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Saqueio de dinheiro em avião acidentado:

um juízo de tipicidade

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RESUMO

Quando o Direito Penal é chamado, o juízo de tipicidade é das fases mais importantes para a correta aplicação da lei. O presente trabalho tem o objetivo de elaborar tal juízo a respeito de evento há pouco noticiado pela imprensa brasileira.


1. Introdução

Um avião bimotor, transportando R$ 5,6 milhões em dinheiro, caiu na tarde do dia quatorze de março em uma fazenda em Maracangalha, distrito de São Sebastião do Passé (interior da Bahia). Os quatros ocupantes morreram e o dinheiro foi saqueado por mais de 120 pessoas.

A simples leitura da notícia pode nos levar a concluir pela ocorrência do crime de furto. Contudo, o estudioso do Direito jamais pode deixar de questionar nem mesmo as questões aparentemente mais simples. Diante da complexidade da ciência penal, é indispensável um olhar mais atento, a fim de se realizar corretamente o juízo de tipicidade. Assim sendo, este breve trabalho analisa, sob a ótica penal, a conduta dos saqueadores do dinheiro transportado pelo avião, sem olvidar-se que se trata de julgamento abstrato e precário, porquanto novos elementos e circunstâncias pessoais podem e devem alterar o resultado final.


2. Juízo de tipicidade

Juízo de tipicidade, segundo lapidar lição de Cezar Roberto Bittencourt, "consiste em analisar se determinada conduta apresenta os requisitos que a lei exige, para qualificá-la como infração penal".

Levanta-se, por serem as mais pertinentes, as possibilidades de ocorrência do crime de Apropriação de coisa achada; Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza; Furto e Omissão de socorro.

2.1. Apropriação de coisa achada

Art. 169, II - Quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias.

Não resta dúvida de que os saqueadores acharam coisa alheia e dela se apropriaram. Contudo, o dinheiro em questão não se caracteriza como coisa perdida. Esta, conforme Guilherme de Souza Nucci, é a que "sumiu por causa estranha à vontade do proprietário ou possuidor, que não mais a encontra" (grifo nosso). No caso concreto, jamais pairou dúvida a respeito da localização do dinheiro, logo a coisa não se deu por perdida. Destarte, impossível a ocorrência deste crime.

No entanto, importante notar a parte final do inciso, que levanta um elemento temporal na consumação do crime. Mesmo que hipoteticamente houvesse a apropriação do dinheiro, e este estivesse perdido, somente após os quinze dias estaria consumado o crime em comento.

2.2. Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza

Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza.

Para a ocorrência deste crime não se exige a perda da coisa. Aqui se impõe que a coisa vá ao poder do criminoso por erro, caso fortuito ou força da natureza. Erro é a falsa percepção da realidade, que leva alguém a entregar ao agente coisa pertencente a outrem. É caso fortuito (que abrange a força da natureza) qualquer acontecimento estranho à vontade do agente, como a coisa trazida pela enchente ou o caminhão que desgovernado invade um lote. Assim sendo, no caso concreto percebe-se que este crime apenas se consumaria (por caso fortuito) se o possuidor da fazenda em que o avião caiu fosse o agente saqueador. Apenas quanto a ele a coisa veio ao poder, já que os reais saqueadores, entrando em propriedade alheia, buscaram a coisa. Fosse o possuidor da fazenda o agente, e não sendo feita a devolução, configurado estaria o delito.

2.3. Furto

Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.

Agora se analisa a ocorrência de furto. Furtar é tirar de outrem coisa móvel com a intenção de assenhorear-se.

Após a análise daqueles dois tipos penais, a suspeita inicial de se tratar de furto se concretiza. O juízo de tipicidade é positivo! Portanto, aqui se comenta apenas a problemática em relação à consumação do furto, a ocorrência de qualificadoras e de circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) específicas ao caso concreto.

2.3.1. Consumação do furto

Trata-se de tema polêmico e de difícil constatação na prática. Tem-se entendido que para a consumação do crime de furto é necessário que o agente tenha a posse mansa e tranqüila da coisa furtada, mesmo que por pouco tempo. Entendimento diverso transformaria o crime de furto em crime formal (aquele que independe de resultado). Nucci afirma: "se houver perseguição e em momento algum conseguir o autor a livre disposição da coisa, trata-se de tentativa". Portanto, diante da perseguição ostensiva que a Polícia baiana está realizando, é possível que alguns saqueadores – os que não chegaram a possuir mansa e tranquilamente o dinheiro - sejam acusados de furto na modalidade tentada.

2.3.2. Qualificadoras

Pela análise do caso concreto, surge a possibilidade das qualificadoras do art. 155, § 4º, "I" e "IV".

