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A Lei nº 14.223/06 do Município de São Paulo e a violação aos princípios de Direito Urbanístico

19/03/2007 às 00:00
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No próximo dia 31 a Lei Municipal 14.223/06 produzirá todos seus efeitos na cidade de São Paulo.

Após gerar grandes debates, uma enxurrada de ações contestando o seu conteúdo e de ter parte de sua aplicabilidade postergada por decreto do Poder Executivo, a polêmica Lei, que regulamenta a questão dos anúncios publicitários e indicativos na maior capital do país, passará a ter todos os seus dispositivos aplicados.

Em linhas gerais, referida norma proibiu, de forma absoluta, a veiculação na cidade de anúncios publicitários em locais visíveis a partir de logradouro público, limitando-a ao mobiliário urbano, impondo, ainda, severas restrições aos anúncios indicativos, sob o fundamento de, no exercício das competências Municipais predispostas no art. 30 da Constituição, estar promovendo a tutela, ordenação e preservação do meio ambiente urbano, visando o bem estar comum.

É de se destacar a louvável iniciativa do Poder Público. Com efeito, a tutela, preservação e ordenação do meio ambiente urbano se faz necessária, mormente nas grandes metrópoles, onde a poluição visual é inconteste e destrói a beleza, o bem estar, o patrimônio histórico-cultural e a própria identidade da urbe e dos citadinos.

Não resta dúvidas que, apesar de elogiáveis os fins a que se propõe, o mesmo não se pode dizer sobre a forma e conteúdo da Lei publicada no final de 2006.

Isto porque, consoante já diagnosticado por diversos estudiosos que se dedicaram ao tema, assim como por aqueles que a questionaram judicialmente, a citada Lei padece do vício da inconstitucionalidade, pois viola o princípio constitucional da livre iniciativa, que norteia a ordem econômica, além dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade que regem toda a atividade da Administração Pública, para não mencionar, também, extrapolação de competência.

A vedação, de forma absoluta, à colocação de anúncios publicitários, sob qualquer fundamento e a drástica modificação na forma e das áreas de exposição são medidas extremas, flagrantemente desproporcionais, fora dos padrões razoáveis de atuação da administração.

É fuga do poder-dever de exercer o controle, ordenação e de fiscalizar a ocupação dos espaços urbanos, mediante a simplória imposição de métodos unilaterais radicais, reducionistas e extremos, que afrontam a boa gestão da cidade e os interesses da coletividade.

Extirpar a veiculação de anúncio publicitário, limitando-a exclusivamente ao mobiliário urbano interfere, ademais, no exercício de atividade econômica, formando verdadeiro monopólio, pelo que ultrapassa o interesse local, extrapolando a competência Municipal para ordenar a paisagem urbana. Destarte, influi diretamente na ordem econômica, matéria cuja competência é privativa da União.

Além disso, o tratamento dado à questão pela Lei viola princípio basilar do Estado Democrático de Direito: a isonomia. Simplesmente vedar ou restringir o direito de anunciar, sem, para tanto, aferir as particularidades de cada caso concreto, desrespeita a imposição constitucional de que aos desiguais deve ser conferido o tratamento desigual.

Estas são, em linhas gerais, as inconstitucionalidades que, de logo despertaram a atenção de grandes juristas e a ira das pessoas direta ou indiretamente atingidas/prejudicadas pelo novel diploma legal.

Mas o que aqui se propõe não é apenas reiterar aquilo que já vem sendo exaustivamente debatido, inclusive judicialmente. Definitivamente não. O que se pretende é - ainda que tardiamente - chamar a atenção para particular violação desta Lei à Constituição que, aparentemente, passou desapercebida, e é tão ou mais grave quanto as já reiteradamente suscitadas.

Com efeito, tratando-se de matéria ligada ao Direito Urbanístico, a Lei 14.223/06 deveria estar em consonância ao seu regime jurídico, principalmente no que se refere aos seus princípios, normas basilares do sistema.

Ocorre que, ao ser editada, a Lei 14.223/06 descumpriu diretamente o quanto prescrevem os princípios do planejamento, da gestão democrática da cidade (participação popular) e desrespeitou o princípio da função social da cidade, todos insertos no art. 182 e seguintes da Constituição e no art. 2º do Estatuto da Cidade.

Sobre o planejamento, Carlos Ari Sundfeld assevera ser pressuposto da ordem urbanística. [01]

É princípio instrumental inserto no art. 2º, IV do E.C. Mais que isso. É o pilar da Política Urbana (C.F., ART. 182).

Os Planos Urbanísticos "constituem o conjunto de normas e atos operativos que caracterizam aquele princípio da coesão dinâmica ou coesão dialética que dá essência às normas urbanísticas...". Ou seja, "não constitui simples conjunto de relatórios mapas e plantas técnicas, configurando um acontecer unicamente técnico." [02] Adquire características de um procedimento jurídico dinâmico, ao mesmo tempo normativo e ativo, servindo como diretriz, mas se manifestando concretamente.

