O limite do teto salarial estipulado recentemente para todos os cargos Federais e Estaduais tem gerado grande discussão tanto na doutrina quanto na própria imprensa. No entanto, dúvidas surgem acerca da aplicação desse teto salarial àqueles que acumulam cargos nos Poderes, cuja permissão ocorreu em razão da E.C. nº 20/1998.
O art. 11 da E.C. 20/1998 resguarda o direito de acumulação de proventos com vencimentos para "membros de poder e aos inativos, servidores e militares, que, até a publicação desta Emenda, tenham ingressado novamente no serviço público por concurso público de provas ou de provas e títulos, e pelas demais formas previstas na Constituição Federal", desde que tenham ingressado no serviço público, novamente, antes da data da publicação da referida norma, qual seja, 16 de dezembro de 1998. "Desse modo, se um Promotor de Justiça ou um Defensor Público se aposentou e, antes da data acima, foi aprovado em concurso para a Magistratura e devidamente nomeado para o cargo de Juiz de Direito (hipóteses não raro ocorridas), fará jus à percepção simultânea dos proventos relativos ao cargo anterior e aos vencimentos do novo cargo." [01]
Conforme se infere do inciso XXXVI da CRFB/88, a lei não poderá prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. O Art. 6º, §2º, da LICC estabelece que "consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem."
A doutrina e a jurisprudência pátria são assentes no sentido de que o agente público não teria direito adquirido sobre a imutabilidade do regime jurídico a que se submete, v.g. o servidor não teria direito adquirido a imutabilidade de seu estatuto. No entanto, também é pacífico que apesar de não ter direito adquirido à imutabilidade do regime jurídico, o agente público tem direito adquirido sobre os benefícios e vantagens a que fizeram jus por preencherem os requisitos necessários à época da vigência do regime jurídico anterior. Assim assevera ALEXANDRE DE MORAES:
"A posição pacificada na jurisprudência da Corte Suprema sobre a inexistência de direito adquirido em relação à imutabilidade do regime jurídico do servidor público, sendo as leis que o alterem aplicáveis desde o início de sua vigência, não afasta a proteção constitucional dos direitos adquiridos relacionados a eventuais vantagens pessoais que já tenham acrescido ao patrimônio do servidor público, pois são coisas diversas." [02]
Não há dúvidas de que com o advento de uma nova constituição o agente público não poderá alegar qualquer direito adquirido, pois estará diante de uma nova ordem jurídica. No entanto, o agente público não poderá ter suprimido o seu direito por meio de Emendas Constitucionais, tendo em vista que estas se submetem a algumas restrições. Dentre as restrições materiais (cláusulas pétreas) a que se submetem, há vedação expressa à proposta de emenda constitucional que vise a abolição de direitos e garantias individuais. "Sendo assim, se o servidor já tem direito adquirido, que é um dos vetores dos direitos individuais, não pode sobre a alteração constitucional retroagir para alcançá-lo e suprimí-lo." [03]
Nesse sentido a lição de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO:
"se consuma o suporte fático previsto na lei e se são preenchidos os requisitos para o seu exercício, o servidor passa a ter direito adquirido ao benefício ou vantagem que oferece. (...) Cuida-se nesse caso de direito adquirido do servidor, o qual se configura como intangível mesmo se a norma legal vier a ser alterada." [04]
Sobre hipótese similar a que é tratada no presente mandamus, o mestre continua seus ensinamentos:
"Há uma ultima consideração a fazer quanto à questão do teto remuneratório. O art. 9º da EC 41/2003 ordenou a aplicação do disposto no art. 17 do ADCT da Constituição a qualquer tipo de remuneração percebida pelos servidores e agente já mencionados, considerando o teto fixado pelo art. 37, XI, da CF. Como o art. 17 do ADCT determina a imediata redução dos vencimentos percebidos em desacordo com as regras constitucionais, sem que o prejudicado pudesse invocar o direito adquirido ao recebimento do excesso, ficou claro que o art. 9º pretendeu fosse também providenciada a imediata redução dos vencimentos percebidos em valor superior ao estabelecido pelo teto.
