Artigo Destaque dos editores

Nietzsche e a genealogia do castigo

Exibindo página 1 de 2
03/03/2007 às 00:00
Leia nesta página:

Pretende-se mostrar que existem reflexões de interesse jurídico na filosofia nietzschiana, as quais podem ter papel relevante nos debates contemporâneos acerca da filosofia do direito penal.

Resumo: O objetivo deste trabalho é expor e interpretar a noção de genealogia do castigo em Friedrich Nietzsche (1844–1900). Com isso, pretende-se mostrar que existem reflexões de interesse jurídico na filosofia nietzschiana, as quais podem ter papel relevante nos debates contemporâneos acerca da filosofia do direito penal. A presente pesquisa foi realizada basicamente a partir de uma leitura imanente sucedida por uma análise aprofundada, apoiada em alguns de seus principais comentadores, do conceito de castigo formulado por Nietzsche na obra Genealogia da moral (1887). Os resultados da pesquisa são apresentados da seguinte maneira: 1. Da genealogia do direito, que consiste em uma abordagem resumida e provisória da aplicação da genealogia ao campo do direito; 2. Do castigo como procedimento de domesticação do homem, onde se parte da tese nietzschiana de que o processo civilizatório é o da cruel domesticação do "homem animal de rapina", para compreender a função do castigo como um procedimento deste processo; 3. Do nascimento, desenvolvimento e modificações do castigo, em que se trata propriamente da genealogia do castigo, localizando seu nascimento no contexto das relações contratuais primitivas, distinguindo castigo, que é anterior, de pena, que é posterior e revelando o caráter de afeto ativo da punição; e, finalmente, 4. Da multidão de sentidos do castigo, que apresenta os motivos que levam Nietzsche a apontar a indefinibilidade do castigo, dada a pluralidade de seus sentidos, mas que situa o prazer como a esquecida dimensão fundamental da pena. Em conclusão, pode-se dizer de modo geral que a genealogia interpreta o castigo como algo humano, demasiado humano, na medida em que revela a relação profunda entre dois de seus aspectos: a crueldade e o prazer.

Palavras-chave: Nietzsche, Genealogia, Castigo, Direito Penal.


Abstract: This text deals with the notion of genealogy of punishment by Friedrich Nietzsche (1844 – 1900). The present intention is showing that there are some reflections of juridical interest in the nietzscheanist philosophy, which could have a considerable role in the recent discussion about Criminal Law. The text has been developed basically from a deep reading of the concept of punishment elaborated by Nietzsche in the Genealogy of morality (1887). The results were presented like this: 1. The genealogy of law, ; 2. The punishment as a human domestication procedure ; 3. The birth, development and modifications of punishment ; and, finally, 4. The multitude of senses of punishment. referring to The concept of genealogy and The genealogy of punishment, which are followed by the Final considerations with a conclusive feature. The genealogy is a methodology of historical investigation and a kind of philosophy of history which once referred to the punishment reveals that it was born, developed and modified itself inside the context of primitive contractual relations. The long history of punishment expresses the radical fluidity of its meaning, what interdicts the elaboration of a definitive concept, although the genealogy is able to recover a dissimulated meaning of punishment: it is an active affect. In general, Nietzsche interprets the process of humanization of penalties as the refinement of cruelty, in which the cruel aspect of punishment is not gradually abolished but potentialized, therefore it is still there hidden even in the most civilized of the penalties.

Key-words: Nietzsche, Genealogy, Punishment, Criminal Law.


... definível é apenas aquilo que não tem história.

(Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral)


1.Da genealogia do direito

Escreve Edgar Magalhães Noronha: "a história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou" (2000: 20). O direito penal e o homem são co-originários, nasceram juntos porque desde que há homem, há crime; e desde que há crime, há castigo. O castigo é como que uma sombra sinistra que segue o homem em seu caminho pela história. Ele é seu lado sombrio e sinistro, mas que lhe é inafastável. Sinistra sombra, o castigo não é, todavia, estranho ao homem. Pelo contrário, é dele parte constitutiva e, num certo sentido, o constituiu enquanto homem. A história do homem é, em grande parte, a história do castigo.

