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Motivação do crime e criminologia crítica

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O atual quadro de crise do sistema penitenciário demanda soluções coerentes, dependendo, para isso, da seriedade e cientificidade do discurso sobre política penitenciária.

1. INTRODUÇÃO

Quando o tema política criminal entra em cena, mais especificamente relacionado ao sistema penitenciário, uma das conclusões mais rotineiras, para não dizer precipitadas, é a de que esse sistema está falido. Jargões do tipo cadeia não cura ninguém, cadeia é faculdade do crime, etc., geralmente costumam aflorar os ânimos dos interlocutores. No entanto, é preciso esclarecer que esse é um tipo de debate coloquial, ou seja, desprovido de quaisquer fundamentos empíricos. Para quem, de fato, atua de algum modo no sistema de justiça criminal, a questão é muito mais complexa e delicada. A opinião de um cidadão, muitas vezes influenciada pela audiência midiática de um crime bárbaro, dificilmente sustentará boas práticas de política penitenciária.

O atual quadro de crise do sistema penitenciário demanda soluções coerentes, dependendo, para isso, da seriedade e cientificidade do discurso sobre política penitenciária. Por isso, como nos adverte Sá, é imperioso evitar, a todo custo, que o sistema seja permeado por ideologias contraditórias[3], como, por exemplo, a tomada de decisões pontuais e casuísticas. Se, por um lado, medidas de oportunidade e conveniência atendem ao clamor público; de outro, essas medidas nada contribuem para a solução da causa do problema instalado. Com efeito, o pecado dessas medidas é o de mirar nos efeitos da crise, e não na sua causa.

Segundo nos afirma Sá, para que o sistema penitenciário seja, de fato, um sistema, é irrecusável o pressuposto de que o mesmo deve ter suas bases conceituais bastante coerentes, consistentes e, por que não dizer, claramente ditas, explicitadas e assumidas.[4] Noutras palavras, serão por meio dessas bases conceituais que se definirão os pilares de um sistema penitenciário coerente, dotado de profissionais não apenas qualificados, como também vocacionados para o mister da reintegração social do preso.[5]

Nesse sentido, conceitos como o de motivação criminal e criminologia clínica são, entre outros, um dos principais pressupostos teóricos a demandar uma nova visão para uma nova política penitenciária.

2. MOTIVAÇÃO CRIMINAL E CRIMINOLOGIA CLÍNICA

Motivação do crime é, sem dúvida, um dos temas que mais instiga o investigador, seja ele da polícia judiciária ou das ciências sociais. Mais ou menos determinante, o motivo é sempre uma peça do quebra-cabeça, que, a propósito, nem sempre é possível reconstruir. Por esse motivo a abordagem da motivação criminal se tornou a pedra de toque pela qual se diferenciam os mais diversos posicionamentos científicos e ideológicos sobre crime, criminalidade e homem criminoso.[6] Ao abordar o tema da motivação criminal, Sá perpassa três concepções de três correntes doutrinárias distintas: a causalista, a multifatorial e a crítica[7].

De acordo com a concepção causalista, entre a conduta criminosa e a causa dessa conduta sempre há uma relação de causa e efeito.[8] Nesse sentido, o crime seria uma decorrência natural, ou quase que necessária, frente a certas condições imanentes daquele que o praticou.[9] Segundo essa concepção, a conduta criminosa tende a ser compreendida como conduta anormal, desviada, como possível anomalia física ou psíquica.[10] Ou seja, o criminoso é uma pessoa perigosa, e, como tal, deve ser tratada.

A concepção causalista é a que predominava na criminologia clínica tradicional e na legislação penal brasileira até o ano de 1984, quando houve a mudança da legislação e adoção do sistema vicariante.[11] Em suma, trata-se de uma concepção ultrapassada.

A concepção multifatorial, por sua vez, é aquela que aponta não apenas um causa determinante para o crime, mas diversos fatores ou circunstâncias, que, interligadas entre si, denotam uma relação de causas e efeitos. Ou seja, essa concepção traduz um aprimoramento da concepção causalista, o que, certamente, veio influenciar o espírito da própria Lei de Execução Penal, caracterizado, entre outras coisas, pela preocupação por buscar a individualização da execução da pena, respeitar o preso como pessoa, como cidadão, e não, simplesmente, como criminoso.[12]

A criminologia clínica moderna se pauta pela concepção multifatorial da motivação criminal e, como tal, atua de modo a estudar não só a pessoa do apenado, mas também sua família, seus anseios, objetivos e perspectivas de vida.