Tal dispositivo, entretanto, se afigura flagrantemente inconstitucional. O art. 17 do ADCT da Constituição integrou originalmente a Constituição de 1988; cuida-se, pois, de norma oriunda do Poder Constituinte Originário, contra o qual, afirma a mais autorizada doutrina, não há como invocar direito adquirido. O art. 9º da EC 41/2003, no entanto, espelha mandamento decorrente do Poder Constituinte Derivado, que é limitado, subordinado e condicionado; segue-se, pois, que deve observar as regras imutáveis da Constituição – as denominadas cláusulas pétreas – insculpidas no art. 60, §4º, da Constituição, nelas estando incluídas as que dispõe sobre direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, IV, CF).
Ora, não há qualquer dúvida de que a irredutibilidade de vencimentos constitui direito adquirido dos servidores, como transparece do art. 37, XV, da CF. Outra conclusão, assim, não se pode extrair senão a da inconstitucionalidade do citado art. 9º da EC 41/2003. Desse modo, o servidor que, com amparo na legislação pertinente, percebe remuneração superior ao teto fixado no art. 37, XI, da CF (ou provisoriamente no art. 8º da EC 41), não pode sofrer redução em seu montante. O direito do Poder Público, no caso, será apenas o de manter irreajustável a remuneração até que as elevações remuneratórias subseqüentes possam absorver o montante. Na verdade, o correto é considerar no caso a percepção de duas parcelas, uma correspondente ao teto e outra equivalente ao excesso remuneratório. Assim, à medida que for sendo reajustada a parcela relativa ao teto estará sendo reduzida a parcela referente ao excesso. Em certo momento futuro, esta ultima parcela será totalmente absorvida e, a partir daí, a remuneração do servidor – agora nos limites do teto – estará em condições de ser reajustada normalmente.
O que é juridicamente inviável é que, num estalar de dedos ocorrido sob a égide de emenda constitucional, a remuneração seja simplesmente reduzida a limite remuneratório fixado posteriormente ao momento em que nasceu o direito à sua percepção." [05]
E, no rodapé da página onde expôs seu ensinamento, menciona que o pensamento de José Afonso da Silva, Celso Antônio Bandeira de Mello e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, expendido em pareceres solicitados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, acostados ao processo referente à ADIN 3.105, ajuizada pela entidade, é nesse mesmo sentido.
Da mesma forma, é o entendimento de Alexandre de Moraes:
"Ressalte-se que a emenda constitucional somente permanecerá no ordenamento jurídico se em sua edição tiver respeitado as limitações expressas e implícitas decorrentes do art. 60 da Constituição Federal.
(...)
No presente caso, necessária será a realização de uma interpretação conforme sem redução de texto, de forma a reduzir o alcance valorativo dos arts. 29 da EC nº 19/98 e 9º da EC 41/03, com o intuito de compatibilizá-lo com a Constituição, excluindo-lhe a interpretação que lhe conceda retroatividade em relação às situações jurídicas já consolidadas antes, primeiramente, da promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98, e, posteriormente, da Emenda Constitucional nº 41/2003.
(...)
(...) entendemos inadmissível qualquer interpretação seja da EC nº 19/98, seja da EC nº 41/03 que possibilite o desrespeito aos direitos adquiridos dos servidores públicos, às vantagens pessoais incorporadas regularmente aos seus vencimentos e, conseqüentemente, integrantes definitivamente em seu patrimônio, em face de desempenho efetivo da função ou pelo transcurso do tempo, como por exemplo anuênios ou qüinqüênios.
(...)
Diferentemente, será o tratamento jurídico-constitucional dos servidores públicos que já têm incorporados ao seu patrimônio vantagens pessoais juridicamente reconhecidas. Em relação a esses, não haverá possibilidade de retroatividade, continuando os mesmos a perceber integralmente seus vencimentos, em face da existência do direito adquirido e da impossibilidade de reconhecer-se uma retroatividade que desconstitua uma situação jurídica perfeita e acabada, consolidada na vigência da norma constitucional originária anterior, acarretando irregular irredutibilidade de vencimentos, devidamente incorporados ao patrimônio." [06]
A lição sobre o assunto continua pela lavra de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
"(...) ao nosso ver, aos que já eram servidores quando entrou em vigora Emenda 41 não se aplicam nem o teto nem o chamado subteto, dada a irredutibilidade de vencimentos, que não pode ser afetada por Emenda (por se constituir em garantia individual, portanto protegida por cláusula pétrea).
(...)
Feitas estas considerações, percebe-se que Emenda alguma poderia ou pode reduzir vencimentos, pois, se o fizesse agrediria direitos individuais que os servidores públicos, como quaisquer outros cidadãos, tem garantidos pela Constituição Entre estes direitos está o direito adquirido, previsto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal – no caso, aos vencimentos que ora percebem. Acresce que – e isto é de suma relevância – a irredutibilidade de vencimentos, que o art. 37, XV, antes do "Emendão", lhes assegurava em termos diversos dos atuais, é, em si mesma, um direito e uma garantia individual que assistem a cada um dos servidores públicos que dela desfrutavam antes de seu advento.
(...)
(...) acresce que o art. 17 estava reportado a um texto que foi revogado pela Emenda 19 e que, de seu turno, também foi revogado pela Emenda 41, de tal sorte que não mais existe como termo de referência no universo jurídico." [07]
DIOGENES GASPARINI, com seu profundo conhecimento, assim emenda:
"(...) o alcance dessa regra está restrito aos subsídios, remunerações, proventos das aposentadorias e pensões e quaisquer outras espécies remuneratórias percebidas ilegalmente, pois se auferidas legalmente, ainda que seu somatório seja superior ao mencionado teto, não podem ser reduzidas, vez que consubstanciam direito adquirido, intocável por Emenda Constitucional, submissa aos limites impostos pela Constituição da República." [08]
Por fim, menciona-se aqui que este é o entendimento, também, dos atualizadores da obra de HELY LOPES MEIRELLES, que assim concluem:
"(...) temos que o servidor, o inativo ou o pensionista que percebia quando da publicação da EC 41 remuneração, proventos ou pensão superior ao teto geral previsto no art. 37, XI, da CF, na sua nova redação, não poderá ter redução desse valor. A diferença entre esse valor e o do teto geral deverá ser absorvida por alterações futuras do subsídio, da remuneração ou do benefício." [09]
A jurisprudência segue este mesmo entendimento:
"MANDANDO DE SEGURANÇA. LESÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO. CORTE NOS PROVENTOS DECORRENTE DA APLICAÇÃO DO TETO REMUNERATÓRIO PREVISTO NA E.C. n° 41/03, NORMATIZADO POR DECRETO MUNICIPAL. DIREITO ADQUIRIDO. O Impetrado ao editar o Decreto mencionado nos autos com o objetivo de aplicar na esfera da Administração Municipal o teto remuneratório a que faz alusão o art.8° da E.C.41/03, causou uma significativa redução nos proventos do Impetrante, servidor estatutário inativo. A Autoridade Coutara inobservou o princípio da irredutibilidade de vencimentos albergado no art. 5° inc. XXXVI, da nossa Carta Política, ferindo assim direito de há muito adquirido pelo Impetrante, merecedor de proteção pela via mandamental. ´´In casu´´, o excedente ao teto configura direito pessoal, comprovado de plano, que não pode ser suprimido por alteração constitucional posterior, sob pena de ferir cláusula pétrea, na forma do art.60, §4º, inc.IV, C.F. Ordem concedida, nos termos do voto do Desembargador Relator." (2005.004.01730 - MANDADO DE SEGURANÇA - DES. RICARDO RODRIGUES CARDOZO - Julgamento: 08/03/2006 - DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL DO TJ/RJ)
"MANDADO DE SEGURANÇA. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 41. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. TETO REMUNERATÓRIO. CUMULAÇÃO DE APOSENTADORIAS. DIVERSIDADE DE FONTES PAGADORAS. DIREITO ADQUIRIDO. IRREDUTIBILIDADE DE PROVENTOS.
1. Toda Emenda Constitucional está sujeita ao controle jurisdicional, com o fim de preservar a estabilidade da Constituição Federal.
2. Os vencimentos percebidos pelos servidores públicos, até a promulgação da Emenda Constitucional nº 41, não podem sofrer limitação, sob pena de violação aos princípios da irredutibilidade de vencimentos e do direito adquirido.
3. O conteúdo normativo do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias destinava-se, exclusivamente, às situações jurídicas decorrentes da nova ordem constitucional inaugurada a 5/10/88.
4. Incabível, por meio de emenda constitucional, emprestar-lhe caráter repristinatório, sob pena de se eternizar norma de conteúdo transitório. Especialmente se se reportava a texto revogado pela de nº 41.
5. Inaplicável ao impetrante o novo regime previdenciário, se seus proventos relativos a dupla aposentadoria são pagos pelos cofres do Distrito Federal e da União." (MANDADO DE SEGURANÇA nº 20040020047432MSG - DF - Registro do Acórdão Número : 219056 - Data de Julgamento : 07/12/2004 - Órgão Julgador : Conselho Especial do TJ/DF - Relator : GETULIO PINHEIRO - Publicação no DJU: 11/07/2005)
"MANDADO DE SEGURANÇA - VANTAGENS PESSOAIS - INCORPORAÇÃO - DIREITO ADQUIRIDO - TETO REMUNERATÓRIO - FIXAÇÃO - EMENDA CONSTITUCIONAL - PODER REFORMADOR.
Entre os limites impostos pelo Poder Constituinte ao Poder Reformador está a intocabilidade dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, iv, cf/88), entre eles a garantia do direito adquirido (art. 5º, xxxvi, cf/88).
As vantagens de caráter pessoal legitimamente incorporadas aos vencimentos dos servidores públicos constituem direito adquirido, não podendo ser alcançadas pela superveniência de qualquer lei ou Emenda Constitucional.
A fixação de um teto remuneratório poderia servir de instrumento para a concretização do princípio da moralidade, tão necessário ao combate de injustiças sociais. E, para atingir esse objetivo moralizador, seria realmente desejável que o teto de remuneração fosse rigoroso e insuscetível a tentativas de burla. Porém, não se pode admitir que o legislador reformador, ao tentar impedir injustiças sociais, eleja alguns agentes públicos como mártires e, nesse rumo atabalhoado, avance sobre um dos princípios da ordem constitucional vigente, ou seja, que atropele o princípio da segurança jurídica." (MANDADO DE SEGURANÇA 20040020073037MSG DF - Registro do Acórdão Número : 231778 - Data de Julgamento : 06/09/2005 - Órgão Julgador : Conselho Especial do TJ/DF - Relator : SÉRGIO BITTENCOURT - Publicação no DJU: 09/12/2005)
"Previdenciário. Emenda Constitucional nº 41/03. Teto Remuneratório. Proventos. Redução. Impossibilidade. Com o advento da aludida Emenda foi introduzida a norma do art. 9º da EC nº 41/03, explicitando o art. 17 do ADCT, a fim de tentar impedir questionamentos sobre a possibilidade de uma norma constitucional introduzida por Emenda ferir direitos adquiridos. A despeito de tal norma, de nível constitucional, mostra-se cabível a invocação de direito adquirido em face de Emendas Constitucionais, garantia individual que não pode ser ignorada, por compreender cláusula pétrea. ""In casu"", como os montantes percebidos pelo impetrante tiveram seus fatos jurídicos configurados em data anterior à vigência da EC nº 41/03, há direito adquirido à percepção dos proventos no mesmo patamar de suas concessões, não sendo o caso de se aplicar a norma do art. 8º da EC nº 41/03, conforme invocado pelos Impetrados para o fim de definir o teto remuneratório no âmbito da Assembléia Legislativa, mormente por sua natureza transitória." (MANDADO DE SEGURANÇA - 1.0000.04.408629-6/000(1) – Relator: PINHEIRO LAGO – Data do acórdão – 11/05/2005 – Corte Superior do TJ/MG)
"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – VANTAGENS PESSOAIS – LIMITE CONSTITUCIONAL DOS VENCIMENTOS OU PROVENTOS – DIREITOS ADQUIRIDOS INATINGÍVEIS POR EMENDA CONSTITUCIONAL. - Somente o Constituinte originário pode determinar seja atingido o direito adquirido. O Constituinte derivado, ainda que por meio de emenda constitucional, não tem tal poder, pois à lei nova, mesmo constitucional, não cabe desfazer situação jurídica consumada e protegida por cláusulas constitucionais pétreas, nas garantias postas no art. 60, § 4º, inciso IV da CF/88. - As regras aplicáveis ao teto remuneratório são as existentes antes da edição de emendas constitucionais, quais a de nº 19/98 e 41/2003, devendo, além disso, ser excluídas do cálculo do teto remuneratório, previsto no artigo 37, XI da CF, as vantagens pessoais, consoante dicção do Colendo STF, v.g., ""in"" RE 220.397-SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, ""in"" DJ de 18/06/99." (MANDADO DE SEGURANÇA - 1.0000.04.406776-7/000(1) – Relator: Orlando Carvalho – data do acórdão: 13/04/2005 – Corte Superior do TJ/MG)
