Estupro contra a vítima mulher.

Uma breve análise doutrinária acerca da "revitimização" trazida em face da alteração do artigo 225 do Código Penal, dada pela Lei n° 13.718/18

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17/12/2021 às 11:41
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4. VITIMOLOGIA

Considerado o pai da vitimologia, pois criou esse termo em 1945, o advogado israelense Benjamim Mendelsohn, iniciou os seus estudos com as consequências do holocausto, ou seja, foi com a Segunda Guerra Mundial que iniciou-se uma maior preocupação com a vítima.

Conforme Câmara, citado por Anderson Burke (BURKER,2019, p. 29):

O movimento vitimológico, surgiu após as barbáries e genocídios praticados durante a segunda guerra mundial, o que evidenciou a necessidade de criação de mecanismos e sistemas voltados para a tutela dos interesses do ofendido quando violado em seus bens jurídicos mais essenciais para uma vida digna.

Nesse sentido, a Escola Positiva, no século XIX, representada por diversos estudiosos, sobretudo, pelo criminólogo Cesare Lombroso, que embora tinha o delinquente como a sua análise principal, não deixou de evidenciar a vítima, mesmo que nas entrelinhas, e que a necessidade de estudá-la seria tão importante quanto a do criminoso, sendo que o foco principal estaria em sua proteção.

Dessa forma, a vitimologia estuda não só o comportamento da vítima, mas a sua relação com o delinquente e o que pode ser identificado para a apuração do crime. Logo, é uma ciência que analisa a vítima e a sua relação com o crime e com o criminoso.

Além disso, a vitimologia se interessa em analisar os efeitos do crime na pessoa ofendida que muitas vezes não é amparada pelo sistema penal, vindo a sofrer a revitimização. Assim, esses estudos tem como um dos objetivos a proteção do ofendido.

Para uma melhor compreensão do significado de vitimologia na criminologia, deve-se analisar o termo "vítima".

Para Anderson Burke:

O termo vítima, pela leitura do nosso Código de Processo Penal, é sinônimo de "ofendido", "parte" ou "pessoa ofendida", o que leva a concluir que é o sujeito passivo do delito, ou seja, aquele que foi diretamente prejudicado pela conduta comissiva ou omissiva delituosa (2019, p.24).

Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se entender que vítima é aquele que sofreu ou sofre algum dano, ora moral, ora material. E que assim concluído pela criminologia, direito penal e psicologia, essa pode ser afetada também pelo seu estado psíquico, econômico, físico e até mesmo social.

Desse modo, o bem jurídico do ofendido em determinados delitos podem sofrer danos que muitas vezes são irreparáveis. Assim acontece no crime de estupro, quando a vida da vítima, a sua honra, e a sua liberdade sexual passam por um processo de dilaceração que nem mesmo o processo penal em consonância com os direitos e garantias fundamentais podem reparar os danos causados.

4.1. A vitimização e as suas classificações

Existem 3 graus de vitimização: a vitimização primária, a secundária e a terciária.

Na vitimização primária: ocorre a efetivação, se aquele indivíduo tornou-se realmente vítima do crime, ou seja, quando ela é vitimizada com a conduta do criminoso de forma direta. Além disso, pode sofrer danos em seus bens jurídicos.

A vitimização secundária: acontece quando o processo penal expõe a vítima, tornando-a vulnerável e constrangida perante a sociedade. Levando-a a sofrer novamente o delito, seja de maneira psicológica ou moral.

Vitimização terciária: neste grau de vitimização em que muitas vezes é decorrente da secundária, se configura no momento em que a sociedade passa a julgar e punir, seja com palavras nefastas ou a própria exposição da vítima, culpabilizando pelo crime sofrido ou até mesmo quando o Estado e a própria sociedade negligencia a pessoa ofendida. Essa falta de apoio da família, órgãos públicos e sociedade, causam danos indeléveis na vida vítima.

4.2.1. Vitimização secundária

Ao levar alguém que já foi vítima de determinado crime a revivê-lo, quando é pedida para que ela relate todo o fato ocorrido em vários momentos do processo, percebe-se, dessa forma, a configuração da prática de revitimização ou vitimização secundária. Termo utilizado na vitimologia, bem como no direito penal para configurar àqueles que sofrem pelo mesmo fato duas vezes, ora pela violência psicológica, ora pela violência moral. Quando de modo massacrante o processo penal, a sociedade, o meio em que vive faz com que a vítima renove as dores do crime sofrido.

Anderson Burke dispõe:

Seus anseios, necessidades e possibilidade de reparação patrimonial ou psicológica são ignorados pelo Estado, ainda que se tenha na Carta Magna diversos direitos e garantias fundamentais positivados em sentido contrário à forma pela que é tratada pelo atual sistema penal (BURKE,2019, p. 29).

Esse tratamento causa um sofrimento a mais, é quando a vítima é massacrada e vulnerabilizada não só durante a fase processual, como também ao prestar depoimento ou na apuração do caso. Pode-se dizer que este sofrimento por vezes chega a ser tão ou mais doloroso quanto o crime que contra ela foi executado.