Tal formulação, diretamente derivada da afirmação de Noronha, não é original. Longe disso. Trata-se de uma simples dedução do antigo brocardo romano ubi societas, ibi jus. De modo geral, aponta-se Cícero como o responsável, se não pela elaboração da idéia, muito provavelmente gestada espontaneamente na práxis jurídica dos antigos romanos, ao menos pelo registro escrito da fórmula efetuado no De legibus, a partir do qual ela veio a se tornar jurisprudência. Trata-se do célebre silogismo da juridicidade: Ubi homo, ibi societas. Ubi homo, ibi jus. Ergo, ubi societas, ibi jus. A conclusão que necessariamente decorre das premissas indica que o direito é tão antigo quanto a sociedade, isto é, indica a co-originariedade de societas e de jus. Sem invalidar a regra geral, Noronha simplesmente especifica que o direito penal é tão antigo quanto a própria sociedade. Aqui se acrescenta que tão antigo quanto esta é o castigo.

Ora, Nietzsche não parece se distanciar dessa tradição. Ao contrário, dir-se-ia que Nietzsche, com o conceito de moralidade dos costumes, leva à radicalidade a máxima de Cícero. No § 9 do primeiro livro de Aurora, ele afirma: "eticidade não é nada outro (portanto, em especial, nada mais!) do que obediência a costumes, seja de que espécie forem". Os homens são aí pensados fundamentalmente como seres de costumes. Desde que há homens, há costumes; e havendo costumes, há moralidade. A premissa maior deste raciocínio parece ainda mais plausível que a do silogismo da juridicidade (ubi homo, ibi societas). Mesmo que se quisesse defender, na esteira dos contratualistas, que não se pode afirmar que há sociedade desde que há homens, seria praticamente indefensável a afirmativa de que pode haver homens sem que haja costumes. Para Nietzsche, a vida social é, primeiramente, vida regulada por certos costumes, não importa quais eles sejam, isto é, não importa que condutas prescrevem como desejáveis. Se certos hábitos pré-históricos postos em pauta por Nietzsche, sobretudo a partir do uso da genealogia, são para nós, modernos, inaceitáveis, nem por isso eles deixam de ser costumes e nem por isso deixa de se fundar sobre eles uma moralidade, diversa da nossa, por certo, mas ainda uma moralidade. Segundo Nietzsche, é nosso "orgulho que nos torna quase impossível sentir afinidade com aqueles descomunais lances de tempo da ‘eticidade dos costumes’, que precederam a ‘história universal’ como história básica, efetiva e decisiva, que estabeleceu o caráter da humanidade" (A, I, § 18).

Com a introdução do conceito de moralidade dos costumes, Nietzsche habilita a filosofia a dar conta dos primórdios cruéis da humanidade. Esta filosofia, que concebe a história do homem como história da crueldade, é, como foi visto, precisamente a genealogia. Nietzsche aprofunda Cícero na medida em que pensa os costumes, ainda que terrivelmente cruéis, como base da sociabilidade. Segundo a lição de Cícero, infere-se a partir da sociabilidade, a juridicidade. Para Nietzsche, dos costumes se pode inferir moralidade. E como, nos primórdios, há uma indiferenciação quase que completa entre moralidade e juridicidade, pode-se afirmar que os costumes cruéis do homem pré-histórico são a base de um direito.

Uma das teses fundamentais da Genealogia da moral, que deve muito ao conceito de moralidade dos costumes, é a da dupla origem da moral. Ao colocar a questão do valor dos valores, a genealogia revela não uma, mas duas espécies de valoração de ordens distintas. Sobre o par de valores "bom e ruim" se erige a moral dos senhores. O par de valores oposto a este, "bem e mal", fundamenta a moral dos escravos (Nietzsche, GM, I §§ 2, 4, 7, 10, 11). Analogamente, pode-se pensar que há na Genealogia da moral uma dupla origem do direito e, assim, duas noções distintas de direito articuladas entre si.