Em oposição às duas concepções de motivação criminal acima tratadas, tem-se a concepção crítica da motivação do crime, cujo traço característico é o de deslocar o foco de estudo e apreciação do fenômeno do crime de suas causas e motivos para os fundamentos e princípios que norteiam o Direito Penal e o sistema de justiça em geral.[13] Ou seja, o que se busca a partir dessa concepção é estudar a relação que se estabelece entre a pessoa do preso e a sociedade, v. g., uma relação de antagonismo inaugurada pelo Direito Penal, ao selecionar certas condutas como criminosas; e que, num segundo momento, concretiza-se com a sentença penal condenatória e o encarceramento do apenado.

Norteada por essas premissas, a criminologia crítica propõe um plano de ação que visa reestabelecer o vínculo do preso com a sociedade, assim como da sociedade com o preso. Segundo a criminologia crítica, o condenado não é mais do que uma pessoa excluída, marginalizada pelo sistema de política criminal, que é seletivo e muitas vezes incoerente quanto às seleções que faz. Segundo Sá, a criminologia crítica deve preocupar-se em estudar, não fatores criminógenos, mas os fatores sociais e individuais que promoveram e facilitaram a criminalização por parte do sistema penal.[14]

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Ao contrário da criminologia clínica moderna, ainda fortemente influenciada pelas ideias de ressocialização do apenado, a criminologia crítica propõe a reintegração do preso no local de onde nunca deveria ter sido excluído, qual seja, a sociedade. Essa é a grande diferença entre a primeira e a segunda perspectiva criminológica do sistema penitenciário. Diante disso, a questão que se coloca no momento é então de saber como e de que forma a criminologia crítica pode contribuir na missão de reintegrar pessoas ao convívio social.

3. UMA TOMADA DE POSIÇÃO

A missão de reintegrar pessoas ao convívio social, nomeadamente aquelas que sofreram a violência da pena de prisão, é sem dúvida o maior desafio da sociedade. Para que isso seja possível, antes de tudo é preciso crer que as pessoas envolvidas nesse trabalho estejam comprometidas, eticamente, com essa missão. Além do mais, essa missão também demanda uma nova visão da pessoa do apenado. Ou seja, é preciso que os envolvidos nesse plano de reintegração social tenham consciência de que o preso é um ser humano e, como tal, assim deve ser tratado: com respeito e dignidade.

Mas essa consciência ética dos atores da justiça criminal, v. g., dos juízes, promotores, delegados, agentes penitenciários, psicólogos, psiquiatras, etc., por si só não atende à missão de reintegrar pessoas ao convívio social. Como dito alhures, a relação antagônica entre o preso e a sociedade é algo que deve ser trabalhada, estudada e viabilizada. E neste ponto a intervenção da sociedade (comunidade local) é de suma importância. Não adianta a sociedade protestar por mais segurança pública, penas mais severas, etc., se ela mesma não se conscientizar do seu papel no trabalho de reintegração das pessoas que ela decidiu excluir por intermédio de suas instituições públicas.

Isso ocorre porque, conforme adverte Anunciação[15], os mecanismos de exclusão podem se dar tanto por intolerâncias e preconceitos, quanto pela deficiência na efetivação dos conceitos de democracia, igualdade, liberdade e justiça.

Nesse compasso, mostra-se relevante a criação e atuação dos Conselhos da Comunidade em matéria de política criminal, tal como preconiza o art. 61, VII, da Lei de Execução Penal. Noutra vertente, importante contributo da sociedade em matéria de reintegração social será, sem dúvida, a criação de reais oportunidades de trabalho remunerado e qualificação técnico-profissional não apenas no regime fechado, como também no semiaberto e aberto. Para além de obrigação do Estado, esse tipo de iniciativa deve ser estimulado pelo poder público junto ao empresariado nacional e internacional.

Como nos afirma Sá:

As estratégias de reintegração social não devem ter a pretensão de promover, no interno, qualquer tipo de re-adequação ética, ou, em termos gerais, de re-adequação de conduta. Não devem ter a pretensão de conscientizá-lo sobre seus erros no passado. O interno tem que se conscientizar, isto sim, daquilo que ele pode acertar, que ele pode fazer, de suas qualidades, do cidadão e da força construtiva que existem dentro dele.[16]

Todavia, para que essa missão seja alcançada, mais do que boas intenções é preciso que os envolvidos estejam verdadeira e eticamente comprometidos com o processo gradual de reintegração social do apenado.

4. CONCLUSÃO

É preciso (re)construir os pilares que fundamentam a política criminal, nomeadamente o sistema penitenciário. Essa (re)construção pressupõe sejam resguardados os valores mínimos da existência humana. A criminologia crítica, fundada na concepção crítica da motivação do crime, é hoje o principal instrumento de transformação e reformulação do sistema de justiça penal. Contudo, se não houver uma reformulação do agir daqueles que estão diretamente vinculados ao processo de reintegração social do apenado, de nada adiantarão os esforços. Também a sociedade, v. g., a comunidade, é parte protagonista desse trabalho. A ela compete reconstruir os vínculos que foram rompidos com a pessoa do preso, de modo que este, ao resgatar a liberdade, encontre na sociedade mecanismos materiais e efetivos que viabilizem a sua reinserção social.

