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O conceito de mulher honesta e a honestidade do sistema punitivo

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Como resultado concreto, pelo menos no plano legislativo, da CPI Mista da Exploração Sexual, surgiu a Lei n.º11.106/2005, trazendo importantes alterações no regramento do Código Penal referente aos delitos de natureza sexual. Esse documento legislativo está completando exatamente um ano de vigência neste mês de março. Portanto, uma sugestiva data para analisar o contexto sócio-jurídico em que se encontra inserido e tentar vislumbrar os seus desdobramentos possíveis.

Poderíamos tentar resumir as mudanças legislativas da seguinte maneira: (a) revogação integral dos dispositivos penais dos crimes de sedução (art.217), rapto violento ou mediante fraude (art.219), rapto consensual (art.220) e adultério (art.230); (b) inclusão do companheiro entre os sujeitos ativos do crime de mediação à lascívia de outrem (art.227, §1º); (c) supressão do adjetivo "honesta", jungido ao substantivo "mulher", nos delitos de posse sexual mediante fraude (art.215) e atentado ao pudor mediante fraude (art.216). E é particularmente em torno deste último tópico que pretendemos tecer algumas considerações nas linhas seguintes.

O conceito jurídico de "mulher honesta" é sintomático do discurso oficial projetado pelo direito penal. Na antiga lição de Hungria, mulher honesta é "não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes" (in Comentários ao Código Penal, v.8, 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.139). Para muitos críticos, a moral a que se refere o doutrinador é a burguesa, de viés conservador e machista e os bons costumes são aqueles em que sexo, para a mulher, só deve ser experimentado no casamento. Enfim, trata-se da operacionalização do direito penal com o objetivo de regular a moral subjetiva e mesmo a maneira de ser das pessoas, algo evidentemente incongruente – para dizer o mínimo - com qualquer regime democrático.

Mas não se propõe aqui simplesmente empreender uma leitura feminista de um conceito jurídico. O fato é que a apropriação, pelo direito penal, da idéia de honestidade no comportamento sexual da mulher nunca escondeu suas verdadeiras pretensões. De início, pode-se dizer que a própria etimologia da palavra "honestidade" é desvirtuada ou pelo menos amputada. Para ela, segundo os dicionaristas, há dois significados básicos: o primeiro compreende franqueza, sinceridade, e o segundo, e que aqui mais nos interessa, está relacionado a decência e honradez. Nestes termos, sujeito honesto é aquele que se pauta por uma conduta decente e honrada perante a sociedade em que vive e com as pessoas com quem se relaciona. Honestidade, portanto, não deixa de ser um modo especial de qualificar, julgar a conduta de um indivíduo, homem ou mulher. Daí porque serve a adjetivações.

Ora, sabe-se que o fundamento do sistema punitivo reside no argumento da necessidade de proteção de determinados bens jurídicos, mediante utilização de instrumentos sancionadores de caráter rigoroso, isto é, a pena como castigo. Engraçado constatar, e a criminologia crítica já o fez há bastante tempo, que o próprio direito penal cuida de selecionar e indicar os bens merecedores de seus instrumentos protetivos. Este é o discurso oficial, sobre o qual todo o sistema se legitima juridicamente. No entanto, esse mesmo sistema desempenha funções latentes, e que podem ser compreendidas na tarefa de manutenção de uma determinada ordem social e a preservação de valores morais, de certo modo impostos ou manipulados por segmentos da sociedade que controlam os mecanismos de criação do direito estatal, tanto o legislativo como o judiciário.

Um exemplo dessa monopolização é a idéia calcificada de "mulher honesta". A decência e honradez no comportamento sexual são atributos ligados por essa ideologia a um perfil específico de mulher. Trata-se da mulher casada, do lar, educadora dos filhos, sem trabalho externo. Por conseguinte, poderiam se ver excluídas ou, pelo menos, com dificuldades de imediata inserção as outras mulheres, hoje tão presentes na sociedade brasileira, marcadamente plural e heterogênea, como aquela que, depois de abandonada pelo companheiro, trabalha para sustentar o lar; a jovem que focaliza sua carreira e posterga a união com alguém e a chegada de filhos; aquela outra que demonstra e exerce suas preferências homoafetivas. Todas elas podem ter namorados, companheiros, relacionamentos passageiros ou simples encontros casuais com parceiros sexuais. Trazem seus homens – ou mulheres - para dentro de suas casas, para o convívio familiar. Então, caberia afirmar que elas têm bons costumes? Elas podem afinal ser consideradas "mulheres honestas"?

Por isso, torna-se interessante notar dois aspectos correlatos. O primeiro é a interpenetração entre os delitos que incluem o conceito de "mulher honesta" como elemento do tipo e o recém-revogado delito de adultério. É evidente que o adultério é uma conduta, segundo os padrões então vigentes, só praticável por mulher desonesta, já que, casada, mantém relacionamento sexual com alguém que não o cônjuge. Em ambos os casos, o que se vê é o interesse de preservar a monogamia e o valor cristão da fidelidade conjugal, inclusive, para garantia de direitos sucessórios. O segundo diz respeito à idéia de liberdade sexual. Paradoxalmente, só há liberdade para a mulher, suficiente para torná-la merecedora de proteção jurídico-penal, quando ela é contida, recatada. A mulher "liberal", cuja conduta sexual é reprovada pelo direito penal, não recebe albergue.

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A simples supressão dessa expressão dos tipos penais não parece ser suficiente para se fazer sentir no modus operandi do sistema de justiça criminal, aqui entendida como um aspecto do sistema punitivo, ao lado do arcabouço legal. Pretendemos dizer que retirar um termo obsoleto de uma norma penal não é capaz, por si só, de repercutir na maneira como o discurso do sistema punitivo desempenha suas funções.

O sistema de justiça criminal antepõe resistência à penalização de agressores, quando se verifica, no caso concreto, que a mulher apresentada como vítima demonstra comportamento sexual "liberal" ou "avançado", como já se viu em muitas decisões judiciais. É certo que, depois de algum tempo, as prostitutas, em circunstâncias excepcionais, ascenderam (!) à condição de hipotéticas vítimas. Mas basta lembrar a jurisprudência em torno do crime de estupro. Embora não explicitado no tipo penal do art.213, o conceito de "mulher honesta" está ali, implícito, pressuposto, subentendido. Ainda predomina nos tribunais a tese de que, no estupro, a vítima deve demonstrar resistência efetiva, dissenso claro quanto ao ato sexual, e não o contrário, quer dizer, não é o acusado-homem que deve provar ter superado eventuais obstáculos da mulher, ter conseguido convencê-la a praticar o ato sexual. Embora as citações jurisprudenciais insistam em dizer que não se está julgando o comportamento da mulher-vítima, e alguns até reforçam que isso nem mesmo pode ser cogitado, basta um mero indício de que a mulher-vítima não apresenta conduta sexual recatada ou "honesta" para desculpar o agressor. É a lógica de que pouco importa se, em algum momento, a mulher tenha dito ou dado a entender um "não" ao homem. Se houve alguma paquera, um leve toque de mãos, uma frase sedutora, um anterior encontro íntimo, isso parece suficiente para legitimar qualquer investida do agressor.

Em conclusão, acreditamos que não é o caso somente de jogar na lata do lixo da história legislativa conceitos legais arraigados na tradição jurídica brasileira, senão de fazer refletir no sistema punitivo como um todo as mudanças sociais observadas. Mas isso não se decreta com uma canetada, ou seja, não se resume à intervenção do legislador. Antes, é o resultado de um tormentoso processo de reestruturação de valores e de mentalidades, envolvendo todos os agentes do sistema de justiça criminal: juízes, promotores, advogados etc. É preciso, enfim, que o sistema punitivo seja, pelo menos, um pouco mais honesto naquilo que se refere às questões de gênero.

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Sobre o autor
Marcus Vinícius Amorim de Oliveira

promotor de Justiça no Ceará, professor de Direito Processual Penal na Unifor e de Criminologia na Faculdade Christus, mestre em Direito pela UFC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim. O conceito de mulher honesta e a honestidade do sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1368, 31 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9672. Acesso em: 22 nov. 2024.

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