Apesar de classificado como direito fundamental, não raro é esquecido por aqueles que mais deveriam ter zelo.
Tornou-se comum nos depararmos com operações policiais que, mesmo no período noturno e sem mais delongas, realizam buscas no interior de residências, logrando, diversas vezes, êxito em apreender substâncias entorpecentes, armas de fogo e demais objetos utilizados em práticas criminosas.
É possível que pareça, ao olhar leigo, que as buscas ocorreram dentro da legalidade, principalmente quando os policiais encontram provas de que o morador do domicílio adentrado é, por exemplo, um traficante.
No exemplo acima, há os que julgariam acertada a medida em virtude do crime de tráfico de drogas ter caráter permanente, contexto em que se dispensaria a autorização judicial ou o consentimento do morador.
Todavia, tal raciocínio está defasado e é de salutar importância colocar os devidos pingos nos is.
Para isso, rememora-se a Carta Magna, em seu art. 5º, XI, que preceitua que:
a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
Expressado no texto Constitucional está a inviolabilidade de domicílio, que veda o ingresso forçado nas residências, salvo hipóteses excepcionais. A previsão designa proteger a intimidade, a privacidade e a vida privada de cada cidadão.
Não obstante, está no Título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, ou seja, trata-se de uma cláusula pétrea e, portanto, foi revestida de maior preocupação pelo constituinte quando da sua elaboração.
Assim estabeleceu, em seu art. 11.2, o Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, conhecido como Pacto de São José da Costa Rica:
Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 603.616, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em sede de repercussão geral, fixou a tese de que é permitida a entrada forçada em domicílio, sem mandado judicial, quando amparada em fundadas razões, justificadas a posteriori, de que há, dentro da residência, situação de flagrância, ainda que seja em período noturno (Tema 280).
Constata-se que a relativização de um direito de tamanha magnitude carece do preenchimento de critérios, leia-se, no caso fundadas razões de que há situação de flagrância no interior do imóvel.
A entrada no domicílio de qualquer cidadão depende de sua autorização, isto é, sem que haja a anuência do morador, já dizia o poema, nem o Rei da Inglaterra poderá entrar[1].
Entretanto, não é o que se constata.
Nesse sentido, a justificativa para o ingresso forçado é sempre similar: o morador autorizou a entrada. Em alguns casos, inclusive, se faz crer que o dito criminoso, abordado em via pública, conduz os policiais espontaneamente até sua própria residência, mesmo que artefatos criminosos estejam guardados no imóvel.
É desarrazoado esse contexto, dado que absolutamente ninguém se prestaria a tal serviço, atentando-se contra si mesmo.
Citando o mesmo exemplo de um traficante, não é crível acreditar que, uma vez abordado, este deporia espontaneamente contra si, sustentando, certamente, uma futura condenação criminal por crime equiparado a hediondo.
Não raras vezes, conclui-se, de imediato, que a autorização ou o consentimento do suspeito está viciada.
Ainda assim, há muito não é incomum que juízes e tribunais de justiça acatem a justificativa dos agentes de segurança, mesmo que desprovida de qualquer prova ou, então, do próprio bom senso.
Felizmente há, desde o ano de 2021, salutares decisões do Superior Tribunal de Justiça no sentido de melhor salvaguardar o direito fundamental à inviolabilidade de domicílio, invalidando as buscas no interior do imóvel e declarando a ilicitude das provas ali encontradas.
São diversos julgados, como, por exemplo: Resp n. 1.574.681-RS; AgRg no Habeas Corpus n. 681.738-SC; Habeas Corpus nº 616.584 RS; AgRg no Habeas Corpus nº 683.522 GO; AgRg no Recurso em Habeas Corpus nº 149.964 SC;
Os posicionamentos ostentam extrema relevância, tendo em vista que as invasões ilegais afetam inúmeras famílias brasileiras, principalmente aquelas mais carentes e em estado de vulnerabilidade social, que, naturalmente, estão mais suscetíveis a arbitrariedades.
A fim de corrigir a problemática, é necessário conscientizar as forças de segurança a fim de aterem-se a legalidade para o ingresso em residências, respeitando, para tanto, os ditames Constitucionais.
É assaz importante frisar que não se busca atacar a imagem da polícia, muito menos ofender aos que, de fato, arriscam suas vidas prestando um serviço essencial. A crítica é dirigida àqueles que, ao arrepio da lei, simplesmente invadem residências, de qualquer forma, a qualquer hora do dia, sem justa causa.
Para além dos casos em que realmente há artefatos criminosos dentro do imóvel - e que, como já explanado, não justifica a invasão -, há aquelas moradias de pessoas honestas, trabalhadoras e que são violentamente acordadas no meio do repouso. No fim, não passa de punição por residir em local precário.
Dessa forma, não se deve menosprezar os danos a uma família que tem sua moradia invadida, com objetos pessoais revirados e intimidade violada. É fato que, nesses casos, os danos não se limitarão ao momento, mas se prolongarão no tempo, permanecendo a humilhação perante os vizinhos, motivo pelo qual deve o Poder Judiciário garantir a dignidade àqueles que, notadamente pelo estado de vulnerabilidade social, são invisíveis aos olhos de muitos, mas ainda sim são cidadãos brasileiros.
Não se pode fechar os olhos a essa realidade.
- William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of Statesmen in the Time of George III First Series (1845) vol. 1