REFERÊNCIAS

ANUNCIAÇÃO, Júnia Oliveira de. Os corredores da prisão sob um novo olhar: o egresso que queremos ter. In: OLIVEIRA, Tarsis Barreto; Oliveira Filho, Enio Walcácer de Oliveira; SOARES, Paulo Sérgio Gomes. (Orgs.) Sistema penal e direitos humanos. São Paulo: Perse, 2015.

MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. O sistema vicariante na Lei nº 11.343/2006. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/9654/o-sistema-vicariante-na-lei-no-11-343-2006/2. Acesso em 23 de dezembro de 2021.

SÁ, Alvino Augusto. Sugestão de um esboço de bases conceituais para um sistema penitenciário. Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:JgILt8re1AEJ:www.sap.sp.gov.br/download_files/reint_social/apresentacao/sugestao_esboco.doc+&cd=2&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=br. Acesso em 23 de dezembro de 2021.


  1. .
  2. .
  3. SÁ, Alvino Augusto. Sugestão de um esboço de bases conceituais para um sistema penitenciário. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:JgILt8re1AEJ:www.sap.sp.gov.br/download_files/reint_social/apresentacao/sugestao_esboco.doc+&cd=2&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=br. Acesso em 23 de dezembro de 2021.
  4. (SÁ 2013)
  5. (SÁ 2013)
  6. (SÁ 2013)
  7. (SÁ 2013)
  8. Considerando a existência de uma situação típica e a omissão da paciente no sentido de evitar o resultado que lhe era previsível, embora possuísse condições concretas de fazê-lo, não vislumbro constrangimento ilegal na decisão que a condenou pela prática do crime de homicídio culposo, nos moldes do que preconiza o art. 13, § 2º, do Código Penal. (HC 166.810/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 01/03/2012, DJe 13/03/2012).
  9. (SÁ 2013)
  10. (SÁ 2013)
  11. Sistema vicariante é o de substituição. É um sistema em que haverá pena ou medida de segurança, um substituindo o outro. No CP de 1940 adotávamos o sistema do duplo-binário, pelo qual havia pena e medida de segurança, a serem impostas ao semi-imputável, com a reforma de 1.974 passamos a adotar o sistema vicariante, isso para a acompanhar a Alemanha. MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. O sistema vicariante na Lei nº 11.343/2006. 2003. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/9654/o-sistema-vicariante-na-lei-no-11-343-2006/2. Acesso em 23 de dezembro de 2021.
  12. (SÁ 2013)
  13. (SÁ 2013)
  14. (SÁ 2013)
  15. ANUNCIAÇÃO, Júnia Oliveira de. Os corredores da prisão sob um novo olhar: o egresso que queremos ter. In: OLIVEIRA, Tarsis Barreto; Oliveira Filho, Enio Walcácer de Oliveira; SOARES, Paulo Sérgio Gomes. (Orgs.) Sistema penal e direitos humanos. São Paulo: Perse, 2015, p. 119.
  16. (SÁ 2013)
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Sobre os autores
Wellington Magalhães

Wellington Magalhães é juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO). Diretor Adjunto de Altos Estudos e Pesquisa da Escola Superior da Magistratura do Tocantins (ESMAT). Coordenador do Núcleo de Prevenção e Regularização Fundiária da Corregedoria Geral de Justiça do Tocantins (NUPREF) e do Centro Judiciário de Solução de Conflitos Ambientais e Fundiários (CEJUSCAF). Membro permanente do Fórum Fundiário Nacional das Corregedorias-Gerais de Justiça do Brasil (FFN). Coautor do Programa Permanente de Inclusão Sociopolítica dos Povos Indígenas do Tocantins (TRE-TO) e do Projeto Gestão de Alto Nível dos Recursos Hídricos da Bacia do Rio Formoso (IAC/UFT). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal (FDUC) e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins, Brasil (UFT). Doutor em Desenvolvimento Regional com tese Desenvolvimento Regional, Políticas Públicas e Efetividade da Prestação Jurisdicional: proposições a partir do processo estrutural na resolução de conflitos pelo uso da água (UFT). Formador credenciado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Coordenador de cursos jurídicos e conferencista sobre temas afetos aos direitos humanos, meio ambiente, povos indígenas e efetividade da prestação jurisdicional.

Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Wellington ; OLIVEIRA, Tarsis Barreto. Motivação do crime e criminologia crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6828, 12 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96589. Acesso em: 16 nov. 2024.

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