Artigo Destaque dos editores

Nietzsche e a genealogia do castigo

Exibindo página 2 de 2
03/03/2007 às 00:00
Leia nesta página:

4.Da multidão de sentidos do castigo

Não é de todo descabido apontar Rudolf von Jhering como um dos inspiradores de Nietzsche. É precisamente isso o que sugere Rubens Rodrigues Torres Filho, referindo-se à obra Der Zweck im Recht (A finalidade no direito), cujos primeiros volumes foram publicados entre 1877 e 1883 (Nietzsche, 1978: 307), apenas quatro anos antes da publicação da Genealogia da moral (1887). Para este jurista, o direito deve ser interpretado não com base na frieza da lei, mas em conformidade com o seu fim que é, de um modo geral, a realização da justiça. Assim, o trabalho da hermenêutica jurídica seria buscar na origem da lei a sua finalidade para, então, aplicá-la. As idéias de Jhering são a base da interpretação teleológica do direito, a qual, segundo Damásio Evangelista de Jesus, "é a que consiste na indagação da vontade ou da intenção objetivada na lei" (2003: 32). Nesse processo, ainda de acordo com Jesus, "o elemento histórico é de grande valia. (...) O intérprete procura a origem da lei, estuda a sua evolução e modificações antes de cuidar do exame dos aspectos de que se reveste o texto atual". A aplicação do direito pressupõe, portanto, certos conhecimentos genealógicos.

O problema que Nietzsche aí indica é a ingênua genealogia de que se servem historiadores e hermeneutas do direito. Eles não levam em conta um dos princípios fundamentais da genealogia nietzschiana: a distinção entre origem e finalidade. "A ‘finalidade no direito’, escreve Nietzsche, é a última coisa a se empregar na história da gênese do direito (...) a causa da gênese de uma coisa e sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]" (GM, II, § 12). Os operadores do direito, com base no elemento histórico da interpretação teleológica, pretendem remontar as condições da gênese de um preceito julgando poder localizar aí sua finalidade, sua essência, seu sentido. Todavia, "mesmo tendo-se compreendido bem a utilidade de um órgão fisiológico (ou de uma instituição de direito, de um costume social, de um uso político, de uma determinada forma nas artes ou no culto religioso), afirma Nietzsche, nada se compreendeu acerca de sua gênese" (GM, II, § 12). A genealogia revela precisamente que a história de uma coisa é marcada por contradições, por ambigüidades, de tal modo o sentido original não se mantém ao longo de sua história. A história de uma coisa é um ininterrupto processo de ressignificação, de reinterpretação, de redirecionamento. "Assim, se imaginou o castigo como inventado para castigar", diz Nietzsche (GM, II, § 12), enquanto que a genealogia expõe outros sentidos, não menos relevantes que este, no castigo.

A finalidade do direito não deve ser buscada em sua origem. A base histórica da interpretação teleológica é irreal, pois a finalidade que determina a aplicação do direito jamais é seu sentido original. Ela é um novo sentido, redirecionado e reinterpretado. Ela já insere o preceito interpretado em uma nova série de significações. Ao negar a continuidade entre origem e finalidade, a genealogia, como diz Foucault, reintroduz o devir na história (2000: 27), propondo a radical fluidez do sentido. "Se a forma é fluida, o ‘sentido’ é mais ainda...", este é um dos resultados mais gerais a que chega a genealogia (Nietzsche, GM, II, § 12).

Partindo dessa perspectiva, Nietzsche distingue no castigo dois aspectos: "o que nele é relativamente duradouro, o costume, o ato, o ‘drama’, uma certa seqüência rigorosa de procedimentos, e o que é fluido, o sentido, o fim, a expectativa ligada à realização desses procedimentos" (GM, II, § 13). Do ponto de vista daquilo que no castigo é relativamente fixo, o procedimento, há que se admitir, de acordo com Nietzsche, que ele é anterior ao castigo, somente tendo sido nele introduzido posteriormente (GM, II, § 13). Os procedimentos penais não nasceram com a pena, eles nasceram por motivos diversos e com outras finalidades e só depois é que se tornaram propriamente penais. O que é suficiente para marcar a sua resignificação: o procedimento, a forma, se manteve, mas assumiu um novo sentido, um conteúdo diferente do que tinha em sua origem. Daí seu caráter duradouro ser apenas relativo. Ao ser transformado em procedimento penal, ele sofreu modificações determinadas pelo aspecto mais fluido, o sentido do castigo.

