O estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro no contexto da pandemia do covid-19

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3. O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DO SISTEMA CARCERÁRIO

Quando se é estudado sobre o sistema carcerário brasileiro, logo vem à mente superlotação e insalubridade, visto que é uma realidade de conhecimento geral. Porém, ainda que tenham dispositivos regulamentadores que tratam acerca da integridade física e moral dos apenados, na prática este quesito não vem sendo exercido da forma como deveria.

Assim, duas das principais situações que destacam preponderantemente para deslegitimidade do sistema prisional são: a superlotação e a insalubridade. Dessa forma, foi necessário o ativismo judicial para declaração do estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, visto que por anos esse contexto continua o mesmo e, vem só piorando.

Desse modo, a primeira decisão acerca da configuração do estado de coisas inconstitucionais, deu-se na Corte Constitucional Colombiana proferida em 1997 (Sentencia de Unificación SU 559), em demanda promovida por professores com seus direitos previdenciários violados por autoridades públicas.

Para melhor entendimento do que vem a configurar o estado de coisas inconstitucionais tem-se que,

A ideia de omissão inconstitucional relacionada a falhas estruturais, a proposta volta-se a situação particular de omissão estatal que implica violação massiva e contínua de direitos fundamentais. Para proteger a dimensão objetiva desses direitos, a Corte Constitucional colombiana acabou tomando medida extrema: reconhecer a vigência de um ECI. Trata-se de decisão que busca conduzir o Estado a observar a dignidade da pessoa humana e as garantias dos direitos fundamentais uma vez que esteja em curso graves violações a esses direitos por omissão dos poderes públicos. O juiz constitucional depara-se com uma realidade social necessitada de transformação urgente e, ao mesmo tempo, com falhas estruturais e impasses políticos que implicam, além do estado inconstitucional em si mesmo, a improbabilidade de o governo superar esse estágio de coisas contrário ao sistema de direitos fundamentais, sem que o seja a partir de uma forte e ampla intervenção judicial (CAMPOS, 2019, P. 102).

Para que haja o reconhecimento de violações existentes nos presídios e a consequente declaração, só um fato isolado não é suficiente, mas uma série de ações e omissões por parte do Poder Público, o qual deveria prestar proteção e zelo para com os apenados. Logo, para complementar o conceito de ECI, tem-se a seguinte definição,

O próprio nome da tese (Estado de Coisas Inconstitucional ECI) é tão abrangente que é difícil combatê-la. Em um país continental, presidencialista, em que os poderes Executivo e Legislativo vivem às turras e as tensões tornam o Judiciário cada dia mais forte, nada melhor do que uma tese que ponha a cereja no bolo, vitaminando o ativismo, cujo conceito e sua diferença com a judicialização estão desenvolvidos em vários lugares. A origem do ECI é a Corte Constitucional da Colômbia, cujas decisões não serão debatidas aqui. Não me parece que a questão colombiana seja aplicável no Brasil. Aliás, a Colômbia continua tendo muitos estados de coisas inconstitucionais e já há alguns anos não aplica a tese (STRECK, 2015, p.1)

O Supremo Tribunal Federal ao julgar em sede preliminar sobre o estado de coisas inconstitucionais teve um grande significado em resolver um problema latente. Um dos pontos marcantes foi a seguinte justificativa,

O Min. Marco Aurélio, relator da ação, iniciou seu voto afirmando que o STF teria essa missão de defender as minorias. E, para comprovar que isso de fato era exigido no caso enfrentado, conferiu atenção especial ao contexto social e histórico da situação das penitenciárias, a fim de embasar a tese de que existe uma violação massiva de direitos fundamentais. Foram citados estudos estatísticos de diversas instituições indicando o déficit gigantesco de vagas no sistema presidiário, com uma população carcerária dentre as maiores do mundo e sofrendo em eterna degradação nas instalações inadequadas. Haveria ainda, falta de agentes penitenciários, baixa remuneração aos já contratados, constantes massacres e rebeliões, num quadro que se generalizou por toda a Federação (PETIZ, 2021, p. 18).

Dessa forma, conclui-se que para configuração do Estado de Coisas Inconstitucionais é necessária a existência de reiteradas violações aos preceitos fundamentais, com a respectiva omissão do Estado frente ao descaso.


4. Ambiente insalubre e suas consequências

Como já mencionado, é inegável as condições insalubres e higiênicas as quais se encontram as unidades prisionais e, por conta disso, facilitam e potencializam a propagação e contaminação de qualquer doença infecciosa. Por haver essa facilidade, os apenados e os servidores que se encontram nessas unidades são considerados mais vulneráveis às contaminações.

Assim, com a chegada da pandemia do Covid 19 e, da sua rápida proliferação, consequentemente acaba por afetar mais ainda a população carcerária, sendo necessário tanto combate pleno, quanto eficaz no interior dos presídios. Segundo Sáchez (2020, p. 2), afirma que [...] no contexto de superlotação das prisões, a estreia vigilância para identificar rapidamente a introdução do vírus nas unidades prisionais e o pronto bloqueio de transmissão são fundamentais para evitar a disseminação massiva [...].

Nesse ínterim, foi publicado na Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense o seguinte argumento,

Desde a declaração da Organização Mundial da Saúde sobre a situação pandêmica provocada pelo novo Coronavírus, toda a sociedade civil e judiciária brasileira vem se debruçando sobre o tema, seja traçando ações de prevenção ao contágio, seja disputando nos tribunais decisões favoráveis que promovam a proteção à saúde e à vida da população. (NERI, 2020, p. 4).