A primeira é a noção de direito à crueldade, ou direito da crueldade, o "direito dos senhores" (GM, II, § 5). Nietzsche considera que mesmo nos primórdios da humanidade, nas comunidades selvagens, existia um direito, um sistema de regras dentro do qual se organizava a vida social. Este direito pré-histórico era, por prescrever a crueldade como virtude, uma espécie de economia da crueldade. A humanidade primitiva tinha um direito primitivo, muito cruel e pouco refinado, mas o tinha. Portanto, para Nietzsche, o mundo pré-histórico do "homem animal de rapina" não seria pré-jurídico nem antijurídico, mas o mundo de um outro direito, obediente a uma outra lógica estranha à nossa, uma espécie de lógica cruel. Este direito outro é o direito da crueldade, a crueldade como direito.

Mas há ainda uma outra noção de direito na Genealogia da moral, em geral, registrada através do termo "direito", grafado entre aspas. Esta noção equivalente à acepção tradicional de direito, na qual direito é precisamente aquilo que se opõe à crueldade. Logo, não poderia haver um "direito cruel", pois a essência mesma do direito seria corrigir os costumes cruéis dos homens primitivos, reprimindo seus instintos malignos e interditando seu gozo. Para Nietzsche, neste sentido preciso, o "direito" foi inicialmente vedado pelos costumes, era o ilícito, o imoral, o antijurídico. "O ‘direito’ foi por muito tempo um vetitum [algo proibido], um abuso, uma inovação, apareceu com violência, como violência, à qual somente com vergonha de si mesmo alguém se submetia. Cada pequenino passo que se deu na terra foi conquistado ao preço de suplícios espirituais e corporais" (Nietzsche, GM, III, § 9). Se o sentido da cultura é a domesticação do "homem animal de rapina", é o processo cruel de fazer do bárbaro o civilizado, a instituição do "direito", da civilização, deu-se precisamente através da oposição que este novo direito fez ao cruel direito dos primórdios. E esta oposição foi inevitavelmente violenta.

Ao tematizar o problema da origem do direito, a genealogia concebe, portanto, duas noções distintas de direito, como já concebera duas diferentes morais. O primeiro, o direito cruel dos senhores, que se erige a partir de uma base violenta, impondo a crueldade como regra. O segundo, o "direito" civilizado, direito dos escravos, que se constrói precisamente em oposição ao primeiro, como uma negação deste que, com o avanço do processo de domesticação, viria deixar de ser considerado como direito. Ocorre que o direito que se opõe à crueldade é também cruel na medida em que contradiz os valores da moral vigente nos primórdios, a moralidade dos costumes, repelindo os instintos e se impondo com violência. O paradoxo deste conceito tradicional de direito é o fato de ele ser uma oposição à violência que se serve da violência, uma violenta não-violência, uma vez que no momento em que este direito se origina ele violenta a cruel moral vigente. Para Nietzsche, em suas origens, o direito é sempre violência (GM, III, § 9). Por isso, o ponto de cruzamento entre aquelas duas acepções do direito é precisamente a crueldade.

Estas considerações de ordem geral acerca do que se poderia chamar de uma "genealogia do direito" são evidentemente muito superficiais, mas são suficientes para mostrar que há na Genealogia da moral uma "genealogia do direito" [01]. As duas noções de direito apresentadas aqui não dão conta da amplitude com que o tema "direito" é tratado por Nietzsche na Genealogia da moral, entretanto, ir além disso seria ultrapassar os limites deste trabalho. De todo modo, tais considerações, ainda que abreviadas, servem de pressuposto a uma "genealogia do castigo", tema das páginas seguintes.


2.Do castigo como procedimento de domesticação do homem

O primeiro elemento do castigo que a genealogia ressalta é sua função procedimental no processo de domesticação do "homem animal de rapina", ou seja, é aquilo que Nietzsche chama de função mnemônica, o procedimento mnemotécnico do castigo.