O processo de ressignificação foi mais intenso quanto ao sentido do castigo. É o que escreve Nietzsche:

em um estado bastante tardio da cultura (na Europa de hoje, por exemplo) o conceito de "castigo" já não apresenta de fato um único sentido, mas toda uma síntese de "sentidos": a história do castigo até então, a história de sua utilização para os mais diversos fins, cristaliza-se afinal em uma espécie de unidade que dificilmente se pode dissociar, que é dificilmente analisável e, deve ser enfatizado, inteiramente indefinível. (Hoje é impossível dizer ao certo por que se castiga: todos os conceitos em que um processo inteiro se condensa semioticamente se subtraem à definição; definível é apenas aquilo que não tem história.) Mas em um estágio anterior tal síntese de "sentidos" ainda aparece mais dissociável, mais mutável; pode-se ainda perceber como em cada caso singular os elementos da síntese mudam a sua valência, e portanto se reordenam, de modo que ora esse, ora aquele elemento se destaca e predomina às expensas dos outros, e em certas circunstâncias um elemento (como a finalidade de intimidação) parece suprimir todos os restantes (GM, II, § 13).

Portanto, a genealogia afirma categoricamente a indefinibilidade do castigo. Se um ou outro elemento do castigo parece, num determinado momento histórico, predominar em relação aos outros, é preciso que não se esqueça que os demais aspectos permanecem ali, presentes, ainda que latentes. O processo de refinamento do castigo obscurece algumas das facetas do castigo, mas não as elimina. A longa história do castigo, tão antiga quanto a do próprio homem, inviabiliza que se lhe atribua uma única definição, impede que se lhe aponte um único sentido, mas há ainda nele sentido. O castigo comporta sentidos, definições sempre no plural.

Tendo em vista tal dificuldade, Nietzsche elabora um extenso elenco de sentidos do castigo, que não é, todavia, taxativo, pois "evidentemente o castigo está carregado de toda espécie de utilidades" (GM, II, § 14):

Castigo como neutralização, como impedimento de novos danos. Castigo como pagamento de um dano ao prejudicado, sob qualquer forma (também na de compensação afetiva). Castigo como isolamento de Uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da perturbação. Castigo como inspiração de temor àqueles que determinam e executam o castigo. Castigo como espécie de compensação pelas vantagens que o criminoso até então desfrutou (por exemplo, fazendo-o trabalhar como escravo nas minas). Castigo como segregação de um elemento que degenera (por vezes de todo um ramo de família, como prescreve o direito chinês: como meio de preservação da pureza da raça ou de consolidação de um tipo social). Castigo como festa, ou seja, como ultraje e escárnio de um inimigo finalmente vencido. Castigo como criação de memória, seja para aquele que sofre o castigo – a chamada "correção" –, seja para aqueles que o testemunham. Castigo como pagamento de um honorário, exigido pelo poder que protege o malfeitor dos excessos da vingança. Castigo como compromisso com o estado natural da vingança, quando este é ainda mantido e reivindicado como privilégio por linhagens poderosas. Castigo como declaração e ato de guerra contra um inimigo da paz, da ordem, da autoridade, que, sendo perigoso para a comunidade, como violador dos seus pressupostos, como rebelde, traidor e violenta dor da paz, é combatido com os meios que a guerra fornece (Nietzsche, GM, II, § 13).

Mais do que dar conta da totalidade dos sentidos do castigo, este elenco tem a função de ressaltar sua irredutível pluralidade semiótica.

