medida incompatível com a Constituição Federal". Tal situação não pode ser aceita em detrimento daqueles que, teoricamente, acertaram a questão, mas cujas respostas não foram consideradas corretas, enquanto o Judiciário se abstém de analisar o mérito.
No âmbito das contratações diretas por dispensa de licitação, surgem diversas irregularidades, como é o caso de certames em que há vagas reservadas para pessoas com deficiência, mas apenas um candidato comparece à prova e, posteriormente, é classificado e nomeado. Tal situação não pode ser considerada um concurso público, mas sim uma contratação direta disfarçada.
Há também o registro de concursos em que 28 candidatos obtiveram nota máxima na prova para o cargo de procurador, evidenciando uma nítida vazão do gabarito ou um nível de facilidade incompatível com a complexidade esperada para o cargo. O cargo, nesse caso, foi destinado ao candidato com maior idade, desconsiderando qualquer critério de meritocracia.
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Com base no entendimento firmado pelo Tema 485 do STF, as bancas examinadoras praticam fraudes grotescas, ululantes e ridículas, como é o caso de nunca anular ou alterar qualquer gabarito de prova para algum dos cargos. Isso significa que nenhum recurso é acolhido, demonstrando prepotência e inflexibilidade, já que é certo que nenhuma banca detém conhecimento absoluto sobre todas as matérias e profissões. Em outros casos, as bancas negam ou acolhem recursos sem qualquer fundamentação ou publicidade dos motivos determinantes, o que compromete a lisura e a transparência do processo seletivo.
O parâmetro estabelecido pelo Tema 485 do STF confere às bancas uma margem alargada para a prática de corrupção, uma vez que essa suposta discricionariedade pode ou não existir, frequentemente resultando na violação dos princípios da moralidade, legalidade e eficiência (art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988).
A soberania conferida à banca examinadora, atuando em nome do Poder Executivo, não pode ser utilizada como instrumento para fragilizar o ordenamento jurídico, pois essa liberdade não autoriza a transgressão do mérito administrativo nem pode servir como escudo para práticas ilegais.
O juízo discricionário somente se inaugura a partir da vinculação à lei, ou seja, somente um poder vinculado pode permitir uma margem discricionária ao administrador. Isso decorre do princípio da legalidade, que prevê os limites dentro dos quais pode haver escolha administrativa. Desse modo, não há qualquer base jurídica vinculante que permita à banca considerar correta a afirmação de que a restrição à liberdade de locomoção é incompatível com a Constituição. Assim, esse juízo não pode ser considerado discricionário, pois lhe falta o elemento vinculante que permitiria uma escolha fundamentada. Afinal, não há outra interpretação possível no ordenamento jurídico que afaste a possibilidade de restrição à liberdade de locomoção e sua compatibilidade com o texto constitucional.
Por fim, nenhuma banca examinadora, salvo melhor juízo, pode deter soberania a ponto de ferir todo o ordenamento jurídico, utilizando-se da regra do Tema 485 para impedir que o Poder Judiciário exerça a interpretação conforme a Constituição e adentre ao mérito da questão.
Em diversos casos concretos, deve-se aplicar a exceção prevista no próprio Tema 485, qual seja, permitir a intervenção judicial nos casos de flagrante inconstitucionalidade e/ou ilegalidade. Isso se torna ainda mais necessário quando o entendimento adotado é evidentemente inconstitucional, ilegal, desarrazoado, desproporcional, imoral e contrário a todo o ordenamento jurídico, doutrinário e jurisprudencial.
É exatamente esse o caso da questão debatida, que exemplifica a necessidade de aplicação da exceção à restrição imposta pela regra, assegurando a correta interpretação da norma e a preservação da ordem jurídica.