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A dimensão da responsividade em matéria de políticas públicas:

uma leitura da Constituição de 1988 para a proteção de direitos em tempos de crise

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A responsividade, capacidade de criação de respostas eficientes às demandas criadas pela ambivalência moderna – crises permanentes ou pontuais – tem estreita relação com a responsabilidade para com futuras gerações.

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Políticas públicas: ação estatal e estratégia constitucional para garantia e proteção de direitos; 3. Políticas públicas e responsividade: generatividade para a ambivalência em tempos de crise; 4. Considerações finais; Referências.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O debate acerca das políticas públicas é uma constante nas sociedades contemporâneas, ainda mais quando se percebe a modificação do papel do Estado – hodiernamente mais regulador. Adicionalmente, tem-se o fato de que há uma triplicidade distintiva do corpo social: características individuais, sociais e políticas. Tomar decisões dentro desse contexto é um verdadeiro desafio, fazer ou deixar de fazer algo implica consequentemente em uma escolha. E esse quadro lançado em incertezas geradas por crises econômicas, políticas ou sanitárias potencializa ainda mais a complexidade sobre a ação pública.

Tomado esse enquadramento e considerada a realidade do Brasil, o presente ensaio tem como problemática a tipificação de políticas públicas na condição de ação essencialmente estatal e estratégia constitucional para proteção de direitos em tempos de crise, como a provocada pela Covid-19. Ainda, busca-se extrair a ideia de responsividade em matéria de políticas públicas a partir da Constituição de 1988, indicando como as políticas públicas desempenham papel indispensável para superar a ambivalência de tempos de crise.

O estudo tem como objetivo precípuo discutir o compromisso constitucional de 1988 com as políticas públicas e como tais perfazem mecanismos para superação de crises e consolidação civilizatória, desde que criadas e executadas de modo responsivo e generativo, eliminando ambiguidades e incontingências provocadas por severos períodos de ruptura. Metodologicamente, adota-se abordagem dedutiva, apoiada nas técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.

Apenas para adiantar algumas considerações, compreende-se que as políticas públicas não são e nem devem ser compreendidas somente como ações governamentais, mas efetivamente como ações estatais propriamente ditas, portanto, permanentes, funcionando como estratégia para garantia e tutela de direitos em decorrência de escolha constitucional extraordinária. E disso resulta, como consequência normativa, política, social e econômica, que a construção e execução responsiva de políticas públicas deve pautar-se pelo respeito ao marco jurídico constitucional e infraconstitucional que as rege especificamente, ao planejamento e à participação. Políticas públicas elaboradas responsivamente conduzem ao processo generativo de sobrepujamento de átimos de crise.


2. POLÍTICAS PÚBLICAS: AÇÃO ESTATAL E ESTRATÉGIA CONSTITUCIONAL PARA GARANTIA E PROTEÇÃO DE DIREITOS

Há uma variedade de entendimentos acerca de políticas públicas, seus conceitos e papéis no âmbito da sociedade contemporânea. Uma ideia inicial liga-se diretamente à sistematização de medidas, visando gerar resultados e alterar determinados ambientes positivamente.[4] Assertivo é considerar política pública em geral sempre como uma ação,[5] um agir coletivo que impacta nos espaços público e privado, a ser instrumentalizado a partir de um marco normativo definido.

Sobre o tema, difundido é o escólio de Maria Paula Dallari Bucci ao conceituar política pública como programa de atuação governamental que é fruto de processos disciplinados juridicamente, mapeando os meios disponibilizados ao Estado e ao setor privado para corporificação de objetivos sociais importantes e politicamente indicados.[6]

Entretanto, de forma mais ampla e considerando o espectro do Estado brasileiro, a leitura da Constituição de 1988 permite observar que as políticas públicas podem ser concebidas como uma ação precisamente estatal, destinada a alterar condições primárias e avançar em termos civilizatórios – garantia e tutela de direitos constitucionalmente definidos.

Aqui, o que se pretende esclarecer é que há uma diferença significativa em racionalizar políticas públicas como ações governamentais e políticas públicas como ações estatais. É que tratar de políticas públicas como ação governamental pode implicar vinculá-las a grupos políticos eleitos em caráter temporário para administrar o país. Por outro lado, a condição das políticas públicas como ações estatais impõe reconhecer o compromisso das instituições políticas que formam o Estado (Executivo, Legislativo, Judiciário e outros atores institucionais com destacado assento constitucional) em manter processos e alterações para a organização e atendimento dos cidadãos. Se assim considerada, essa definição parece mais apropriado para a realidade brasileira e, inclusive, capaz de assegurar, em maior medida e até do ponto de vista lógico e axiológico-normativo, o cumprimento das nossas promessas constitucionais.