É curioso observar que um autor que supostamente não teria maiores contribuições a dar no campo do direito, tenha, em pleno século XIX, concebido sua interpretação do castigo com base em conceitos de pena que somente vieram a se desenvolver plenamente nos debates jurídicos do século XX. Por exemplo, o conceito de pena positivado no Código Penal brasileiro vigente, que, segundo Noronha, sintetiza e atualiza as concepções de pena gestadas pelas duas principais correntes do direito penal, a Escola Clássica e a Escola Positiva, não chega a contemplar todos esses aspectos [07]. Senão vejamos: O art. 32 do Código Penal estabelece que "as penas são: I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; III – de multa". No Código penal comentado, Celso Delmanto explica o conceito de pena positivado: "pena, diz ele, é a imposição da perda ou diminuição de um bem jurídico, prevista em lei e aplicada pelo órgão judiciário, a quem praticou ilícito penal" (2000: 63). Em seguida, passa a enunciar os princípios diretores da pena assim definida: "ela tem finalidade retributiva, preventiva e ressocializadora. Retributiva, pois impõe um mal (privação de bem jurídico) ao violador da norma penal. Preventiva, porque visa a evitar a prática de crimes, seja intimidando a todos, em geral, com o exemplo de sua aplicação, seja, em especial, privando da liberdade o autor do crime e obstando que ele volte a delinqüir. E ressocializadora, porque objetiva a sua readaptação social" (2000: 63).

As mencionadas finalidades da pena são produto de elaborações teóricas e intensos debates travados, fundamentalmente, entre a Escola Clássica e a Escola Positiva do direito penal. A Escola Clássica, que tem como principais representantes um filósofo e um jurista italianos, Cesare Beccaria e Francesco Carrara, segundo Antonio Moniz Sodré de Aragão, formula o seguinte conceito: "a pena (...) é um mal imposto ao indivíduo que merece um castigo em vista de uma falta considerada crime, que voluntária e conscientemente cometeu" (1952: 261). A pena, para esta escola, é um "justo castigo", é o mal que redime outro mal, é a repreensão da conduta de um sujeito livre que deliberou agir ilicitamente. tendo caráter não só retributivo, como também preventivo, tanto em sentido geral, quanto em sentido particular, uma vez que é um meio de intimidação daquele já cometeu um crime, constrangendo-o a não reincidir (prevenção particular), bem como da comunidade como um todo, que passa a conceber a punição como conseqüência necessária da prática de crimes (prevenção geral).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Ainda de acordo com Moniz Sodré, o conceito de pena da Escola Positiva, representada por outros dois italianos, o médico Cesare Lombroso, autor de L’uomo delinquente, e o sociólogo do direito Enrico Ferri é o seguinte: pena "é um remédio contra o crime, e, na sua aplicação, não tem em vista o castigo, mas a defesa social" (1952: 267). O delinqüente é, para esta escola, um desvio social e natural, que com a prática de conduta ilícita demonstra sua periculosidade, ou seja, sua inaptidão para a vida social. O delinqüente é uma espécie de doente, não um ser livre, que pratica o crime por razões biológicas e sociológicas sobre as quais não tem controle. Logo, ele deve ser, não punido com rigor, mas tratado eficazmente, o que pode ocorrer desde que as prisões tornem-se locais de tratamento e ressocialização.

Ora, esses aspectos da pena, atualmente positivados, encontram-se de uma forma ou de outra no elenco de sentidos do castigo que Nietzsche desenvolve no § 13 da Segunda Dissertação da Genealogia da moral. Há, no entanto, uma dimensão do castigo localizada pela genealogia, que, se não dá conta definitivamente de seu sentido, é certamente um de seus principais elementos: o prazer. O castigo é um afeto ativo, é uma alegria, um deleite, é uma festa, como Nietzsche insiste em dizer (GM, II, §§ 6 e 7). Há um gozo em castigar, que desde cedo a humanidade aprendeu a fruir coletivamente. Esta é a medida pré-histórica do castigo que, como tal, está sempre presente ou em vias de retornar. O que nós modernos não podemos, ou não queremos, admitir, e que a genealogia do castigo revela, é que o bárbaro prazer do castigo primitivo, toda esta crueldade, é a base das civilizadas penas modernas e, mais que isso, na medida em que o castigo é um dos fundamentos da domesticação, da moderna civilização, ele nos constituiu enquanto homens modernos, nos formou e é de algum modo ainda nosso prazer. A genealogia do castigo diz o indizível, o que jamais seria dito por um jurista, ela diz que o castigo é, precisamente naquilo que ele tem de mais cruel, humano, demasiado humano. A genealogia diz a crueldade do castigo na primeira pessoa.


