A decisão de autorizar a prisão dos réus condenados pelo tribunal do júri de Porto Alegre por causa do incêndio da Boate Kiss é mais uma entre tantas interpretações incorretas do caso. É notável a confusão entre a gravidade do fato e a gravidade da conduta. Como aquele é causado por este, é recorrente que em situações graves a opinião popular se deixe levar pela indignação, e perca de vista o senso de justiça que o direito prevê para cada caso.
Vários juristas e advogados já se manifestaram em uma petição de repúdio à decisão monocrática. Parece notório o equívoco do ministro, conhecido processualista civil de toda comunidade jurídica. Infelizmente, além dele, membros do Ministério Público e uma quantidade indefinida de advogados e operadores do direito, possivelmente com a objetividade jurídica obnubilada pela emoção quando não pela demagogia jurídica , não conseguem enxergar a diferença entre dolo eventual e culpa consciente nessa terrível tragédia que ceifou a vida de centenas de jovens na boate.
É simplesmente incrível que, depois de mais de 80 anos de vigência do Código Penal, da gigantesca produção doutrinária e, principalmente, jurisprudencial, ainda haja tanta dificuldade de se distinguir um crime do outro em casos concretos, causando erros crassos.
No dolo eventual, por óbvio, o crime decorre de indiferença ao resultado, e há inequívoca presença de conduta malvada do sujeito, para quem o fim danoso é irrelevante, como no caso do ladrão que atropela pedestres para fugir da polícia. A indiferença com o resultado é presumida, uma vez que a representação mental do bandido é notoriamente desonesta: terminar o roubo com êxito. Célebre a lição de Heleno Fragoso: Há dolo eventual quando o agente diz a si mesmo: seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei. Revela-se, assim, a indiferença do agente em relação ao resultado (citado no acórdão do TJSP RA 88.153-3 Rel. Márcio Bártoli)1
Já no caso da culpa consciente, sucede um fenômeno de sutil proximidade com o dolo eventual, mas com uma denotação inconfundível. Aqui, o agente criminoso não tem indiferença com o resultado. Conforme nos ensina a doutrina, na representação mental de quem agiu com culpa consciente não está a mesma índole desonesta de quem atua indiferentemente a lesionar o bem jurídico tutelado pela lei penal. Regis Prado, ao citar o jurista alemão Hans Frank, faz um contraste claro e preciso entre um e outro:
[...] existe culpa consciente quando: se acontecer tal resultado, deixo de agir. O agente tem consciência do fato, não se conforma com ele, mas espera que não se verifique ou que possa evitá-lo. Porém o critério decisivo se encontra na atitude emocional do agente. Sempre que, ao realizar a ação, conte com a possibilidade concreta de realização do tipo de injusto, será dolo eventual. De outra parte, se confia que o tipo não se realize, haverá culpa consciente. 2
Portanto, na culpa consciente se encontra um comportamento emocional do agente inconfundível com o dolo eventual, vez que o motivo de sua conduta invariavelmente é conduzida pela ideia de que nenhum dano ocorrerá: ele confia que não falhará, mesmo percebendo a possibilidade do resultado; não encara a possibilidade de lesionar de modo indiferente, irrelevante ou secundário, como ocorre no dolo eventual.
O clássico exemplo que ilustra essa distinta natureza da culpa consciente é o da pessoa embriagada que mata no trânsito em decorrência de seu estado físico e mental. Por mais irresponsável que seja seu comportamento, não há como deduzir, prima facie e sem evidências seguras, que matar ou não seja um resultado indiferente, que "assumiu o risco", afinal, nessas circunstâncias, não há como presumir a presença do dolo.
De outro modo, como supor em outro bom e conhecido exemplo que o pai da noiva, ao sair completamente embriagado da festa de casamento, teria agido com indiferença dolosa ao matar dezenas de crianças saindo da escola? Ora, é evidente o descabimento de se supor que o motorista, em situações semelhantes, não se importaria com o resultado de sua conduta. Por certo, não se poderia inferir que para ele tanto faz se eu matar alguém; não quero, mas também não me importo.
Os tribunais, apesar de também conterem muitas decisões misturando uma conduta com a outra, têm percebido a inconsistência da tese que vem sendo articulada nas hostes do Ministério Público mais ocupados com a tese da punição exemplar do que com a correta distinção das condutas. E o propósito é bem conhecido: trocar a culpa consciente pelo dolo eventual para facilitar a aplicação de penas mais elevadas do que aquelas previstas para o homicídio culposo. Fato e conduta; ação e resultado, tão bem distintos na teoria, ficam obscurecidos na lide forense.
O propósito deste artigo e seu espaço não permitem aprofundar as divergências jurisprudenciais, mas não se poderia deixar de fazer menção a arestos, como este, recente, do Superior Tribunal de Justiça:
[...]
2. No dolo eventual, o agente não quer o resultado, mas assume o risco de produzi-lo (art. 128, I - CP). Prevê o resultado, não o deseja, mas também não recua na conduta, assumindo o risco do resultado. Nos delitos de trânsito, precedentes têm admitido que o binômio embriaguez e velocidade, produzindo resultado danosos, implica dolo eventual, conclusão que não pode ser adotada de forma absoluta, mesmo porque não se garante que a previsão do resultado, pelo agente, dê-lhe a certeza de que também não pereça ou de que não seja lesionado.