Destarte, a persecução penal torna-se mais prejudicial que a própria impunidade do agressor.

4.2.2. Vitimização secundária nos casos de estupro contra a mulher

Ao analisar sistema jurídico brasileiro, compreende-se que as mulheres vítimas do crime de estupro não recebem a proteção adequada, além disso na maioria dos casos essas vítimas têm a sua vida pessoal, os seus dramas sofridos, e o seu caso totalmente exposto, não somente pelo sistema acusatório, como também pelos meios de comunicação. Aqueles que deveriam acolher, são os que cometem as mazelas do processo penal, tornando a mulher vulnerável durante a investigação, bem como na fase processual. E o agressor é quem muitas vezes tem os seus dados protegidos.

A revitimização ocorre nesse momento, quando a vítima, principalmente a vítima mulher, além de não ser acolhida, ela é exposta de maneira vexatória pela sociedade e autoridades do sistema jurídico. Como afirma o autor Antônio Beristain:

Ao longo do processo penal (já desde o começo da atividade policial), os agentes do controle social, com frequência, se despreocupam com (ou ignoram) a vítima; e, como se fosse pouco, muitas vezes a vitimam ainda mais. Especialmente em alguns delitos, como os sexuais. Não é raro que nessas infrações o sujeito passivo sofra repetidos vexames, pois à agressão do delinquente se vincula a postergação e/ou estigmatização por parte da polícia, dos médicos forenses e do sistema judiciário (BERISTAIN,2000, p. 106).

Argumenta, ainda, Antônio Beristain que:

O pessoal judicial, às vezes, se esquece de que as vítimas necessitam de um tratamento especial e não cumpre as medidas adequadas para a sua atenção. Com frequência, desconhece algumas das facilidades que o sistema judicial oferece às vítimas, ou essas facilidades não chegam ao grau desejado (BERISTAIN,2000, p.108).

Seguindo essa premissa, ainda que existam direitos e deveres que deveriam ser seguidos na apuração desse tipo delituoso, o que acontece é o contrário, e, portanto, mais uma problemática ressurge na sociedade, sendo esta: a vitimização secundária nos casos de estupro contra a mulher.


5. DA ASSISTÊNCIA À MULHER VÍTIMA DE ESTUPRO

O crime de estupro presente no art. 213 do Código Penal, pode ser praticado ou sofrido por qualquer pessoa, no entanto aqui destacaremos a vítima mulher. Como foi observado, o ordenamento jurídico brasileiro deve se preocupar, sobretudo, com aquele que sofreu os danos do crime e não somente em punir o criminoso. Pois quando a vítima não recebe o atendimento legal, ela acaba passando por um processo de revitimização.

A Lei n°10.778/2003 incide sobre a notificação compulsória em todo o território nacional nos casos de violência contra a mulher. Em consonância, apresenta-se também a Lei n° 12.845/2013, que estabelece todo o procedimento no atendimento às vítimas de violência sexual. As duas leis visam prestar uma assistência adequada. Ainda nessa linha de raciocínio, a Resolução do Conselho Nacional de Justiça n° 427 de 20 de outubro de 2021, que abrange sobre a matéria peal e processual penal, traz como objetivo a ampliação a proteção a vítimas e testemunhas por meio de proteção à sua identidade, endereço e dados qualificativos.

A Resolução além de ampliar a proteção de dados da vítima, também deixa explicito em seu artigo 4°, § 2° que os servidores do cartório deverão passar informações em relação à Política Institucional do Poder Judiciário de atenção e apoio às vítimas de crimes e atos infracionais.

O direito brasileiro é dotado de leis, resoluções, portarias, dentre outros instrumentos utilizados para informar e proteger o cidadão, porém a problemática existente é no momento de se colocar em prática. Pois até mesmo as autoridades perpassam os limites normativos ou os próprios entes assistenciais não fornecem uma proteção que preze pela integridade física, moral e psicológica da vítima.


6. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Previsto no artigo 1°, inciso I da Constituição da República Federativa do Brasil, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana expressa que todos têm o direito ao respeito e ser protegido contra qualquer ato desumano e degradante. Ainda que não ultrapasse a integridade física.

Segundo Fernando Capez:

A dignidade da pessoa humana é uma referência constitucional unificadora dos direitos fundamentais inerentes à espécie humana, ou seja, daqueles direitos que visam a garantir o conforto existencial das pessoas, protegendo-as de sofrimentos evitáveis na esfera social (2010, p.22).

Por essa razão, o Estado Democrático de Direito afirma que toda pessoa humana tem o direito ao reconhecimento de sua dignidade, e objetiva assegurar para que não seja violado. Declarando ainda garantir condições mínimas para uma vida digna.

6.1. DA DIGNIDADE SEXUAL DA MULHER

A dignidade sexual da mulher deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, deve estar assegurada pela Constituição Federal, bem como pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969.