O avanço das modelagens de Estado desaguou no Estado social, preocupado com condições materiais indispensáveis para a consolidação de direitos e a própria ideia de dignidade humana. Nesse aspecto, José Luis Bolzan de Morais e Guilherme Valle Brum pontuam que houve “complexificação nesse modelo estatal, o que o teria deixado com um perfil ainda mais interventor”.[7] E, mesmo considerado o perfil mais recente do Estado brasileiro, que tendencialmente assume um perfil mais regulador,[8] subsiste o compromisso da Constituição com diversos direitos que demandam políticas públicas: políticas no sentido de ação estatal – portanto, de forma permanente.

Sendo – assim – um agir do Estado, as políticas públicas estão vinculadas ao desenvolvimento adequado, correspondendo àquele que alberga a proteção dos fundamentos (art. 1º) do Estado democrático de direito, seus objetivos (art. 3°) e os diversos direitos e garantias fundamentais que conformam a ordem constitucional.

É relevante registrar que os direitos fundamentais previstos na Constituição reconhecem, a priori, a dignidade intrínseca dos cidadãos e desenvolveram-se gradualmente para avançar num projeto de civilização. Sobre o tema, Norberto Bobbio aclara que tais direitos são pressupostos de mudanças sociais e possivelmente realizáveis do ponto de vista técnico.[9]  E, ainda, pondera que há evidente ligação entre direitos sociais e transformação social, sendo exigida a atuação pública e prestação de serviços que só ocorrerão em certos níveis de desenvolvimento econômico e tecnológico.[10]

O arrimo da soberania, cidadania, dignidade  humana e valores social do trabalho e da livre iniciativa (fundamentos do Estado brasileiro) e a construção de uma sociedade mais justa, livre, igual, desenvolvida, com baixo nível de pobreza e diversificada (objetivos do Estado), dependem fortemente da atuação estatal por intermédio de políticas públicas. São esses instrumentais que garantem e garantirão, em situações diversas, a preservação dos compromissos selados no projeto constitucional de 1988. Mais do que esteios político-normativos de permanente constrangimento dos poderes constituídos e da Sociedade em geral, devem ser considerados como verdadeiro movimento de resiliência constitucional destinado ao desenvolvimento.

Para exemplificar, o art. 193 da Constituição de 1988 preceitua que a ordem social está pautada no primado do trabalho e tem como objetivos o bem-estar e a justiça social. E, no seu parágrafo único, reconhece a responsabilidade que o Estado tem de planejar as políticas sociais[11] que garantirão e avançarão na socialidade. Políticas públicas são estratégias da ordem constitucional vigente.

Examinando a Constituição de 1988 com o Método de Análise Constitucional (MAC), Rogério Bastos Arantes e Cláudio Gonçalves Couto concluíram que 69,5% dos dispositivos do texto original tratavam de questões propriamente constitucionais, enquanto 30,5% “diziam respeito a políticas públicas”.[12] O texto constitucional brasileiro também foi comparado a outras constituições[13] e não foi encontrada similaridade nos índices de presença de políticas públicas constitucionalizadas. Ainda, os autores complementam que o reflexo da constitucionalização significativa de políticas públicas no Brasil é um verdadeiro paradoxo, tendo em vista que os efeitos não foram os esperados e o quadro de preferências elaborados pela constituinte está sempre alterando-se contingencialmente.

Por outro lado, a partir da noção de políticas públicas aqui discutido e com base nos fundamentos e objetivos do Estado, nos direitos e garantias fundamentais, na cláusula de abertura material (art. 5º, § 2º) e no dever de planejar políticas sociais (art. 193), cumpre reconhecer que a Constituição de 1988 constitucionaliza políticas públicas como verdadeiras estratégias para a concretização e tutela de direitos. A ação coletiva voltada para a construção do projeto de Sociedade expresso no texto da Constituição assume, de forma clara, as políticas públicas na condição de instrumentos da atuação.