Diante de tantos casos de óbitos e filas de espera pelas UTIs que lotam hospitais, somados com a precariedade do sistema prisional, a decisão sobre a ADPF 347 não poderia ser diferente ao tratar que,

DECISÃO ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL TUTELA PROVISÓRIA INCIDENTAL TERCEIRO INTERESSADO. PRESÍDIOS E PENITENCIÁRIAS ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL VÍRUS COVID19 (CORONAVÍRUS) PROVIDÊNCIAS URGÊNCIA. Postula seja implementada liminar para determinar-se que os Juízos competentes adotem cautela no tocante à população carcerária, observada a orientação do Ministério da Saúde de segregação por catorze dias, bem assim analisem a possibilidade de deferimento de: a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo 1º da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003; b) regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo COVID-19; c) regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 Estatuto da Primeira Infância; d) regime domiciliar a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça; e) substituição da prisão provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça; f) medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça; g) progressão de pena a quem, atendido o critério temporal, aguarda exame criminológico; h) progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto.

(Supremo Tribunal Federal, Pleno. ADPF nº 347 MC/DF. Rel.: Min. Marco Aurélio. DJ. 09/09/2015).

Medidas de precauções foram recomendadas e, entre elas está o isolamento social. Mas, como isolar pessoas quando o problema é o inverso e, há uma superlotação nos presídios? Com esse impasse é inegável que haverá aumento de infectados, óbitos e reinfecção. Agravando, isto é, deixando mais doente um local em que já persistem tantas mazelas.

Dessa forma, o objetivo deste artigo é justamente explanar até que ponto os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais estão sendo respeitados e, por conseguinte verificar as constantes violações a essas normas que estão positivadas na teoria que não tem sua efetiva aplicabilidade na prática.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo deu-se através do interesse em estudar mais sobre o sistema prisional e, as mazelas que atingem diretamente os apenados. Com a chegada da pandemia do Covid 19 a situação nos presídios ficou mais difícil, exigindo uma atenção mais especial, principalmente para aqueles apenados que se encontram vulneráveis, devido a situação de risco para a doença.

Ainda que esse tema venha sendo debatido ao longo dos anos, é um tema que sempre merece atenção e estudo, já que o histórico do sistema carcerário brasileiro não é dos melhores no quesito organização e efetivo controle interno carcerário.

O resultado encontrado é a afirmação do quanto o sistema prisional brasileiro precisa de mais zelo, precaução e humanidade para com os apenados. Tendo em vista que a superlotação ainda é um problema evidente e a vulnerabilidade dos presos também. Este estudo, contribui de maneira positiva ao tentar relembrar para a população e o poder judiciário que o cárcere deve ser levado como a ultima ratio, o que não vem acontecendo. Visto que, quando surge algum problema, a primeira medida pensada é privar o indivíduo de sua liberdade, para assim, pagar pelo o que fez.

O poder judiciário está tomado pelo punitivismo e, as penas não estão cumprindo sua finalidade, de ressocialização e, reintegração dos apenados junto à sociedade. Por isso, a importância de atenção e, empatia diante da crise que acomete os presídios, isto é, o sistema carcerário é o lugar em que mais se violam os direitos humanos, incentivando o crime, como exemplo: as facções existentes.

Diante desse cenário, frente ao descaso, em 2015 o STF reconheceu parcialmente o estado de coisas inconstitucionais no sistema prisional, corroborando com a ineficiente proteção que deveria ter o Poder Público para com os apenados.

Entende-se por Estado de Coisas Inconstitucionais, a omissão estatal que está relacionada a falhas estruturais e, também as violações presentes nas prisões que vão de encontro com a aplicabilidade do princípio da dignidade humana, pois em vez do Estado preservar a integridade física e moral dos apenados, ajudando em sua ressocialização. Acaba por contribuir com a exposição desses indivíduos em condição de vulnerabilidade, implicando na violação massiva e contínua de direitos fundamentais.

A decisão feita pelo Poder Judiciário de forma atípica se torna necessária, uma vez que não havia outra norma, reconhecendo tal cenário, acabando por caracterizar a omissão do Estado, frente sua responsabilidade de garantir a mínima dignidade humana para com indivíduos que estão cumprindo pena privativa de liberdade.

Assim, é correto afirmar que a declaração de estado de coisas inconstitucionais no sistema prisional confirma o descaso evidente do poder Público para com os apenados que cumprem pena privativa de liberdade.

Ademais, o ativismo judicial é relevante para o reconhecimento de violações humanas que se estende há anos no sistema prisional, agravada em virtude da chegada da pandemia do Covid 19.

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REFERÊNCIAS

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Abstract: The article aims to present the conditions in which the Brazilian prison system finds itself, as the STF itself in decision recognized its current state of unconstitutional affairs. This scenario provides a reflection on the lack of respect and also the applicability of the principle of human dignity. Once, such principle is considered the maximum of the democratic rule of law and of fundamental right that every individual possesses. In this sense, a doctrinal, normative and jurisprudential study is carried out that addresses this issue, taking into account the context of the Covid 19 pandemic, since there is a great ease of transmission, causing a rapid proliferation in the number of infected and dead throughout the world. Thus, given the analyzes and studies, there is clear evidence of the State's failure to actually succeed in providing the guarantee and also the applicability of dignity to inmates, especially in the pandemic scenario, as overcrowding is still a devastating reality present in Brazilian prisons.

Keywords: Unconstitutional state of affairs. Prison system. Human dignity. Overcrowding. Judicial activism. ADPF 347. COVID-19.

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Sobre as autoras
Paloma Torres Carneiro

Professora orientadora. Mestre em Direito Universidade Católica de Brasília (UCB).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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