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Leis 8.234/91 e 12.842/2013: Controvérsia sobre a prescrição de tratamentos dietoterápicos por nutricionistas x médicos

20/02/2022 às 15:10
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A prescrição de dieta para tratamento (dietoterapia) é expressamente prevista em lei como ato privativo de nutricionista. Posicionamento do CFM não tem autoridade para afastar a norma e autorizar médicos a fazê-la.

Recentemente, em redes sociais relacionadas a nutricionistas e estudantes de nutrição, acalorados debates têm surgido da controvérsia sobre médicos possuírem ou não prerrogativa para prescrição de tratamentos dietoterápicos.

Nesse sentido, tem-se mencionado documento elaborado pelo Conselho Federal de Medicina (DESPACHO COJUR n.º 515/2019), aprovado em fins de 2019, o qual sustenta a plena aptidão dos profissionais da medicina para a prescrição de dietas, pois, em síntese, a Lei 12.842/2013 (lei que dispõe sobre o exercício da medicina) permitiria tal hipótese, tendo, inclusive, revogado parcialmente os incisos II e VIII, do art. 3º da Lei 8.234/91 (lei que regulamenta a profissão de nutricionista).

O presente artigo tem por propósito realizar uma análise crítica, imparcial e objetiva dos diplomas legais mencionados e, assim, enriquecer o debate jurídico sobre tema tão sensível, que envolve questões como liberdade de exercício profissional e proteção à saúde, e poder contribuir para o esclarecimento do público leigo, profissionais da saúde, notadamente médicos e nutricionistas, além dos estudiosos e operadores do Direito.

Primeiramente, é importante destacar, sobretudo para o público leigo, que o documento supramencionado é um parecer do CFM, elaborado por advogado da instituição, e possui caráter meramente opinativo, desprovido de coercibilidade jurídica. O CFM, no desempenho de suas atribuições legais e de defesa dos interesses de seus membros, posicionou-se nesse sentido, e apenas isso.

Desse modo, médicos que eventualmente pautem sua conduta com base em tal documento podem estar amparados na sua relação perante o Conselho Federal de Medicina. No entanto, não estarão imunes às medidas administrativas e judiciais que poderão advir do exercício ilegal de atividade privativa de nutricionista, pois o CFM não é legislador e tampouco órgão do Poder Judiciário.

A lei do ato médico (12.842/2013) é, de fato, posterior à lei dos nutricionistas. Contudo, isso não basta para que se possa afirmar que ela revogou parcialmente o art. 3º da lei dos nutricionistas (8.234/91), pois não há nenhuma previsão específica na lei dos médicos referente à prescrição de tratamento dietoterápico, ao passo que a lei dos nutricionistas é bem específica nesse sentido. Vejamos:

Art. 3º São atividades privativas dos nutricionistas:

I - direção, coordenação e supervisão de cursos de graduação em nutrição;

II - planejamento, organização, direção, supervisão e avaliação de serviços de alimentação e nutrição;

III - planejamento, coordenação, supervisão e avaliação de estudos dietéticos;

IV - ensino das matérias profissionais dos cursos de graduação em nutrição;

V - ensino das disciplinas de nutrição e alimentação nos cursos de graduação da área de saúde e outras afins;

VI - auditoria, consultoria e assessoria em nutrição e dietética;

VII - assistência e educação nutricional e coletividades ou indivíduos, sadios ou enfermos, em instituições públicas e privadas e em consultório de nutrição e dietética;

VIII - assistência dietoterápica hospitalar, ambulatorial e a nível de consultórios de nutrição e dietética, prescrevendo, planejando, analisando, supervisionando e avaliando dietas para enfermos.

(grifo nosso)

Apesar de o CFM sustentar que a lei do ato médico ampararia a prescrição de dietas, pois a atividade de médico abrange a promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como na prevenção e tratamento de doenças, além da reabilitação de enfermos e pessoas portadoras de deficiências, percebe-se que é um argumento extremamente frágil. Explica-se.

Se, por exemplo, a lei regulamentadora dos enfermeiros, fisioterapeutas, dentre outros profissionais de nível superior que trabalhem em nível ambulatorial contiverem semelhante previsão, é plausível concluir que todos esses profissionais estariam habilitados para prescrever dietas?