Em reforço a essa análise, cumpre recuperar as reflexões de Bruce Ackerman quando delineia um conceito de democracia dualista: o processo democrático envolve dois momentos distintos que, cada um a seu modo, revelam a soberania do povo. Sobre o povo, o autor entende que esse não se confunde com seus representantes, dessa forma, os representantes são escolhidos pelo povo para atuarem, mas, de fato, suas decisões em determinadas circunstâncias não podem ser concebidas como escolhas do povo.[14]

Sequencialmente, Bruce Ackerman identifica dois momentos democráticos: (a) o momento constitucional, onde a soberania do povo se manifesta extraordinariamente, definindo as bases para fundação do Estado, por assim dizer; e, (b) o momento de política ordinária, no qual os representantes do povo, no cotidiano democrático, passam a decidir politicamente questões relevantes para a comunidade.  No momento constitucional (primeiro momento) há grande e incontestável manifestação da vontade soberana do povo, fenômeno que se explica pelas dificuldades de consenso em relação a temas difíceis e, concomitantemente, pela complexidade de estruturação de decisões com ampla aquiescência social, que tornam o momento constitucional um período extraordinário. A posteriori, a política ordinária (segundo momento) deve respeitar as escolhas feitas pelo povo extraordinariamente, que funcionam como critérios de orientação para as decisões políticas presentes e futuras.[15]

Nesse contexto, parece imperativo reconhecer que a nossa ordem constitucional (momento extraordinário) estabeleceu um conjunto de normas (regras e princípios), que impõem ao Poder Público o planejamento de políticas públicas de forma estratégica para a consubstanciação de direitos fundamentais, sobretudo os do tipo social (direitos prestacionais), a patrocinar resultados que carreiem ao desenvolvimento e evitem, identicamente, contingências indesejadas.

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Ora, se as políticas públicas apresentam resultados dissonantes do padrão a ser estabelecido com base na Constituição, por certo o problema não está na constitucionalização como compromisso com os direitos dos cidadãos, mas sim nos fatores reais de poder que convertem uma ação estatal e estratégica em permanente jogo de interesses, a prejudicar e frustrar cidadãs e cidadãos brasileiros e suas legítimas expectativas de avanço social/civilizatório – infelizmente a demonstrar a efetiva desnaturalização da política ordinária.

O que se quer ressaltar é que os governantes e legisladores não são eleitos para desnaturar ou negligenciar a ordem constitucional posta. O sufrágio democrático não lhes confere/outorga poderes ilimitados para a seu talante desempenhar suas funções, mas sim para buscar a concretização da ordem constitucional. Em um Estado republicano e democrático estável e saudável, não é Constituição que deve andar a reboque dos governos e parlamentos, mas sim estes é que são cativos da ordem constitucional e seus compromissos permanentes. É a política constitucional extraordinária que deve pautar o varejo da política ordinária e servir de limite aos arroubos de maiorias contingenciais.

Necessário destacar que, embora a teoria democrática de Bruce Ackerman não esteja infensa a críticas e não caiba aprofundar na sua análise, para os contornos das reflexões aqui propostas constitui sofisticada organização da percepção democrática, a desnudar nitidamente a distinção de dois momentos importantíssimos: a constitucionalização, extraordinariamente, de políticas públicas; e, ordinariamente, a constante erosão da estruturação de políticas sociais.

Nessa órbita, oportuno destacar que nos últimos anos o Brasil tem experienciado um nítido e acelerado processo de retração dos compromissos com o bem-estar e a justiça social, ainda que este programa de país não tenha sido suficientemente discutido no plano democrático,[16] violando abertamente dispositivos da Constituição de 1988, a exemplo dos artigos 1º, 3º, 5º, 6º, 175 e 193. Ademais, a própria racionalidade de uma governança pública simbólica e esvaziada[17] contribui para que as políticas públicas sejam desconsideradas como instrumentos estratégicos essenciais.


3. POLÍTICAS PÚBLICAS E RESPONSIVIDADE: GENERATIVIDADE PARA A AMBIVALÊNCIA EM TEMPOS DE CRISE

É premente reconhecer que as políticas públicas exigem responsividade por parte dos agentes públicos, sejam eles do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário e demais atores institucionais. Mas é claro e inequívoco que há acentuada preponderância de comprometimento sobre o administrador público – responsável por encampar a gestão burocrática típica diretamente.

Afirmar que políticas públicas demandam responsividade implica dizer que está em evidência a imposição de comportamentos e atitudes que dão apoio e suporte ao favorecimento da realização dos direitos previstos no ordenamento jurídico, de forma que tais ações conduzam à afirmação da legislação e, outrossim, à autonomização do projeto constitucional. Ou seja, cabe aos poderes constituídos, de modo sinérgico, atuar responsivamente em matéria de políticas públicas, visando o fortalecimento instrumental dessas estratégias constitucionais, retirando-as de um espaço cinzento de possível sujeição às ambiguidades decorrentes de interesses políticos ou econômicos de ocasião e em geral distintos daqueles consolidados no momento constitucional brasileiro.