O sentido da cultura, segundo a genealogia, é a domesticação do "homem animal de rapina". Este é o processo pelo qual a barbárie é superada e a civilização se constitui paulatinamente. O homem, em Nietzsche, não é um animal gregário por natureza: a sociabilização do homem é um processo violento, cruel. O movimento inicial da domesticação é a aquisição da capacidade de fazer promessas. Escreve Nietzsche, "criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?..." (GM, II, § 1). A faculdade de prometer é o pressuposto fundamental da sociabilidade. Em sentido contrário, a incapacidade de prometer é denotativa da animalidade humana, de sua insociabilidade. Os homens somente entram em sociedade quando finalmente passam a dispor dessa exigência básica do convívio social que é a possibilidade de fazer promessas.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Ocorre que no homem o esquecimento é uma "força inibidora ativa" e não uma "simples vis inertiae [força inercial]" (Nietzsche, GM, II, § 1) [02]. Nietzsche aproxima os eventos mentais do processo digestivo, através da noção de "assimilação psíquica", que é análoga à de "assimilação física". A "assimilação psíquica", uma das muitas metáforas fisiológicas de Nietzsche, denuncia a animalidade do esquecimento. Na natureza, o homem é, como todo animal, um ser esquecido. A perda do esquecimento ou mesmo sua redução representa para ele uma espécie de doença. "O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar, diz Nietzsche, pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’..." (GM, II, § 1). O esquecimento é ativo, é um sintoma de saúde. Ocorre que o esquecimento inviabiliza a capacidade de prometer e, consequentemente, impede a sociabilização. Se um homem promete e se esquece de sua promessa, o prometido não se efetiva. Por isto, foi preciso que se desenvolvesse no homem a capacidade de se lembrar, a "memória da vontade", que é a faculdade oposta ao esquecimento. "Entre o primitivo ‘quero’, ‘farei’, e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer" (Nietzsche, GM, II, § 1). Se a faculdade de prometer é pressuposta à sociabilização, a memória é necessária à capacidade de fazer promessas.

A questão é, então, colocada da seguinte maneira: "– ‘Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?’... Esse antiquíssimo problema, pode-se imaginar´´ não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica" (Nietzsche, GM, II, § 3). Mnemotécnica é aí a técnica, o procedimento pelo qual o homem adquire uma memória. Ora, este processo não é espontâneo, mas cruel. Escreve Nietzsche,

Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória" – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. (...) Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica (GM, II, § 3).

A memória se constitui, portanto, a partir da dor. O homem se serve da dor como um procedimento através do qual ele engendra, inscreve em si uma memória. Este uso da dor é expressão do modo pelo qual o homem começa a se distinguir do animal, uma vez que um animal jamais utilizaria, fosse pelo que fosse, a dor. Assim o homem começa a ingressar na sociedade. Os sacrifícios humanos como sanções sacrais expiatórias não são senão exemplos desta utilização propriamente humana da dor. Eis aí a primeira tematização do castigo na Genealogia da moral: o castigo tem uma função na domesticação do homem na medida em que é expressão do uso da dor, é sua instrumentalização no processo de constituição da memória.

Os castigos cruéis da humanidade primeva têm uma função mnemônica. Eles fornecem o procedimento pelo qual se inscreve no homem não só a capacidade de prometer e a memória, que é seu pressuposto, mas a consciência e, por fim, própria razão. Foi sobre o fundo de sangue e horror dos castigos primitivos que se ergueram essas características especificamente humanas, com as quais o homem pôde, enfim, tornar-se um ser social. Este é apenas o início do longo processo de domesticação do "homem animal de rapina" no qual, como foi dito, o castigo é um procedimento fundamental.


3.Do nascimento, desenvolvimento e modificações do castigo

De modo geral, fazer genealogia do castigo é reconstituir as condições e circunstâncias nas quais nasceu, sob as quais se desenvolveu e se modificou o castigo. É, portanto, colocar a questão de suas origens, no sentido preciso em que o termo é empregado na Genealogia da moral, enquanto origem no mundo, origem imanente. A genealogia do castigo, portanto, coloca a questão do seu nascimento.