O autor Fernando Capez afirma que:

O que se tutela é a dignidade da pessoa humana, sob o aspecto sexual, e os direitos a ela inerentes, como a sua liberdade, sua integridade física, sua vida ou sua honra. Ao lado disso, busca-se a proteção também da moralidade pública sexual, cujos padrões devem pautar a conduta dos indivíduos, de molde a que outros valores de grande valia para o Estado não sejam sobrepujados (CAPEZ,2010, p.23)

Destaca-se ainda a Lei n° 14.245 de 22 de novembro de 2021, Lei Mariana Ferrer que discorre sobre a proibição e humilhação de vítimas de crimes sexuais em audiências. Conforme a lei, ficam vedadas a manifestação sobre fatos que não constem nos autos e que gerem ofensas a dignidade da vítima ou testemunhas, bem como proferir palavras desonrosas. Além disso, em casos de crimes sexuais, a pena será acrescida de um terço para aquele que cometer o crime de coação durante o processo, para favorecer interesse próprio ou alheio.

Quando a liberdade sexual da mulher é ofendida, a sua moral, o estado psicológico e o físico também podem sofrer violações. E não são raras as vezes que isso acontece. Embora tenham ocorrido avanços tecnológicos, das mídias sociais e ampliação das leis de proteção, a mulher ainda passa por momentos constrangedores em que a sua privacidade sexual é exposta, e, por consequência, tem a sua dignidade sexual violada.

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7. CONCLUSÃO

O desenvolvimento deste trabalho procurou mostrar os argumentos contrários ao tipo de ação penal pública promovida pelo Ministério Público no crime de estupro, por provocar um possível ato de vitimização secundária, que como foi observado são momentos conexos que a vítima sofre constrangimentos, ofensas, intimidações, antes e durante a persecução criminal. Podendo ser cometida, ainda, por membros do parquet, autoridades policiais e judiciais. Chegando, a vitimização, ser praticada também pelos seus familiares e sociedade, pois muitas vezes tem o seu caso propagado pelas mídias sociais.

Analisou-se que a violência sexual traz consigo os demais tipos de violências, como a moral, a física e a psicológica. E essa sobrecarga para o ofendido, pode gerar em suicídio ou ainda ter que conviver com a angústia de ter sofrido um crime de estupro. Visto que na tentativa de solucionar esses casos, o Estado faz a pessoa ofendida a se questionar sobre a culpa, além de renovar suas dores todas as vezes ao esclarecer os fatos, seja na fase investigatória ou na fase processual.

Ao destacar a mulher na posição de ofendida, comprovou-se a importância de discutir também a evolução histórica da figura feminina no meio social, bem como sua relação com o sistema jurídico brasileiro.

A pesquisa exposta demonstra os posicionamentos opostos de alguns doutrinadores, como o professor Aury Lopes Jr., que deixa evidente a sua aversão a ação penal pública incondicionada no crime de estupro. Ainda que existam leis que versem sobre a proteção da vítima de violência sexual, o que se verificou foi que o ofendido não deixa de sofrer as mazelas que o processo penal provoca. Podendo ainda recair sobre a revitimização, visto que ocorre quando o processo penal expõe a vítima, de uma forma humilhante que a torna constrangida, levando a sofrer novamente perante a sociedade.

Por ser um crime que causa repercussão no meio social, fica evidente que o poder de escolha do ofendido sobre a representação é crucial. Contudo, foi discutido também o fato da mulher como vítima do crime de estupro não ser mais questionada sobre a sua vontade de representar, o que se destaca é o Estado agindo para punir aquele que praticou o delito, levando a vítima a se apresentar em todas as fases do processo, desde a investigação criminal, ainda que não deseje.

Nesse sentido, foi possível analisar que as consequências geradas na vida privada da mulher chega a ser em determinados casos tão ou mais prejudicial que o próprio que crime. Apresentando impactos inerentes a sua dignidade sexual. Pois, os princípios fundamentais constitucionais que versam sobre a liberdade e privacidade da pessoa humana, são violados mesmo quando há punições para quem ultrapassa tais limites. Ainda assim, um dos direitos destacados pela Constituição Federal de 1988, que é o direito de escolha do indivíduo fica omitido, sobretudo para a vítima mulher que lutou para garantir os seus direitos. Como também, foram sancionadas diversas leis que visam proteger a vítima ou prevenir a ocorrência das infrações trazidas pela exposição dos casos de violência sexual.

Contudo, apesar de o ordenamento jurídico brasileiro ser dotado de leis e instituições que prezem pela assistência, e apoio as vítimas de violência sexual, ainda encontra-se distante da real situação, pois na prática esses instrumentos não são respeitados e o funcionalismo não ocorre adequadamente, levando a pretensa vítima a sofrer já nos primeiros passos da persecução criminal.


REFERÊNCIAS

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LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.

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MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. 2.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001.

SERAFIM, Antonio de Pádua; de BARROS, Daniel Martins; RIGONATTI, Paulo Sérgio. Temas em psiquiatria forense e psicologia jurídica II. 1.ed. São Paulo: Editora Vetor, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38.ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

ZACARIAS, André. Manual do criminalista. 2.ed. São Paulo: Editora EDIJUR, 2015

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