Nesse contexto, responsividade envolve condutas fomentadoras em matéria de políticas públicas pelo menos a partir de três núcleos: (1) previsão normativa: constitucional, abarcando os direitos e garantias fundamentais, bem como políticas constitucionalizadas pela carta política de 1988, e infraconstitucional, relacionada aos preceitos legais de operacionalização; (2) planejamento: obrigação do Poder Público em articular as políticas sociais, conforme o art. 193 e demais disposições da Constituição; e (3) participação: inclusão de cidadãs e cidadãos no debate acerca da construção e execução de políticas públicas pertinentes à proteção da dignidade e do modelo de Estado instituído – também em conformidade com o art. 193 e, adicionalmente, o próprio princípio democrático.

À vista disso, a dimensão da responsividade leva a um processo generativo oriundo da Constituição e de suas disposições. A constitucionalização de políticas públicas é sinalização clara de convenção e compromisso com princípios e direitos básicos e inquestionáveis. É um pacto manifesto para um caminho civilizatório de forma cíclica, a corrigir, sempre que necessário, os caminhos trilhados no âmbito da realização das opções estabelecidas. A Constituição de 1988 exterioriza a máxima preocupação com o desenvolvimento coletivo e o bem-estar presente e futuro – generativamente.

É certo que, no esteio dessas políticas, responsividade e generatividade são indispensáveis ao processo de construção e execução de programas eficientes. Exatamente por essas características, as políticas públicas são molas propulsoras de desenvolvimento, ainda que na realidade enfrentem desafios consideráveis, seja na fase de elaboração, corporificação, custeio, avaliação e aprimoramento.

Em que pese o avanço que a ordem constitucional vigente significa, ela “começa por dar sinais de fenecimento (ou, quem sabe, somente momentânea saturação), dada a (ainda) rarefeita concretização de algumas das suas promessas emancipatórias, libertárias e de igualdade social”,[18] e é nessa lógica que as políticas de atuação previstas na própria Constituição servem de trava a esse cada vez mais visível processo de acinzentamento.

Avançando nesse tema, Benjamin Topper e Patrick Lagadec sustentam que a ideia de crise tem sido alterada ao longo do tempo. Ainda segundo os autores, no século XXI as crises passaram a ser “fora de escala”, incompreensíveis, interdependentes, instantâneas, amplas e acentuadas. Tais qualidades dificultam o aprestamento de combate, testando, pois, a aptidão que o Estado tem em dar respostas adequadas.[19]

Por conseguinte, observa-se que as políticas públicas, com responsividade e generatividade, são uma resposta (antídoto) constitucional prévia a crises em potencial. Essas estratégias servem de sustentáculo para que, de maneira planejada, o Estado, sobremodo a Administração Pública, granjeie reações frente aos imperativos decorrentes de tempos de crise. Com efeito, no contexto brasileiro as políticas públicas devem ser consideradas e operadas na perspectiva de verdadeiros mecanismos institucionais de gerenciamento de recursos, consolidação de direitos, afirmação política, definição de metas e prospecção de resultados civilizatórios.

Refletir acerca de crises nas sociedades contemporâneas e, especialmente no Brasil, não dispensa a percepção sobre a inexorável ambivalência trazida pela modernidade. Portanto, deve-se considerar que haverá, de modo contínuo, condições que apresentarão variáveis em sentidos opostos em algum nível: por mais que o país avance em determinados períodos na promoção de direitos fundamentais, de modo igual esse progresso não será perfeito ou integral, e nem mesmo com segura dimensão de permanência – sim, poderá haver regressão significativa, mesmo que a despeito da Constituição.[20] Nesse sentido, oportuno o alerta de Ingo Wolfgang Sarlet de que o Estado social convive com a crise e a perda de sua novidade, o que reforça a tese da ambivalência.[21]

Mas é justamente no hiato da ambivalência que políticas públicas constituem caminho para superação de átimos de crise: mecanismos constitucionais já estabelecidos e destinados exatamente para o progresso, mas também para a proibição do retrocesso social. Acertadamente, Adriana Schier e Paulo Schier sustentam que a legislação infraconstitucional não pode/poderá ser corrosiva a ponto de esvaziar o próprio texto constitucional, pelo que “da aplicação da cláusula de proibição de retrocesso entende-se que o conteúdo das leis que concretizam tais direitos não poderá ser validamente revogado sem substitutivos compensatórios”.[22]

Ainda, ao tratar de direitos fundamentais sociais e do retrocesso social, Ingo Wolfgang Sarlet ressalta que a preocupação com a proteção desses direitos é uma constante na perspectiva “de todo e qualquer Estado que tenha a pretensão de merecer o título de Estado de Direito”.[23] Para o autor, tal proteção converte-se na proibição do retrocesso social, que significa “proteção de direitos fundamentais em face de medidas do Poder Público, com destaque para o legislador e o administrador que tenham por escopo a supressão ou mesmo a restrição de direitos fundamentais”.[24] Ação ou omissão não podem atingir políticas públicas, vez que consequentemente atingem direitos básicos, não havendo espaço para retrocesso – pelo menos não deveria haver!

Apesar de ser provavelmente inviável um consenso pleno em tempos de crise, mesmo assim importa reconhecer que a Constituição de 1988 fez opções às quais amarrou-se: as políticas públicas. Nossa Constituição desponta como contrato social promissório erigido em tempos de relativa calmaria para nos servir de arrimo e bússola justamente naqueles momentos das mais duras tempestades! Se, por um lado, não é possível evitar externalidades negativas por conta da ambivalência, de outro, políticas públicas construídas responsivamente e com generatividade são a aposta, do aspecto jurídico, para a superação de tempos delicados. E isso não significa que apenas o Estado deverá agir, implementando políticas públicas, adotando condutas fiscais inapropriadas e dispensando o debate acerca da sustentabilidade para o futuro – muito pelo contrário. Mas ao Estado incumbe o dever de articular os meios disponíveis, tanto para o setor público quanto para o privado, alavancando políticas sociais prementes e necessárias. Isto é um mandamento constitucional.

A análise do cenário catastrófico gerado pela pandemia da Covid-19 indica que a resposta ao caos, antes só imaginado em narrativas distópicas, está na adequada promoção e desenvolvimento de políticas públicas. Nesse sentido, a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) averiguou que diversos países responderam à pandemia com mais políticas públicas. Itália, França, Portugal, EUA e Alemanha são exemplos, países que investiram na proteção de trabalhadores, famílias vulnerabilizadas, saúde, cultura e economia, a partir de um conjunto de medidas que vão no sentido da “manutenção dos empregos, da renda e de auxílio aos mais vulneráveis”.[25]

Na mesma linha, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em recomendações para a América Latina e o Caribe, alvitrou duas diretrizes de atuação na pandemia de Covid-19: resposta à crise sanitária e resposta à crise econômica, mas esses feedbacks perpassam, de forma inequívoca, pela construção e execução de políticas públicas robustas,[26] pois “não é possível separar a dinâmica de uma doença que se alastra, as medidas de controle e outras dimensões da vida social e política do país”.[27]

A recomendação publicada pelo BID arrola os itens cruciais da gestão de crise: (i) atuação coordenada; (ii) transparência; (iii) comunicação contínua, coerente e completa aos cidadãos; (iv) planejamento para tutela de periferias e zonas rurais; e, (v) acesso/manutenção de serviços públicos essenciais.[28] Todos elementos que podem ser localizados dentro de um modelo de política pública responsiva e generativa.

Aqui, a claridade desponta não no sentido de forçar as evidências, mas de demonstrar que as constatações e recomendações que têm sido adotadas no plano mundial, para o combate à crise causada pela Covid-19, estão amplamente viabilizadas/indicadas dentro do quadrante constitucional brasileiro.[29] Não se está a tratar de alinhamento econômico ou político, mas sim de uma escolha amplamente alinhada à Constituição de 1988 no sentido de salvaguardar suas cidadãs e cidadãos por intermédio de políticas públicas. Não fossem as políticas sociais existentes o Brasil, provavelmente, não conseguiria dar respostas concretas – apesar do “apagão” da gestão pública em momento tão turbulento.

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Sobre os autores
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Thanderson Pereira de Sousa

Doutorando em Direito Administrativo pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC) (2020). Bolsista CAPES/PROEX. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC) (2019). Membro do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC), do Grupo de Pesquisa em Serviços Públicos e Condições de Efetividade (PPGD/UFC) e da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva ; SOUSA, Thanderson Pereira. A dimensão da responsividade em matéria de políticas públicas:: uma leitura da Constituição de 1988 para a proteção de direitos em tempos de crise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6813, 25 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96477. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Texto publicado originalmente no seguinte livro: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; SOUSA, Thanderson Pereira de. Políticas públicas e responsividade: um caminho civilizatório em átimos de crise. In. ZOCKUN, Maurício; GABARDO, Emerson (Coord.). O direito administrativo do pós-crise. Curitiba, Íthala, 2021, p. 307-319.

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