O contexto do nascimento do castigo é não moral, mas material. Afirma Nietzsche que "o castigo, sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade" (GM, II, § 4). Se o castigo pode ser pensado inicialmente como forma de reparação, isto é, como uma compensação por um mal ou por um prejuízo qualquer, ele surge no contexto material da dívida, prescindindo, por exemplo, da noção moral de culpa. É que o castigo precede a culpa.

Mas donde vem esta idéia de reparação, que orienta a concepção primitiva de justiça? Ocorrido um dano, entende-se que ele pode de algum modo ser reparado e como que restituído o status quo ante. Este sentimento incipiente de justiça assumiu na antigüidade a forma do talião. O "olho por olho, dente por dente" tornou-se, desde muito cedo, lei e foi positivado nos principais textos do Antigo Oriente: encontra-se no Código de Hamurabi da Babilônia de 2.083 a.C. [03]; no Pentateuco, orientando as leis penais dos Hebreus, contidas no Êxodo, no Levítico e, sobretudo, no Deuteronômio, bem como no Talmud; e ainda na Lei de Manu da Índia, que data do século XIII a.C.. O talião é expressão da idéia de que um dano pode ser reparado com um outro dano, uma dor se compensa com outra dor. Porém, qual é a origem desta compensação?

A genealogia do castigo tem seu ponto de partida na avaliação dessa relação de proporção, dessa equação entre danos, entre dores ou entre danos e dores, a equação que se expressa nos termos sagrados e consagrados pelo "olho por olho". Como pode uma dor equivaler a um dano? Como pode um olho furado ser compensado com outro olho furado? Em que sentido este segundo olho substitui, restitui o primeiro? A suposta obviedade dessa questão obscurece aquilo que é mais relevante e que determina o caráter da equação. Uma genealogia do castigo mostra que não há nada de óbvio aí e que, se algo foi tratado como óbvio, isso se deveu a certas razões. A genealogia do castigo se funda precisamente na colocação de uma questão: donde vem a equivalência entre dano e dor?

Escreve Nietzsche,

durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinqüente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela idéia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador. De onde retira sua força esta idéia antiqüíssima, profundamente arraigada, agora talvez inerradicável, a idéia da equivalência entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de "pessoas jurídicas", e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico (GM, II, § 4).

Portanto, o contexto em que surgiu o talião [04], isto é, em que o castigo nasceu, é o da primitiva relação contratual entre credor e devedor, que é nos primórdios uma circunstância puramente material, na qual considerações de ordem moral não podem ser incluídas. Esta relação entre credor e devedor se dá, em princípio, na forma básica da compra e venda. Inicialmente, a relação comercial surge como escambo, como troca direta de uma determinada coisa por outra. Porém, uma vez adquirida a capacidade de prometer, o homem introduz, nesta relação, o crédito. As relações comerciais passam a se basear na fidúcia entre vendedor e comprador, isto é, na confiança de que à prestação efetuada pelo vendedor o comprador realizará, dentro de um certo prazo, uma contraprestação. O comprador diz "farei" e o vendedor aceita sua proposta, crendo que a promessa será efetivamente cumprida. Com isso, vendedor e comprador se tornam credor e devedor [05].

É nas relações contratuais primitivas que se coloca praticamente o problema da aquisição da capacidade de prometer. "Precisamente nelas fazem-se promessas; justamente nelas é preciso construir uma memória naquele que promete; nelas, podemos desconfiar, encontraremos um filão de coisas duras, cruéis, penosas", escreve Nietzsche (GM, II, § 5). E segue:

o devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda "possua", sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida (...). Sobretudo, o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas, por exemplo, cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da dívida – e com base nisso, bem cedo e em toda parte houve avaliações precisas, terríveis em suas minúcias, avaliações legais de membros e partes do corpo (GM, II, § 5).