Referências bibliográficas

BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. Edição Ridendo Castigat Mores. Versão para eBook eBooksbrazil.com [online]. Capturado em 18 fev. 2004. Disponível na internet: .

BRUNO, A. Direito penal. Tomo I. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

CÍCERO, M. T. De legibus. Text submitted by Alexandr Koptev [online]. Capturado em 02 jun. 2004. Disponível na internet: .

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. E. F. Dias e R. J. Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976.

DELMANTO, C. Código penal comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Trad. R. Machado. 15.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, pp. 15-37.

JESUS, D. E. Direito penal. Vol. I. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

JHERING, R. A evolução do direito. 2.ed. Salvador: Progresso, 1956.

LOMBROSO, C. L’uomo delinquente: inrapporto all’antropologia, allá giurisprudenza ed alle descipline carcerarie. 5.ed. Torino: Fratelli Bocca, 1896.

MARTINS, F. Curso de direito comercial. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

MONIZ SODRÉ DE ARAGÃO, A. As três escolas penais: clássica, antropológica e crítica (estudo comparativo). 5.ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1952.

NIETZSCHE, F. Aurora. (A) Trad. P. C. L. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

__________. Kritische Studienausgabe Berlin. New York: de Gruyter, 1980.

__________. Genealogia da moral: uma polêmica. (GM) Trad. P. C. L. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

__________. Obras incompletas. Trad. R. R. Torres Fº. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores)

NORONHA, E. M. Direito penal. Vol. I. 35.ed. São Paulo: Saraiva, 2000.


Notas

01 No § 13 da Segunda Dissertação da Genealogia da moral, Nietzsche menciona "os nossos ingênuos genealogistas da moral e do direito". Há, portanto, para ele, "genealogistas do direito", o que remete de imediato a uma "genealogia do direito", na qual um dos temas principais é o castigo.

02 Sem a distinção entre ativo e reativo é difícil entender o pensamento de Nietzsche. Deleuze sistematizou essa distinção no segundo capítulo de seu Nietzsche e a filosofia: "em um corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. Ativo e reativo são precisamente as qualidades originais que exprimem a relação da força com a força" (1976: 33).

03 Aníbal Bruno cita em nota de rodapé os §§ 229 e 230 do Código de Hamurabi: "se um arquiteto constrói para alguém e não o faz solidamente e a casa que ele construiu cai e fere de morte o proprietário, esse arquiteto deverá ser morto. Se fere de morte o filho do proprietário, deverá ser morto o filho do arquiteto" (1984: 75).

04 O talião é já expressão de uma limitação dos ímpetos punitivos do homem antigo. Escreve Bruno, "a força da vingança tem de ser medida pela intensidade da agressão, segundo a fórmula olho por olho, dente por dente. Introduzia-se, desse modo, na reação vingadora uma exigência de justiça e se punha um limite, no interesse do grupo, aos excessos a que naturalmente conduz a ira do ofendido" (1984: 72). Os excessos foram, desde muito cedo, reprimidos, de modo que talvez ainda não tenha havido sociedade politicamente organizada que não os tenha, antes de tudo, temido e combatido.

05 As presentes considerações de ordem jurídica, bem como as posteriores considerações de mesma ordem, baseiam-se, de modo geral, em noções de direito civil e comercial colhidas, sobretudo, no Curso de direito comercial de Fran Martins, em especial de seu capítulo primeiro, no qual o autor realiza sintética abordagem histórica do assunto.

06 É útil recordar aqui que a palavra que Nietzsche emprega é Strafe, que significa tanto "castigo" quanto "pena judicial".

07 De acordo com Noronha, "um Código não se deve escravizar a preconceitos de escolas. Por isso, disse bem a Exposição de Motivos de nosso diploma que nele os postulados clássicos fizeram causa comum com os princípios da Escola Positiva" (2000: 27). O diploma em questão é o Código Penal de 1940 (Decreto Lei nº 2.848), reformado pela Lei nº 7.209 de 1984, em pleno vigor no Brasil.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Thiago Mota Fontenele e Silva

bacharelando em Direito pela UFC e licenciando em Filosofia pela UECE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Thiago Mota Fontenele. Nietzsche e a genealogia do castigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1340, 3 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9540. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos