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Cidadania, população e Judiciário: os eixos do acesso à justiça segundo o CNJ

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O presente trabalho busca apresentar os eixos que integram a análise sobre o acesso à justiça pela população brasileira. O estudo do tema apresenta relevância quando se observa que esse acesso não pode ser medido apenas diante da perspectiva do Judiciário. Com o objetivo de evidenciar o modelo adotado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para mensurar o acesso à justiça, esta pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa do relatório elaborado pelo CNJ sobre o índice de acesso à justiça, com objetivo descritivo e uso da pesquisa bibliográfica e documental. Concluiu-se que os eixos da cidadania e da população refletem características regionais e populacionais essenciais para saber o quão fácil ou difícil é o acesso à justiça. Esses eixos, quando articulados com o Judiciário, fornecem uma ideia aproximada do estágio do problema.

INTRODUÇÃO

O conceito de acesso à justiça tem sofrido uma série de transformações importantes no decorrer histórico. Seu conceito clássico remonta desde os Estados liberais dos séculos XVIII e XIX, quando os procedimentos para solução de litígios refletiam a filosofia individualista dos direitos. Nesse período, o direito formal ao acesso à proteção judicial significava, essencialmente, o indivíduo agravado propor ou contestar uma ação. Tal filosofia seguia a teoria de que o acesso à justiça, enquanto direito natural, não necessitava de uma ação do Estado para a sua proteção, por ser anterior a este. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade apenas formal, mas não efetiva.

Com o surgimento do Estado de bem-estar social, percebeu-se comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de direitos sociais básicos. Assim, o direito ao acesso efetivo à justiça foi progressivamente reconhecido como sendo de

importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. Nesse sentido, o acesso à justiça passou a ser encarado como um dos requisitos fundamentais de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9, 11-12).

Cappelletti e Garth (1988) distinguem o acesso à justiça em duas finalidades básicas do sistema jurídico: primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. Essa distinção tem como uma premissa básica a de que a justiça social, tal como desejada por todas as sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo ao direito.

Observando a complexidade das dinâmicas que envolvem o acesso aos tribunais brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propôs a criação de um índice de acesso à justiça como ferramenta para fornecer um panorama do alcance dos serviços judiciários no Brasil. Nesse contexto, a problemática central desta pesquisa converge com o ponto principal observado pelo levantamento realizado pelo CNJ de que, apesar da resolução do processo jurídico constituir uma etapa importante, o acesso à justiça não pode ser medido apenas a partir do Judiciário (CNJ, 2021), ao revés, exige uma perspectiva multidirecional sobre os fenômenos sociais, culturais, históricos e institucionais, especialmente acerca da população e da cidadania. Assim, o presente trabalho tem por objetivos: (i) descrever os eixos usados pelo CNJ para definir o acesso à justiça e sua importância na composição do índice de acesso; (ii) apresentar um breve panorama do acesso formal e material à justiça.

METODOLOGIA

O presente estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica e documental, sobretudo mediante a análise dos dados contidos no relatório elaborado e publicado em fevereiro de 2021 pelo CNJ, por meio da Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos Serviços Judiciários, que versa acerca dos índices de acesso à justiça e propõe uma ferramenta para mensurar o acesso à Justiça pela população brasileira. A pesquisa pode ser caracterizada como descritiva, pois busca descrever, para além do foco no Poder Judiciário, como os eixos da cidadania e da população encontram-se relacionados com o acesso à justiça. Ao abordar os componentes do índice apresentado pelo CNJ, utilizou-se uma abordagem qualitativa.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

No contexto brasileiro, o acesso à justiça, enquanto princípio processual formal, está previsto em diversos dispositivos legais. A principal referência é ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que afirma: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Esse mandamento constitucional, que consagrou o acesso à justiça como um direito primordial, implica a possibilidade de que todos, sem distinção, possam recorrer à justiça, e tem como consequência atuar no sentido de construir uma sociedade mais igualitária e republicana.

Nesse sentido, o princípio do acesso à justiça é entendido como sinônimo do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, também conhecido como princípio da universalidade ou ubiquidade da jurisdição. Nesse caso, compreende-se que qualquer forma de pretensão ou afirmação de direito pode ser levada ao Poder Judiciário para solução. Essa concepção é denominada de acesso à justiça em sentido formal. Isso porque, o mesmo assume uma concepção orgânica ou institucional, dizendo respeito ao órgão ao qual se busca acesso. Destarte, no conceito clássico, a palavra justiça é entendida como sinônimo de Poder Judiciário, podendo ser traduzido como o acesso à jurisdição (GONZÁLEZ, 2019).

A partir dos movimentos e reformas constitucionais e processuais recentes, o conceito de acesso à justiça passou por importantes atualizações. A problemática do acesso à justiça foi deixando de ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se tratando mais de possibilitar o mero acesso à justiça apenas enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso efetivo à ordem jurídica justa. Isto é, o acesso aos direitos, o direito a ter direitos, o acesso à juridicidade o que pode ocorrer independentemente de intervenção judicial, inclusive mediante a educação em direitos e os chamados meios adequados de solução de conflitos como a conciliação, a mediação e arbitragem (GONZÁLEZ, 2019).

Nesse novo conceito, o acesso à justiça passou a ser entendido de forma mais ampla, não abrangendo apenas a esfera judicial, mas também a extrajudicial. O direito ao acesso à justiça constitui agora o acesso à ordem jurídica justa, no sentido de que os cidadãos têm o direito de serem ouvidos e atendidos não somente em situação de controvérsias com outrem, como também em situação de problemas jurídicos que impeçam o pleno exercício da cidadania.

Nesse sentido, o significado do acesso à justiça seria de enorme pobreza valorativa se se resumisse apenas àquela acepção clássica, institucional, formal. No conceito atualizado, portanto, o acesso à justiça adquire uma concepção ética, axiológica, valorativa. Destarte, no acesso à justiça em sentido material, a palavra justiça refere-se ao valor da justiça, não se tratando apenas de acessar o Poder Judiciário, mas à juridicidade como um todo. Desse modo, o princípio do acesso à justiça se dissocia do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, ganhando vida própria, abarcando este e indo além, de forma muito mais ampla.

Seguindo essa base de pensamento, Sadek (2014) defende que o direito ao acesso à justiça não significa apenas recurso ao Poder Judiciário sempre que um direito seja ameaçado. Esse direito envolve uma série de instituições estatais e não estatais. Como consta do texto constitucional, são vários os mecanismos e instituições que podem atuar na busca da solução pacífica de conflitos e do reconhecimento de direitos. Algumas experiências têm sido adotadas, mas ainda pouco exploradas e difundidas, com o objetivo de encurtar os caminhos que levam à porta de saída. São exemplos: a conciliação pré-processual, a conciliação processual, o gerenciamento e a informatização.

OS EIXOS DO ACESSO À JUSTIÇA: A ABORDAGEM DO CNJ

Partindo da ideia de que o acesso à justiça deve ser medido também por outros indicadores que não o Judiciário, as características regionais e populacionais dos jurisdicionados refletem de forma significativa, pois as vulnerabilidades sociais observadas por meio dessas análises interseccionais se mostram como obstáculo na busca por uma prestação jurisdicional. É nesse sentido que o CNJ, ao propor o Índice de Acesso à Justiça (IAJ), conjectura a necessidade de abordar questões qualitativas, históricas, institucionais, políticas econômicas, culturais e sociais. Surgem, então, a cidadania e a população como eixos que, junto com a atuação do Poder Judiciário, integram a construção do indicador, conforme pode ser observado na figura 1.

Figura 1 Representação esquemática do Índice de Acesso à Justiça e seus componentes

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Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2021

Observa-se que no capital população buscam-se, com o intuito de identificar as desigualdades regionais existentes no Brasil, informações sobre o perfil populacional e sua dinâmica. Assim, a investigação de aspectos sociais relativos à saúde, à educação, ao perfil da população e à dinâmica demográfica responde a questionamentos fundamentais para entender o acesso à justiça, como se a população reconhece seus próprios direitos e se possuem conhecimento de como requisitar assistência jurídica adequada para a resolução do conflito.

No capital cidadania a análise se encontra direcionada para o modo pelo qual os indivíduos atuam em prol do gozo dos seus direitos civis e políticos. Isto é, busca-se agregar informações sobre o conhecimento e reconhecimento de direitos e deveres por parte da população. Afinal, o conhecimento e a determinabilidade do direito a ser pleiteado deve anteceder a busca por uma prestação jurisdicional do Poder Judiciário.

Ainda tratando acerca do eixo da cidadania, o estudo sobre as características da população e a sua vulnerabilidade busca responder à seguinte indagação: o quão distante a parcela da população que não possui tais serviços básicos está em acessar a justiça? Ou seja, busca-se entender se há relação direta entre a vulnerabilidade socioeconômica e as possibilidades de ingresso no Judiciário. Outro aspecto importante diz respeito à rede de amparo prestada aos indivíduos da comunidade pelas instituições de serviços públicos. Assim, identificar o grau de acesso a serviços públicos (escolas, postos de saúde e unidades de assistência social) é essencial para saber se a população procura conhecimento e ajuda especializada.

CONCLUSÃO

A dificuldade de se analisar o acesso à justiça pela população brasileira converge com a complexidade dos fenômenos sociais emergentes. Isto é, uma análise acerca do tema envolve uma abordagem igualmente complexa, que expresse questões sócio-históricas, culturais e institucionais. Portanto, abordar o acesso à justiça somente sob a perspectiva do ingresso ao Judiciário transformou-se em método defasado, haja vista a necessidade de se observar aspectos multifacetados e relevantes para explicar o constructo social do acesso à justiça.

Na linha do exposto, observa-se a importância da inclusão dos eixos da cidadania e da população na abordagem do tema, pois os aspectos relacionados ao perfil da população e da dinâmica demográfica do local são fundamentais na compreensão do nível de dificuldade no acesso à prestação jurisdicional. Por fim, identifica-se que o manejo das informações obtidas com o relatório do CNJ auxiliará os gestores públicos na tomada de decisões e na implementação de políticas públicas em prol da democratização do acesso à justiça.


REFERÊNCIAS

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Editora SafE, 1998, 1ª ed.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Índice de acesso à justiça. Brasília: CNJ, fevereiro, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/02/Relatorio_Indice- de-Acesso-a-Justica_LIODS_22-2-2021.pdf. Acesso em: 04/03/2022.

GONZÁLEZ, Pedro. O Conceito atualizado de acesso à justiça e as funções da Defensoria Pública. Teses e Práticas Exitosas. Defensoria Pública: memórias, cenários e desafios. XIV CONADEP, Rio de Janeiro (p. 43-49), 2019. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/LIVRO_TESES_E_PRATICAS_XIV_CONADEP_TESE S_1.pdf. Acesso em: 05/03/2022.

SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à Justiça: Um Direito e Seus Obstáculos. Revista USP, São Paulo, Nº 101, p. 55-66, Maio de 2014. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/87814/90736>. Acesso em: 05/03/2022.

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Sobre o autor
Matheus Alexandrino José da Silva

Aluno do 5º semestre do Bacharelado em Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Matheus Alexandrino José. Cidadania, população e Judiciário: os eixos do acesso à justiça segundo o CNJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6834, 18 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96715. Acesso em: 2 nov. 2024.

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