É fundamentalmente o corpo do devedor que serve de garantia. O corpo não é mais apenas o lugar donde emana a voz. Torna-se agora, sobretudo, a base que dá solidez à palavra. A palavra não é mais mera dicção, ela é agora promessa. O homem inventa, então, o corpo sujeito a suplícios como penhor da palavra. Mas por que pode este corpo ser empenhado, como pode ele servir de caução em um negócio? Como podem as humilhações e torturas de que o credor dispõe em caso de não pagamento da dívida servir de compensação a um crédito inadimplido?

Eis a resposta de Nietzsche:

Tornemos clara para nós mesmos a estranha lógica dessa forma de compensação. A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa – a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a volúpia de "faire le mal pour le plaisir de le faire", o prazer de ultrajar (...). A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade (Nietzsche, GM, II, § 5).

O castigo nasce precisamente no momento em que a dor infligida ao corpo do devedor pelo credor se torna a compensação devida em face do prejuízo com que este teve de arcar. Diz Deleuze, "a cultura sempre empregou o seguinte meio: fez da dor um meio de troca, uma moeda, um equivalente; precisamente o exato equivalente de um esquecimento, de um dano causado, de uma promessa não cumprida" (1976: 112). A genealogia revela que o castigo nasce como liame da equação entre dano e dor. Sua função primordial é servir de mediação entre os homens. Afirma Deleuze, "a cultura referida a esse meio chama-se justiça; o próprio meio chama-se castigo. Dano causado = dor sofrida, eis a equação do castigo que determina uma relação do homem com o homem". E conclui que "é no crédito, não na troca, que Nietzsche vê o arquético (sic) da organização social" (1976: 112).

Com isso, entretanto, a questão ainda não está resolvida. De que o castigo é, em seu nascimento, a introdução da dor como um meio compensatório em face de um dano já não resta dúvida. Mas é ainda preciso dar outro passo atrás e tentar compreender em que sentido pode a dor ser esta compensação. Há que se indagar como a dor pode significar um prazer, como estes opostos, entre os quais a tradição apontou uma diferença de natureza, podem se encontrar no castigo. A questão é desse modo deslocada até assumir a seguinte formulação: como a dor pode ser um prazer?

A dor compensa o dano porque representa um prazer, evidentemente não para o devedor, que sofre o castigo, mas para o credor que goza de fazê-lo sofrer. Impingir dor como castigo ao criminoso era o merecido prazer de que fruía aquele que sofrera o dano, era sua "satisfação íntima", seu "extraordinário contraprazer". Imputar o castigo, antes que a culpa, era um gozo, era gozar de fazer o mal por simplesmente o fazer, aquilo que Nietzsche chama de "prazer de ultrajar". A dor do castigo é um prazer. Com base nisto, a genealogia chega a um axioma:

Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda – eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que "preludiam" o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo! (Nietzsche, GM, II, § 6).

Dor e prazer são aí aproximados, não são mais opostos por essência, caminham lado a lado, como que imbricados. Com isso, Nietzsche coloca em outros termos o problema da dor. O sofrimento não surge como o pressuposto fundamental da negação da vida. É neste ponto que Nietzsche diverge dos niilistas para conceber sua filosofia trágica. A dor é pensada como o pressuposto de um prazer mais intenso, a dor é um "tonicum", um "chamariz" para a vida. Para o credor, a dor impingida pelo castigo a outrem é um prazer e, por isso, é ativa.

Caracterizada desse modo a relação contratual primitiva entre credor e devedor, que a genealogia concebe como aquilo que forneceu as condições e circunstâncias do nascimento do castigo, Nietzsche passa a considerar os subseqüentes desenvolvimentos e modificações desta relação, que determinaram o contexto das posteriores transformações do castigo.

Para o filósofo, num dado momento, a relação contratual comercial vem a ser transposta pela a relação contratual entre a comunidade e seus membros, tornando-se política.