Na Constituição Cidadã e, mais recentemente, com o advento do Estatuto da Cidade, o planejamento torna-se princípio de Direito Urbanístico e o Plano Diretor assume a função de instrumento básico da política urbana do Município. Esta tem como propósito a efetivação dos princípios da função social da propriedade e da função social da cidade, encampando a ordenação do pleno desenvolvimento da urbe. Seu propósito é garantir o bem estar social da comunidade.

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Objetiva-se, por este princípio, que as normas, instrumentos e a atividade urbanística não se dêem de forma aleatória, mas ordenada, planejada, para que cada zona, cada localidade tenha tratamento específico e adequado às suas necessidades reais, tendo-se em mente os diversos aspectos da vida na cidade: moradia, produção industrial, lazer, trabalho, administração da cidade, etc.

Todavia, a despeito de sua importância, a norma ora questionada foi editada sem nenhuma menção ou referência ao Plano Diretor da Cidade de São Paulo. Foi elaborada de forma aleatória, desvencilhada de qualquer planejamento, violando este importante princípio de Direito Urbanístico.

Já pelo princípio da função social da cidade, o qual encontra previsão expressa no art. 182 da Constituição e no art. 2º do Estatuto da Cidade e tem natureza e caráter semelhante ao da função social da propriedade, têm-se, em última instância, que o fim precípuo da atividade urbanística deve ser o bem estar social nas urbes. Será tão mais eficaz quanto for promovida o pleno acesso à moradia, circulação, lazer e trabalho.

Mas, a despeito desta prescrição principiológica, esta última função social da cidade foi claramente desprestigiada pela malfadada Lei, pois não observou a questão do desemprego e sua repercussão social [03].

Finalmente, cumpre salientar que estes princípios aqui explicitados somados ao da função social da propriedade, informadores do Direito Urbanístico, somente se perfazem em sua plenitude quando pensados, debatidos e aplicados pelos habitantes da urbe de forma direta, participativa e democrática, proporcionando, desta forma, resultados muito mais ricos e eficazes, bem como uma identificação do habitante com sua cidade.

Neste passo, é de se frisar que, além de importante, a participação popular nas decisões acerca do planejamento e desenvolvimento do Município é obrigatória.

Isto já decorria, a nosso sentir, da própria Constituição e do regime democrático representativo/participativo por ela instituído (art. 1º, II).

Entretanto, com advento do Estatuto da Cidade, a matéria foi tratada de forma explícita, ganhando status de Diretriz Geral do Estatuto da Cidade (Art. 2, XIII) e sendo instrumentalizado de forma satisfatória e completa através da denominada Gestão Democrática da Cidade (Art. 43).

É a consagração da necessária e obrigatória participação dos citadinos nos destinos da polis.

Caso a participação popular no que tange a elaboração, discussões e conclusões das normas e planos urbanísticos não ocorra, estaremos diante de violação do princípio da Gestão Democrática da Cidade. Entretanto, não há notícias de audiências públicas ou qualquer forma de consulta popular no processo legislativo que deu origem à Lei 14.233/06. Assim, resta demonstrada mais uma violação a princípio constitucional de Direito Urbanístico.

Ora, considerando que: 1 - a questionada norma não foi objeto de qualquer estudo ou planejamento prévio, ou sequer qualquer ligação e menção ao plano diretor da Cidade de São Paulo; 2 - que, ademais, não houve efetiva participação popular, mediante audiência pública, 3 – e que, finalmente, a extirpação completa dos anúncios publicitários ocasionará desemprego em grandes proporções, forçoso concluir que estamos diante de uma Lei inconstitucional, porque alveja os princípios constitucionais de Direito Urbanístico da função social da cidade, do planejamento e da gestão democrática da cidade.

Portanto, esta é mais uma insuperável razão pela qual a Lei 14.233/06 não pode permanecer no ordenamento.


Notas

01SUNDFELD, Carlos Ari. In DALLARI e FERRAZ, Adilso de Abreu e Sérgio. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 56.

02SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 95-97.

03 Uma das conseqüências imediatas da Lei 14.233 é o desemprego de cerca de 20.000 trabalhadores. Fonte: ABA – Associação Brasileira de Anunciantes.

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Sobre o autor
Georges Louis Hage Humbert

Advogado e professor. Pós-doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em direito do Estado pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de São Paulo. www.humbert.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUMBERT, Georges Louis Hage. A Lei nº 14.223/06 do Município de São Paulo e a violação aos princípios de Direito Urbanístico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1356, 19 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9615. Acesso em: 18 abr. 2024.

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