Essa situação foi, inclusive, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança de nº 24875, em que "o Tribunal, por maioria, deferiu, em parte, o writ, para garantir aos impetrantes o direito de continuarem a receber a vantagem a que se refere o art. 184, da Lei 1.711/52, até que seu montante seja absorvido pelo subsídio fixado em lei para o Ministro do STF." [10]
Se não se entender que se trata de direito adquirido, deve ser observado, ao menos, o critério da ponderação de valores (ou interesses) em cada caso concreto.
A partir da Constituição de 1988, "as normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. (...) A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central." [11]
A doutrina moderna, fundamentando-se nos ensinamentos de ROBERT ALEXY e RONALD DWORKIN, classifica as normas jurídicas em duas espécies, quais sejam as regras e os princípios. "As regras são operadas de modo disjuntivo, vale dizer, o conflito entre elas é dirimido no plano da validade: aplicáveis ambas a uma mesma situação, uma delas apenas a regulará, atribuindo-se à outra o caráter de nulidade. Os princípios, ao revés, não se excluem do ordenamento jurídico na hipótese de conflito: dotados que são de determinado valor ou razão, o conflito entre eles admite a adoção do critério da ponderação de valores (ou ponderação de interesses), vale dizer, deverá o intérprete averiguar a qual deles, na hipótese sub examine, será atribuído grau de preponderância. Não há, porém, nulificação do princípio postergado; este, em outra hipótese e mediante nova ponderação de valores, poderá ser o preponderante, afastando-se o outro princípio em conflito." [12]
Ponderação de valores (ou ponderação de interesses) é "a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais." [13] "É importante registrar que a ponderação, sem uma estrutura e sem critérios materiais é instrumento pouco útil para aplicação do direito." [14]
ANA PAULA DE BARCELLOS propõe um modelo de ponderação em três etapas sucessivas. Na primeira etapa identificam-se os enunciados normativos aparentemente em conflito. Na segunda etapa examinam-se as circunstâncias do caso concreto e suas repercussões sobre os elementos normativos. Na terceira fase o intérprete, observando o que já foi verificado nas fases anteriores, fará a atribuição de pesos diferentes sobre os fatos, definindo se é possível conciliar os elementos normativos em tensão ou se algum deles deve preponderar, dando, ao final, a solução ao caso. [15]
HUMBERTO ÁVILA, de modo semelhante identifica três etapas para ponderação. Na primeira há a preparação da ponderação, onde analisam-se todos os elementos e argumentos pertinentes, de forma mais exaustiva possível; na segunda, realiza-se a ponderação, em que se fundamenta a relação estabelecida entre os elementos que foram objeto de sopesamento; e, na terceira, faz a reconstrução da ponderação, formulando-se regras de relação com pretensão de validade para além do caso. [16]
LUIS ROBERTO BARROSO, ao prefaciar a obra "Interesses Públicos versus Interesses Privados", organizada por Daniel Sarmento, utiliza uma distinção que considera fundamental sobre o interesse público:
"O interesse Público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas." [17]
Não há que se falar de prevalência absoluta do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado pois, neste caso, não estaria sendo concebível espaço para a ponderação. Isso afrontaria o ordenamento jurídico como um todo, e essa crítica também é feita por GUSTAVO BINENBOJM:
"o referido princípio, porquanto determine a preferência absoluta ao interesse público diante de um caso de colisão com qualquer que seja o interesse privado, independentemente das variações no caso concreto, termina por suprimir os espaços para ponderações (...) verifica-se não ser possível extrair "o princípio da supremacia do interesse público" da análise do conjunto normativo constitucional, haja vista a ampla proteção dispensada aos interesses particulares, de tal maneira que aceitá-lo como norma princípio é deixar subsistir a contrariedade sistêmica que representa e afrontar a constante busca pela unidade constitucional. (...) O "princípio" em si afasta o processo de ponderação, fechando as portas para os interesses privados que estejam envolvidos. (...) com efeito, uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou direito sobre os outros não pode ser qualificado como princípio. Ao contrário, um princípio, por definição, é norma de textura aberta, cujo fim ou estado de coisas para o qual aponta deve ser sempre contextualizado e ponderado com princípios igualmente previstos no ordenamento jurídico. A prevalência apriorística e descontextualizada de um princípio constitui uma contradição em termos." [18]