O sentimento de culpa, da obrigação pessoal (...) teve origem (...) na mais antiga e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra. Não foi ainda encontrado um grau de civilização tão baixo que não exibisse algo dessa relação. (...) Comprar e vender, juntamente com seu aparato psicológico, são mais velhos inclusive do que os começos de qualquer forma de organização social ou aliança: foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante sentimento de troca, contrato, débito [Schuld], direito, obrigação, compensação, foi transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (em sua relação com complexos semelhantes), simultaneamente ao hábito de comparar, medir, calcular um poder e outro. (Nietzsche, GM, II, § 8).

A relação contratual credor e devedor, de caráter privado, forneceu a forma básica a partir da qual finalmente se estabeleceu a relação contratual política, uma vez que mesmo nas comunidades humanas mais primitivas, segundo Nietzsche, as noções comerciais da compra e venda, da troca, do contrato, da dívida, do direito, da obrigação, da compensação já se encontram. A mediação entre comprador e vendedor, por fim, transmutou-se na mediação política entre a comunidade e os indivíduos.

Nietzsche afirma que "também a comunidade mantém com seus membros essa importante relação básica, a do credor com seus devedores. Vive-se numa comunidade, desfruta-se as vantagens de uma comunidade (e que vantagens! por vezes as subestimamos atualmente), vive-se protegido, cuidado, em paz e confiança, (...) desde que (...) o indivíduo se empenhou e se comprometeu com a comunidade" (GM, II, § 9). Na relação contratual política, a comunidade assume o papel do credor que fornece as vantagens da vida comunitária, desde que os indivíduos, que se constituem como devedores, efetivamente cumpram certas exigências do convívio social. Os indivíduos passam a ter com a comunidade uma dívida, que será saldada se eles não atentarem contra sua credora. Há, portanto, partidas e contrapartidas mútuas entre comunidade (credor) e membros (devedor).

Caso os devedores não façam a sua parte, "a comunidade, o credor traído, exigirá pagamento, pode-se ter certeza", escreve Nietzsche (GM, II, § 9). Este pagamento será efetuado na forma do castigo. Com isso, o castigo deixa de ser de ordem privada para tornar-se público, político, jurídico. O castigo vem, assim, a ser pena [06] O castigo, que nasce nas relações contratuais entre credor e devedor, é num certo sentido uma espécie de direito privado (Nietzsche, GM, II, § 19), não podendo ser entendido como propriamente civil, uma vez que é anterior à própria constituição da sociedade. A pena, que lhe é posterior, já nasce no âmbito político da relação contratual entre comunidade e membros, tendo, portanto, de ser pensada como uma espécie de direito público. O castigo vem primeiro, a pena, depois.

A comunidade aprende cedo a fruir dos prazeres do castigo, como faz um credor. A pena se torna pública ao ser publicada no corpo do condenado e tal publicação assume a forma de um espetáculo, dirigido a todos, no teatro da crueldade da praça central. A celebração dos suplícios é um dos mais antigos prazeres coletivos dos homens e num certo sentido constituiu a humanidade. Daí Nietzsche afirmar, no § 6 da Segunda Dissertação, que "no castigo também há muito de festivo!" e repetir, no aforismo seguinte, que "também no castigo há muito de festivo!..." (GM, II, § 7).

A pena, enquanto festejo público, assume muitas vezes a forma da sanção sacral, dos sacrifícios humanos, amplamente difundidos nas comunidades primitivas. Todavia, maiores considerações acerca do conteúdo moral e religioso do castigo segundo Nietzsche fogem ao plano deste trabalho. Por enquanto, basta reter os aspectos centrais, já tratados, da genealogia do castigo: seu nascimento, seu desenvolvimento e suas modificações, ocorridos no contexto das relações contratuais primitivas, bem como a passagem do castigo, em sentido mais amplo, à pena, em acepção jurídica.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Thiago Mota Fontenele e Silva

bacharelando em Direito pela UFC e licenciando em Filosofia pela UECE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Thiago Mota Fontenele. Nietzsche e a genealogia do castigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1340, 3 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9540. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos