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A inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS

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7. A interpretação tradicional dos tribunais e a segurança jurídica

A prática de se admitir a inclusão de tributo na base de cálculo de outro tributo é admitida tradicionalmente na jurisprudência brasileira. Com base nesse entendimento jurisprudencial, os entes da Federação têm planejado seus sistemas tributários. A eleição dessa forma de tributação influencia, inclusive, a instituição da alíquota de cada exação. Por exemplo, se não se admitisse que o ICMS pudesse compor a base de cálculo dele próprio, certamente os Estados elevariam sua alíquota formal. O mesmo se pode dizer com relação à COFINS e à União.

Devemos observar que a jurisprudência, quando enraizada numa dada comunidade, é fonte de interpretação do direito. Explicamos. O chamado costume jurisprudencial acaba por integrar a cultura jurídica duma dada sociedade estatal. Esta cultura jurídica é formada também pela opinião dominante na doutrina e pelo juízo popular de legitimidade das condutas. Todos esses elementos do que chamamos de cultura jurídica geram uma opinio necessitatis tanto no cumprimento espontâneo de deveres pelos particulares, quanto na prática de atos administrativos ou na produção de atos político-legislativos.

O que estamos chamando de cultura jurídica duma sociedade estatal integra aquilo de Konrad Hesse [15] denomina de contexto do âmbito normativo, que, conjugado com o programa normativo (o texto), dá luz à norma jurídica. Vale dizer, o intérprete e o aplicador do texto normativo, no momento de construção do sentido normativo, devem tomar a cultura jurídica da sociedade estatal de onde deriva o documento normativo. Sem levar em conta essa cultura jurídica, a interpretação não terá valor científico e resumir-se-á a mera construção intelectual individual do estudioso.

Nos estados democráticos, a cultura jurídica é fundamental para a interpretação jurídica. Deveras, se um juiz aplica um texto legal em contrariedade à opinião pacífica da doutrina, da jurisprudência e da consciência profana, certamente não estará julgando democraticamente. A interpretação democrática do direito depende da absorção do sentimento popular e do entendimento dos agentes formadores de opinião jurídica – doutrina e jurisprudência.

O respeito à cultura jurídica dum povo e, logo, à jurisprudência de seus tribunais produz previsibilidade na aplicação do direito. Esta, a previsibilidade, é corolária do princípio da segurança jurídica.

A chamada segurança jurídica é indispensável para o gozo seguro dos direitos subjetivos, livre de ameaças e contestações. Esse direito que tem o cidadão de gozar de seus direitos livre de ameaças e contestações é o próprio direito de segurança. A segurança é tão importante num Estado de Direito que o constituinte originário elevou-a, ao lado da vida, da liberdade, da igualdade e da propriedade, como bem jurídico fundamental (art. 5º, caput, CRFB). Como tal, dele decorrem diversos direitos fundamentais espraiados no corpo da Constituição.

Tomando a questão jurídica concreta que nos propomos a resolver, anotamos que o respeito à jurisprudência historicamente firmada no Brasil (e, logo, à cultura jurídica da nação), no sentido da possibilidade de ser incluir o ICMS na base de cálculo dos tributos que incidam sobre a circulação de riqueza, é imposição de ordem democrática; é, também, necessária para a tutela da segurança.

Não estamos aqui defendendo a interpretação estática da constitucional; vale dizer, não sustentamos que não possa evoluir a compreensão da Constituição, mormente pelo Supremo Tribunal Federal. Aceitamos a figura da mutação constitucional (Verfassungswandel [16]), por meio da qual a ordem constitucional é modificada sem alteração formal do texto constitucional. Nesse caso, a alteração ocorre no âmbito normativo e não no programa normativo, o que conduz à reforma informal de normas constitucionais. Em verdade, esse fenômeno não deve ser reservado à ordenação constitucional, sendo bastante plausível que ocorra, analogamente, mutação legal, principalmente em códigos seculares que precisam ser atualizados com base na interpretação.

Ocorre que a rejeição de jurisprudência remansosa e tradicional dos tribunais só pode ser admitida num Estado Democrático de Direito se razão relevantíssima surgir e impuser tal reforma de posição. Não é razoável desconsiderar décadas de entendimento consolidado por pressão de razões momentâneas ou pelo consórcio temporário de opiniões destoantes. Se a alteração da composição das Cortes Constitucionais pudesse conduzir à reforma integral dos entendimentos jurisprudenciais, restaria abnegada a segurança jurídica e menosprezado o Estado de Direito. Na prática, estaria o Tribunal introduzindo nova regra no sistema jurídico, com efeito pretérito.

Essa preocupação que estamos externando foi bem compreendida pelo Min. Ilmar Galvão, quando, no precedente paradigmático do RE 212.209/RS, em que julgou o STF ser constitucional a inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo, teceu as seguintes considerações:

"Sr. Presidente, não é a primeira vez que essa questão é discutida no Supremo Tribunal Federal. Já tive ocasião de relatar casos análogos, não só aqui mas também no STJ. Esse, aliás, não poderia ser um assunto novo, se o DL nº 406 está em vigor há trinta anos. Não seria agora que o fenômeno da superposição do próprio ICMS haveria de ser identificado.

Vale dizer que, se a tese ora exposta neste recurso viesse a prevalecer, teríamos, a partir de agora, na prática, um novo imposto. Trinta anos de erro no cálculo do tributo".

Por essas razões, acreditamos que, para se alterar a jurisprudência consagrada do STF (e também do STJ) e se negar a possibilidade de qualquer tributo integrar a base de cálculo de outro, dever-se-á ter em mãos razão relevantíssima. Ainda nesse caso, o respeito à segurança jurídica aconselha que a decisão só seja dotada de efeitos prospectivos. Isto é, que o Supremo Tribunal Federal molde os efeitos da eventual declaração de inconstitucionalidade, concedendo-lhe eficácia ex nunc.