Quanto à primeira (com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa) lembra-se que o avião encontrava-se já destruído pelo acidente. Logo, não houve a destruição do avião para se alcançar a coisa. Ademais, com o próprio acidente vários malotes foram destruídos e arremessados para fora do avião, sendo que algumas das pessoas se apossaram do dinheiro que voava pelo local. Questão mais importante é saber se o rompimento de alguns malotes por algumas pessoas daria azo a tal qualificadora. Obstáculo, de acordo com Nucci, "é o embaraço, a barreira ou armadilha montada para dificultar ou impedir o acesso a alguma coisa". O objetivo dum malote é, essencialmente, o de facilitar o transporte da pecúnia, e não a proteção do dinheiro contra furto. Tanto é assim que ele é violado facilmente pela simples abertura ou quebra de um lacre. Já disse o grande mestre da interpretação, Carlos Maximiliano, em sua obra Hermenêutica e Aplicação do Direito: "o direito deve ser interpretado de forma inteligente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências". Assim sendo, entender que um malote caracterizaria obstáculo é considerar que um furto de um pacote de salgadinhos é furto qualificado. Logo, incabível esta qualificadora no caso concreto.

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Em relação à segunda (mediante concurso de duas ou mais pessoas), afirma-se que concurso de pessoas é a participação voluntária de duas ou mais pessoas na prática de uma infração penal. No Direito brasileiro não se exige o acordo prévio entre os participantes, sendo que algumas vezes um dos partícipes até desconhece a ação do outro. Não obstante, é necessário que um colabore com o outro. No saque não houve uma ação coordenada, não havia liderança. No entanto, é possível que um tenha acabado ajudando o outro. Na desordem, é provável que enquanto um abria o malote para si próprio, o outro se aproveitava da situação. Ocorrendo esta situação, ou semelhantes, caracterizado está o furto qualificado.

2.3.3. Agravantes

Vislumbra-se como agravante a do art. 61, II "j" (em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido). Num cenário de desastre aéreo – possivelmente o tipo de acidente que mais ofende a integridade física - na presença de quatro corpos, os saqueadores se aproveitaram da oportunidade e levaram o dinheiro. Indício de mínima sensibilidade perante o sofrimento do outro. Conduta de altíssima reprovação! Assim sendo, cabível esta agravante e a devida ponderação deste dado na análise das circunstâncias judiciais.

2.3.4. Atenuantes

Ademais, os saqueadores evidentemente agiram de forma desordenada, no "cada um por si", tratando-se de verdadeiro crime multitudinário. Logo, aplica-se a atenuante genérica do art. 65, III, "e".


3. Omissão de socorro

Há de se investigar seriamente a possível ocorrência deste crime. Crime formal, isto é, que se configura apenas com a conduta, não tendo importância – no que toca a tipicidade - o resultado natural. Se a morte dos passageiros não era óbvia, como um corpo sem cabeça ou em pedaços, os omitentes devem ser responsabilizados. Neste sentido, Cezar Roberto.

A sociedade não pode admitir, e deve punir exemplarmente, este crime que demonstra alta insensibilidade. Não há notícias de que os saqueadores procuraram socorrer os passageiros.


4. Ação da polícia

A polícia baiana, embora tenha dedicado forças de mais 200 homens, tem se mostrado ineficaz. Após 72 horas de operação menos de 10% da quantia furtada havia sido recuperada. Não obstante, neste mesmo tempo já há inúmeras "denúncias" de apropriação de dinheiro por parte de policiais e de invasão de casas, sem mandado judicial e fora das hipóteses legitimadoras. É a própria Constituição Federal que garante a inviolabilidade do domicílio, seja um palácio ou um barraco de lona em área invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Além disso, o Código Penal tipifica esta conduta como Violação de domicílio. Infelizmente, esta odiosa prática é diariamente realizada no Brasil.

Ademais, a delegada responsável, Maria Salete Campos do Amaral, demonstrando pouco tato, disse que todos os saqueadores serão indiciados sob a acusação de furto. Afirmou: "não importa se eles devolveram o dinheiro espontaneamente ou não". Declaração juridicamente irretocável, mas pouco inteligente. O dever policial na solução de crimes não é apenas o de identificar os culpados, mas, e principalmente, o de restaurar a situação anterior. Promover a paz social não é apenas levar os acusados à Justiça, mas reparar o bem jurídico lesado e, conseqüentemente, responsabilizar os criminosos. Portanto, muito mais eficiente e astuto do que aquela declaração amedrontadora seria divulgar os institutos do arrependimento posterior, a atenuante do art. 65, III, "b" e outros, na tentativa de estimular os criminosos a devolverem o produto do furto.


5. Conclusão

Parece, agora, não restar mais dúvida. O crime cometido é o de furto, possivelmente qualificado, e agravado e atenuado pelas circunstâncias especiais aqui suscitadas. Imperioso não se esquecer da possibilidade de ocorrência do crime de Omissão de socorro. Por fim, o entendimento aqui desenvolvido aplica-se também às condutas de saqueio de carga tão comuns quando dum tombamento de caminhão e semelhantes.

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Sobre o autor
Marcelo Valadares Lopes Rocha Maciel

bacharelando em Direito pela Faculdade Pitágoras, em Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACIEL, Marcelo Valadares Lopes Rocha. Saqueio de dinheiro em avião acidentado:: um juízo de tipicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1357, 20 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9623. Acesso em: 22 nov. 2024.

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