Não é diferente a conclusão a que chega HUMBERTO ÁVILA sobre o mesmo tema, mencionando que deste tema surgem duas importantes conseqüências:
"Primeira: não há uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro. A administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar a interpretação das regras existentes) com base nesse "princípio". Aí incluem-se quaisquer atividades administrativas, sobretudo aquelas que impõe restrições ou obrigações aos particulares. Segundo: a única idéia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre o Estado e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principal ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais." [19]
A norma que estabelece o teto salarial deve ser observada com bastante cuidado, pois trata-se de uma norma restritiva de direitos. A norma restritiva de direitos deve ser interpretada estritamente, tendo em vista que em nosso ordenamento jurídico ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CRFB/88), assim, se a norma não restringe o direito não cabe ao intérprete restringi-lo.
Diante de todos esses fundamentos, não há como negar que o subsídio dessas pessoas não poderia ser suprimido, ou sequer congelado, pois o congelamento nada mais é do que uma redução gradual dos vencimentos, o que fere o princípio da irredutibilidade de vencimentos. Assim, as normas que estipulam o teto salarial, a meu ver, somente poderiam ser aplicadas para o futuro, sob pena de violar os direitos adquiridos de quem já tinha incorporado essa vantagem. Se assim não fosse muita gente que acumula esses cargos trabalharia de graça, não podendo receber subsídios, mas continuando a contribuir para um sistema de previdência que não poderá, ao futuro, receber qualquer benefício e sequer cumular pensões, o que é vedado pela E.C. 20/98. Assim estaria havendo benefícios só para o Estado, benefícios esses que seriam ilícitos, por configurarem enriquecimento sem causa.
Notas de rodapé:
01FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 587.
02MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Edição. São Paulo: Atlas, 2006. p. 370.
03FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 525.
04FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 524.
05FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 616/617.
06MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Edição. São Paulo: Atlas, 2006. p. 366, 369 e 371.
07MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 254/255, 307/308.
08GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 10ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 185.
09MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 31ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 508/509.
10 Informativo 426 do STF.
11BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 5 e 14.
12FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 15.
13BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.23.
14ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da Definição à Ampliação dos PrincípiosJurídicos. 4ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 94.
15BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
16ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da Definição à Ampliação dos Princípios Jurídicos. 4ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 94/96.
17SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstituindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006.
18BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: Um novo paradigma para o Direito Administrativo, in Interesses públicos versus interesses privados (org. Daniel Sarmento), Ed. Lumn Juris, Rio de Janeiro, 2005.
19ÁVILA, Humberto. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular", in Interesses públicos versus interesses privados (org. Daniel Sarmento), Ed. Lumn Juris, Rio de Janeiro, 2005.
BIBLIOGRAFIA:
ÁVILA, Humberto. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular", in Interesses públicos versus interesses privados (org. Daniel Sarmento), Ed. Lumn Juris, Rio de Janeiro, 2005.
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: Um novo paradigma para o Direito Administrativo, in Interesses públicos versus interesses privados (org. Daniel Sarmento), Ed. Lumn Juris, Rio de Janeiro, 2005.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 10ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2005
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 31ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2005.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2005.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Edição. São Paulo: Atlas, 2006.