Como regra geral, entendemos que a mutação constitucional só se legitima quando a alteração da realidade social impõe um novo tratamento jurídico e justifica a desconsideração da jurisprudência pacificada. Ainda nesse caso, por respeito às relações jurídicas já exauridas e a fim de preservar a confiança da população no Poder Judiciário, faz-se necessário que a decisão que adota nova interpretação constitucional não seja aplicada para casos pretéritos. Para os jurisdicionados, a mutação constitucional – e até mesmo a mutação legal – equivale a uma inovação na ordem jurídica, e sua aplicação retroativa acaba sendo uma surpresa indesejável. Em linguagem jurídica, diríamos que a imposição de mutação constitucional com efeitos antes de sua declaração pela Corte Constitucional fere o princípio da não-surpresa, que decorre do princípio da segurança jurídica, aqui tratado.

Pensamos que seria mais adequado que a discussão no seio do STF da quaestio iuris aqui examinada fosse realizada em processo do controle concentrado de constitucionalidade. Assim, caso a Corte entendesse pela exclusão do ICMS da base de cálculo da COFINS, poderia aplicar o art. 27 da Lei 9.868/99 e limitar no tempo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, preservando, assim, a segurança jurídica e respeitando os atos políticos e jurídicos praticados antes da reorientação jurisprudencial.


8. Conclusão

Ao longo de nossa exposição de argumentos, almejamos demonstrar que o ICMS abarcado pelo preço da mercadoria ou serviço é contido pelo faturamento. Trabalhamos em cima do conceito de faturamento porque ele é muito restrito que o de "total das receitas auferidas pela pessoa jurídica". Este é conjunto que contém em si inteiramente aquele. Tudo o que é faturamento também é receita total (a recíproca, obviamente, não é verdadeira). Assim, comprovando que o ICMS participa do faturamento, também estará comprovado que o mesmo imposto (ou melhor, seu valor correspondente) compõe a receita bruta total.

O ICMS, por ser tributo indireto, compõe o preço da mercadoria ou do serviço e, por isso, integra o faturamento. Na linha de nossa exposição, trabalhamos com a existência duma relação direta entre faturamento (receita operacional) e despesa operacional, dum lado, e entre preço e custo, doutro. O custo é repassado para o preço, enquanto que a despesa operacional é compensada pelo faturamento. O preço pago pelas mercadorias e serviços, por sua vez, integra o conjunto do faturamento. Assim, o custo tributário, como qualquer outro, ao ser repassado para o preço, passa a participar do conjunto do faturamento, não obstante também esteja representado na despesa operacional, como custo que é. Eis a justificativa da chamada ‘inclusão’ do ICMS na base de cálculo da COFINS.

Esse é o raciocínio que permeia a interpretação da legislação tributária, constitucional e infraconstitucional, há décadas na vida jurídica brasileira. Alterar essa percepção de nossa realidade normativa pode gerar grande instabilidade jurídica, o que não convém a um Estado Democrático de Direito.

Num país como o Brasil, em que a carga tributária é bastante expressiva, teses favoráveis aos contribuintes acabam sendo tratadas com bons olhos. Todavia, não se costuma conceber que a queda de arrecadação causada pela derrota judicial da Fazenda Nacional acaba gerando pressão para novas majorações da própria carga tributária. Essa pressão decorre não somente do cumprimento ex nunc da reorientação jurisprudencial, mas, principalmente, por vultosas compensações tributárias e expedições de precatórios em favor de grandes empresas, que são as principais contribuintes da COFINS, em razão da aplicação ex tunc da novel jurisprudência. O pequeno contribuinte é quem acaba sofrendo o ônus, pois, em grande parte das vezes, não consegue ser beneficiado pelo novo entendimento jurisprudencial e ainda sofre o peso de novas majorações de alíquotas e cortes de benefícios fiscais.

Por todas essas razões, pensamos que o tema merece mais debate nos meios jurídicos, devendo-se refletir com mais temperança tanto sobre os argumentos técnicos que envolvem o tema quanto sobre as conseqüências práticas duma reforma da interpretação constitucional que representaria verdadeira mutação constitucional. A jurisprudência não é construída ao acaso e merece obediência até que razão superior e premente imponha o contrário.


9. Bibliografia (somente obras citadas)

Amaro, Luciano, Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004.

Barbosa Nogueira, Ruy, Impôsto de Indústrias e Profissões, in RT, v. 346.

Brito Machado, Hugo de, O ICMS e a Base de Cálculo da COFINS, disponível em http://www.neofito.com.br/artigos/art01/tribut43.htm; data de acesso: 23.2.2007.

Ferrari Sabino, José Alfredo, Da Não-Inclusão dos Reembolsos, pelos Distribuidores, do ICMS Retido pela Indústria na Base de Cálculo do PIS e da Cofins, in Revista Dialética de Direto Tributário, nº 42, 1999.

Hesse, Konrad, Escritos de Derecho Constitucional, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983.

Higuchi, Hiromi, Higuchi, Fábio, e Higuchi, Celso, Imposto de Renda das Empresas – Interpretação e Prática, 25ª ed., São Paulo, Atlas, 2000.

IBRACON – Instituto Brasileiro de Contadores –, Princípios Contábeis, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 1994.

Junqueira de Carvalho, Fábio, e Murgel, Maria Inês, IRPJ – Teoria e Prática Jurídica, 2ª ed., São Paulo, Dialética, 2000.

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Keppler, Roberto Carlos, e Moreira Dias, