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Marcadores da culpa: a interseccionalidade na culpabilização das vítimas

22/01/2022 às 09:22
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Marcadores formam preconceitos sociais de segregação, que atribuem culpa às própias vítimas por seu destino.

Aspectos Introdutórios

Navegar contra o senso comum, formado através de afirmações que se propagam no tempo, sem que tenham qualquer base empírico-científica é sempre um grande desafio, pois consiste, normalmente, em desafiar raciocínios que, em sendo curtos, são de fácil assimilação, enquanto que tudo que envolve o comportamento das pessoas, sua forma de pensar e suas ações sempre é subjetivo demais para caber em explicações rasas.

Assim é a dificuldade de abordar a interseccionalidade no debate contemporâneo e ser facilmente compreendido, estimulando o debate sobre os marcadores sociais e como a sociedade interage com os mesmos, muitas vezes de forma imperceptível aos olhos que não querem ou não tem tempo para refletir em seus próprios comportamentos, bem como nos comportamentos das demais pessoas e da sociedade como um todo.

Mas o que seria essa tal interseccionalidade? Em uma descrição bem resumida, seria a forma como marcadores sociais -como raça, classe, gênero, entre outras- combinados afetam as relações sociais. De forma mais abrangente, Patrícia Hill Collins traz o que chama de uma descrição genérica, que provavelmente seria aceita pela maioria das pessoas que abordam tal temática:

A interseccionalidade investiga como as relações de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária-entre outras- são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas. (COLLINS, 2021)

Da abordagem de Collins, podemos inferir que não a fórmula exata que determine o quanto cada marcador terá influência em uma relação social, quando associados a outros marcadores, de forma a determinar qual terá mais relevância e em qual grau. Ademais, para este breve estudo, a relevância é a forma como tais marcadores, de forma articulada, provocam reações, ações, omissões e comportamentos no contexto das relações sociais. Assim, não faz sentido algum e pouco seria relevante (ainda que possível fosse) tentar determinar em que proporção exata tem cada marcador social em determinadas soluções.

Ultrapassadas as ponderações iniciais, passarei a tratar de exemplos práticos, realizados através de coletas de dados realizados no meu dia-a-dia, através diálogos com os mais diversos tipos de interlocutores, assim como artigos que possam contribuir de forma a demonstrar qual a relevância dos marcadores sociais, de forma articulada, para a construção de uma noção de uma espécie de culpabilização das vítimas de crimes.


Marcadores da culpa na prática

É noite de sexta-feira, 26 de novembro de 2021, um dos dias escolhidos por mim para minhas primeiras incursões no campo, visando a coleta de dados para a elaboração de meu projeto de pesquisa para qualificação no mestrado. O campo, a conhecida Rua da Zona, localizada na cidade de Três Rios-RJ.

Na estrutura da rua, há uma clara divisão: uma parte mais iluminada e com vários bares e trailers, e uma segunda parte, que fica após uma curva acentuada, onde só há uma casa em um trecho que possuí pouquíssima iluminação. Na primeira parte da rua, várias mulheres, na segunda parte, as travestis.

Em conversas com interlocutores que frequentam ou frequentavam a famosa rua, vários alertas: cuidado com a parte das travas, lá tem boca de fumo, lá só ficam os travecos e umas poucas mulheres mais esculachadas, lá rola muita droga. Mas nada me chamou mais atenção do que o relato de Paulo, um frequentador da rua, que narrou que certa vez, houve uma discussão entre uma travesti e um homem, que terminou com a travesti sendo esfaqueada e indo parar no hospital, o que segundo ele era previsível em virtude das travestis serem espalhafatosas e armarem barracos, associado ao fato de trabalharem fazendo programas, já que com certeza a maioria dos homens que procuram esse tipo de programa naquele local não podem ser coisa boa.

Curiosamente, no dia de minha primeira visita e nas visitas enquanto pesquisador, que se seguiu de algumas outras, fiz passagens lentas de carro e andando pela parte mais escura da rua, sem notar qualquer tipo de movimentação que não fosse das trabalhadoras de sexo, clientes e das pessoas que trabalhavam na casa que ali se situa. Assim, pude notar que a baixa iluminação e o fato do trecho da rua se situar entre duas curvas acentuadas tinha uma outra finalidade, totalmente diferente das percepções narradas pelos meus interlocutores homens, a necessidade de discrição com relação aos clientes que procuravam programas naquele trecho da rua, e necessitavam não serem identificados, pelo fato de se relacionarem com travestis. Pude chegar a essa conclusão primeiro observando que os carros paravam a frente da casa quase sempre tinham vidros bem escuros e paravam nos locais com a menor visibilidade possível, tinham uma rápida conversa com a profissional de seu interesse e, se fosse o caso a chamava para entrar no carro e, após a travesti entrar, saia rapidamente para outro local.