3. Mas, de toda forma, a decisão pela ocorrência, dentro das circunstâncias do caso, de culpa consciente - o agente prevê o resultado mas espera que ele não ocorra - ou dolo eventual deve ficar para a definição do Tribunal do Júri, o juízo natural. [...] 3
E este, mais antigo, do Tribunal de Justiça de São Paulo: Age com dolo eventual e não com simples culpa o motorista que atropela ciclista e, ao invés de deter a marcha do veículo, acelera-o visando arremessar ao solo a vítima que caíra sobre o carro (TJSP AC Rel. Hoeppner Dutra RT 454/362). 4
Por certo, não se ignora as situações em que o elemento subjetivo do tipo penal não se extrai diretamente e sem maiores dificuldades, como nos exemplos citados. Entre tantas hipóteses, figura aquela da embriaguez provocada actio libera in causa em que uma pessoa, pretendendo cometer um crime, embriaga-se para dissimular o delito. Realmente, como perceber isso, de plano, sem cometer injustiça?
No caso da Boate Kiss, a mesma índole emotiva e subjetiva prevaleceu devido à gravidade assombrosa das notícias que tomaram as manchetes internacionais. Guardadas as proporções, fizeram com os réus de Porto Alegre algo similar ao do bêbado depois da festa. E tudo por causa da confusão entre a gravidade do fato e a gravidade da conduta, ainda mais obscurecida por causa da tese bastante difundida de que as baixas penas do homicídio culposo, como dos crimes em geral, seriam o segredo da impunidade.
Assim, sobejaram argumentos jurídicos para justificar o dolo eventual nesse processo. Em busca de uma resposta à altura daquela tragédia, as justificativas não eram feitas para distinguir verdadeiramente quando que os acusados assumiram o risco e quando que eles, simplesmente, confiaram que o resultado não ocorreria, mesmo sabendo da sua possibilidade. De nada adiantou, pelo que se assistiu à distância, a defesa observar que não teria cabimento deduzir que os réus seriam indiferentes a destruir a própria boate e deixar morrer centenas de jovens por causa de suas condutas desastrosas e irresponsáveis.
Se o argumento do pai da noiva ao volante parece razoável, por que até agora não convenceu a tese de que, no caso da Boate Kiss, não faria sentido algum supor que haveria presumidamente uma conduta indiferente e dolosa de assumir o risco de matar asfixiados centenas de jovens, além de destruir a própria boate?
Sugiro um motivo para essa grosseria jurídica: mais uma vez, na história recente, assistimos ao direito ser sacrificado para agradar - e enganar - a opinião pública em mais um final do espetáculo midiático do horror. Sempre que isso ocorreu, desde a ascensão do populismo de direita na Itália, em 1922, abriram-se as caixas de pandora e seus presságios malditos, formando as sinistras trilhas pelas quais caminharam abraçadas as diferentes formas de irracionalidade política e religiosa; o culto à supremacia do interesse individual sobre o público.
O resultado da demagogia jurídica de trocar o direito pelo agrado à opinião pública é a promoção da inércia do Estado e de seu aparelho de segurança pública, fragilizando sua força coativa garantidora dos direitos fundamentais e inibidora da vertente punitivista da sociedade que quer combater desvios sociais em contraste com a ordem constitucional: querem trocar o Estado promotor dos direitos sociais (art. 3º) por um Estado-Policial, achando que temos muitos direitos e poucos deveres. E estão atualmente por toda a parte: milícias urbanas associadas à polícia e suas execuções sumárias em favelas e bairros pobres; apologistas do AI-5 e da supressão do regime democrático; mídia sensacionalista espetacularizando crimes hediondos; entre outros.
O resultado é conhecido da história: mais conflitos e tensão social, como nestes últimos anos, no Brasil e em outros países da região. Demagogos e mentirosos, de Mussolini até a atualidade, nada mais são do que o resultado desse movimento antidireito, anticiência e antidemocracia que toma conta de sociedades convulsionadas e desorientadas. Onde foi parar a penosamente conquistada ordem constitucional de 1988 que, bem se sabe, nunca foi verdadeiramente respeitada em seus pilares fundamentais?
Bom lembrar que o direito, tal qual o conhecemos nos últimos 75 anos, é o resultado do despertar dos anos de terror das duas grandes guerras. É duro e difícil defendê-lo em momentos passionais. Mas, há destinos dos quais não se pode fugir. Lembrando a velha insígnia do navegante português: "Navegar é preciso, viver, não é preciso".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
1 FRANCO, Alberto Silva, STOCO, Rui. Código Penal Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, v. 1. Tomo I, Parte Geral, 6ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 286.
2 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 1, Parte Geral arts. 1º a 120, 5ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 383-384.
3 Sexta Turma - Resp. 1922058. / SC, relator Ministro Olindo Menezes, j. 14/09/2021, p. 21/09/2021.
4 FRANCO, Alberto Silva, STOCO, Rui. Código Penal Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, v. 1. Tomo I, Parte Geral, 6ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 286.