Ora, se beira o esdrúxulo admitir a hipótese acima, igualmente o é pressupor que médicos possam fazer o mesmo. Ao contrário de um antiquado senso comum (e que há muito já vem sendo superado), médicos não são autossuficientes enquanto profissionais de saúde. Cada profissional de saúde possui um âmbito próprio de atribuições, um núcleo duro de atividades que lhe são reservadas e definem sua razão de existir, dadas as peculiaridades curriculares de cada curso. Do contrário, não haveria porque existir uma multiplicidade de carreiras distintas de nível superior. No caso da saúde, por exemplo, só deveria então haver curso superior de medicina, e as demais atividades, sobretudo as mais mecânicas seriam atribuídas a profissionais de nível técnico, como, de fato, existem os técnicos em enfermagem e em nutrição, por exemplo.

Portanto, é irreal supor que exista profissional de saúde completo, já que para alcançar tal qualificação seria necessário possuir todas as respectivas formações e especializações, o que se revela extremamente improvável na prática. Nesse sentido, a própria lei do ato médico, em seu art. 3º, prevê que O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde que a compõem.

Ainda nessa toada, é digno de nota que o parecer do CFM, embora originado de consulta realizada por médica diretora da Associação Brasileira de Nutrologia, em momento algum fez ressalva de qual ou quais especialidades médicas seriam aptas para a prescrição dietoterápica. Ou seja, com base em tal entendimento, até mesmo dermatologistas, oftalmologistas e ortopedistas, por exemplo, teriam plena capacidade para prescrever dietas, o que demonstra posição soberba e negligente daquela instituição frente à dietoterapia. Bastaria qualquer médico de um hospital ou consultório abrir sua gaveta e de lá sacar uma dieta para solucionar os problemas nutricionais dos pacientes. É como se a prescrição de alimentos, inclusive para doentes graves, fosse uma atividade banal comparada à prescrição de um medicamento ou procedimento médico, o que absolutamente não corresponde à realidade.

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As disposições da lei dos médicos mencionadas no parecer do CFM ostentam natureza principiológica, no sentido de serem objetivos, premissas que os médicos devem observar no desempenho de suas funções enquanto profissionais de saúde que são, e não uma carta branca para, a pretexto de promover a saúde, invadirem deliberadamente a profissão alheia. Inclusive, a própria lei do ato médico possui disposições que reforçam que os médicos devem respeitar e colaborar com os demais profissionais de saúde, conforme o já mencionado art. 3º.

Além disso, ainda na lei em comento, no § 7º de seu art. 4º (dispõe sobre as atividades privativas de médico) é dito que o disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia. Assim, nota-se a evidente intenção do legislador em frear condutas médicas que possam invadir as esferas de atuação próprias de outros profissionais de saúde.

Ou seja, se o tratamento dietoterápico é expressamente previsto em lei como privativo de nutricionista e não há ressalva ou disposição contrária expressas em nenhuma outra lei de mesma hierarquia, é indiscutível que prescrição de dieta se enquadra como competência própria da profissão de nutricionista. Portanto, deve ser respeitada, inclusive pelos próprios médicos, conforme disposto na própria lei da categoria.

Por todo o exposto, percebe-se que o CFM fez uma leitura parcial e seletiva da lei do ato médico, a fim de resguardar seus interesses corporativistas, ignorando que a própria lei da categoria preconiza que os médicos respeitem as competências próprias dos outros profissionais de saúde e com eles atuem em colaboração.

Em conclusão, o posicionamento do CFM permite que os médicos atuem sem receio de sanções por parte de seu próprio Conselho, mas não estarão livres de sofrerem as medidas cabíveis pelos Conselhos de Nutrição, administrativas ou judiciais, inclusive de esfera criminal (art. 47 da Lei de Contravenções Penais). O posicionamento do CFM não tem autoridade para afastar as prerrogativas legais dos nutricionistas, sendo que apenas os Tribunais Superiores poderiam dar a palavra final sobre tal controvérsia, mediante amplo debate com argumentos técnicos que permitam concluir se alguma especialidade médica ou de outra profissão além dos nutricionistas seria apta para realizar tratamentos dietoterápicos.


Referências

BRASIL. Lei nº 8.234, de 17 de setembro de 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1989_1994/l8234.htm> Acesso em 01/02/2022.

BRASIL. Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12842.htm> Acesso em 01/02/2022.

Conselho Federal de Medicina. Despacho COJUR n.º 515/2019. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/despachos/BR/2019/515_2019.pdf> Acesso em 31/01/2022.

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Sobre o autor
Nickolas Nogueira Simvoulidis

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMVOULIDIS, Nickolas Nogueira. Leis 8.234/91 e 12.842/2013: Controvérsia sobre a prescrição de tratamentos dietoterápicos por nutricionistas x médicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6808, 20 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96241. Acesso em: 16 abr. 2024.

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