Não era meu objetivo para coleta de dados da pesquisa, que inicialmente travava sobre a possibilidade de regulamentação da prostituição enquanto profissão, mas esse trecho dos dados me levou a reflexões de como o fato de se tratarem de travestis e, aparentemente serem pessoas mais pobres, somados as características do local onde captam seus clientes, de forma associada, produzem um resultado de que, se algo de grave acontece com essas pessoas ou com os clientes que as procuram, muito há de suas próprias ações em escolher essa vida, em serem travestis e pobres e em escolherem um local como esse, de aspecto funesto (na visão de muitos, mas que é conveniente para a discrição).

A visão de Paulo sobre a travesti esfaqueada, em pleno 2021, se comparada com um importante trecho da pesquisa de Sérgio Carrara e Adriana Viana (2006), que utiliza dados de assassinatos de homossexuais ocorridos entre as décadas de 70 e 90 na cidade do Rio de Janeiro, revelam que, guardadas pequenos traços da forma de se expressar, o traço básico do senso comum que acompanha esses marcadores sociais continua praticamente intocada, produzindo seus efeitos de forma cada vez mais massificada, atribuindo responsabilidade às vítimas pelas agressões que sofreram, em virtude de características construídas por um senso comum, e atribuídas a identidade sexual, trabalho que se exerce, aparência, percepção de nível social, local de trabalho, dentre outros marcadores, como podemos notar do seguinte trecho, em que os autores detalham suas percepções sobre a atuação policial no recorte de homicídios ao qual a pesquisa de debruça:

A indiferença policial na apuração da maior parte desses crimes parece encontrar eco nas representações negativas de travestis como homossexuais especialmente desajustados, de modo que sua morte, em geral em idade bem inferior do que a das vítimas de latrocínio, tende a ser tomada por policiais como consequência de um modo de vida constantemente próximo da ilegalidade e que é recebida com poucas pressões, sobretudo familiares, por sua apuração e por justiça. (CARRARA & VIANNA, 2006)

Salta aos olhos, a internalização da responsabilidade das próprias vítimas por seus tristes destinos, por parte das próprias famílias, ao não exercerem pressão pelas investigações dos crimes de homicídio cometido contra essas pessoas, o que demonstra o alto grau de adesão social desse pensamento, que se solidifica de tal modo, que faz com que pais e mães, por exemplo, deixem de exigir justiça pelos seus, potencialmente por também crerem nas características dadas a todos esses marcadores.

Outro marcador o qual observamos constantemente ser utilizado em processos de culpabilização é a cor da pele, onde pessoas de pele mais escura, associados a outros marcadores como sexo, condição social e local onde vivem são fatores que fazem presumir, inclusive pelo conhecimento policial, que essas pessoas têm responsabilidade pelas agressões que sofrem.

Em uma pesquisa de campo realizada no ano de 2012, acompanhando perícias dos locais de crimes, Platero & Vargas (2017) nos relataram uma perícia em particular que salta aos olhos em seu artigo, e que é interessante para a reflexão de como o conhecimento policial forma suas convicções de acordo com a associação de determinados marcadores sociais:

  • Morte típica: um encontro de cadáver
  • Horário de chegada ao local: 13:20
  • Horário de saída do local: 13:39

Em um pé de favela, isto é, entrada para uma favela, há um corpo localizado em uma sarjeta muito estreita e profunda, próximo a uma caçamba de lixo. Apenas os peritos legista e criminal se aproximam do corpo enquanto o restante da equipe se posiciona em direções diferentes, com olhares para a vizinhança. Dada a localização do corpo, não foi possível observar com maior proximidade as ações realizadas por esses dois profissionais, mas dado o tempo que ali ficaram, poucos procedimentos, dos que em geral são previstos, foram realizados. Na viatura, saindo do local, o perito legista manifesta dúvidas quanto à classificação da morte, se acidental ou por agressão, já que não havia perfurações de projéteis ou de armas brancas. Este profissional disse que precisava ter acesso ao relatório de necropsia, que seria enviado posteriormente pelo IML. Na sede da DH, consultando a intranet, ele teve acesso ao laudo de necropsia feito pelo médico legista do IML. Este afirmava que a morte havia sido provocada por uma agressão. Ao saber disso, o perito legista comunicou ao perito criminal: Oh, Fulano, sabe aquele caso do crackudo do valão? Então, foi agressão mesmo, tá aqui, oh!. Este recebeu a notícia com um ar de surpresa, dizendo algo como: Hum... achei que o crackudo tinha caído no valão e se afogado. Crackudo foi a forma como eles se referiram à vítima, que vestia apenas uma bermuda, era negro, franzino, não possuía documentos e tinha, segundo eles, aparência suja. Tais características fenotípicas constituíram-se enquanto elementos razoáveis e suficientes para que o staff chegasse à conclusão de que a vítima se tratava de um usuário de crack (Platero & Vargas, 2017)

Aqui é possível observar, claramente, que o local onde o corpo foi encontrado, associado às suas vestimentas e a cor da pele, foram suficientes para formar a convicção dos peritos de que se tratava de um crakudo, ainda que não houvesse nenhuma evidência de uso do entorpecente e, na verdade, a expressão foi só uma forma jocosa de se referir aquele corpo que ali estava e que, por seus marcadores sócias parecia, aos olhos dos peritos menos humano, ou até mesmo não humano.

Salta aos olhos o tempo que a perícia do local levou para ser realizada, de somente 19 minutos, entre a chegada e saída dos agentes, o qual, se considerarmos o tempo que a equipe leva para sair dos veículos e começar os trabalhos, faz-nos deduzir que no máximo 15 minutos foram dedicados ao referido trabalho. Tal constatação nos pode causar espanto aos mais desavisados, principalmente se comparado com outros dois casos acompanhados pelas autoras: a morte de uma mulher branca de 34 anos de idade, em um bairro de classe média, cujas circunstâncias e indícios apontavam quase que indubitavelmente para suicídio, e que durou 2 horas e 10 minutos, e a morte de um casal branco de meia idade, em um bairro de classe média da zona norte do Rio de Janeiro, que durou 2 horas e 11 minutos. (Platero & Vargas, 2017)

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Mais que o tempo dedicado às perícias, é importante frisar os recursos físicos, bem como a inteligência dedicada a elucidar os três casos, conforme exposto na pesquisa das mencionadas autoras, sendo o tempo somente um dos aspectos que permitem inferir a importância dada a cada caso, bem como a aplicação de um raciocínio que transforma pessoas portadoras de determinada condição social, cor da pele e local onde residem em responsáveis pelo cruel destino que tiveram.

Qualquer semelhança entre o caso do crakudo do valão e o tratamento judicial dado às travestis vítimas de assassinado na pesquisa de CARRARA & VIANNA supramencionada, não é pura coincidência, mas revela um padrão de rotulação imposta pelo conhecimento policial e dos tribunais que, por fim, acaba por ecoar em toda sociedade, enraizando-se e construindo o senso comum em relação a marcadores sociais.

Mas as semelhanças não param por aí, há um outro importante aspecto que nos remete ao início desse artigo, a interação entre determinados marcadores sociais interagindo em cada caso: ser travesti e prostituta, ser negro, de classe social desfavorecida e morador de comunidade carente. Esses se tornam excelentes exemplos da interseccionalidade produzindo efeitos na sociedade, de forma a serem utilizados como forma de culpabilizar as vítimas por seus próprios martírios.


CONCLUSÃO

É tarefa quase que inglória e arriscada debater, sobretudo nos dias atuais, a forma como os marcadores sociais são utilizados para rotular determinadas classes e segmentos da sociedade, sobretudo pela forma despretensiosa como essa cultura atua, de forma a se fazer passar despercebida em muitos casos, onde as pessoas sequer percebem como esse conhecimento reside em suas consciências, e não se permitem questionar o motivo de terem esses preconceitos, no sentido literal da palavra, como verdades incontestes, mesmo carecendo de bases empíricas.

De toda forma, não há possibilidade de reversão dessa cultura sem amplo debate, reflexão e exposição, por mais chocantes que essas revelações práticas possam parecer, por mais que a negação a realidade continue sendo uma ferramenta de defesa do senso comum, que parece ser revestido de um pavor de descobrir que a realidade que o permeia é irreal.

Por fim, é importante que possamos refletir, cada vez mais sobre a interseccionalidade, e como a construção da interação desses marcadores são utilizadas para formar (pre)conceitos sociais, o que nos auxilia a entender como machismo, homofobia, aporofobia, machismos, entre tantos outros pensamentos de segregação, por um incontável número de vezes, se articulam para marcar e atribuir a culpa das própias vítimas por seu destino.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLLINS, Patrícia Hill. BILGE, Sirma. Interseccionalidade.1. ed. São Paulo. Boitempo, 2021.

PLATERO, Klarissa Almeida Silva. VARGAS, Joana Domingues. Homicídio, suicídio, morte acidental.... O que foi que aconteceu?. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social Vol.10 no 3 SET/OUT/NOV/DEZ 2017 pp. 621-641.

CARRARA, Sérgio. VIANNA, Adriana R.B. Tá lá um corpo estendido no chão...: a Violência Letal contra Travestis no Município do Rio de Janeiro. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):233-249, 2006.

BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

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Sobre o autor
Manuel Flavio Saiol Pacheco

Pesquisador, Advogado e funcionário público, graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Campus Três Rios. Atualmente é mestrando em Justiça e Segurança, pela Universidade Federal Fluminense. É Pós Graduado em Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PACHECO, Manuel Flavio Saiol. Marcadores da culpa: a interseccionalidade na culpabilização das vítimas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6779, 22 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96031. Acesso em: 21 nov. 2024.

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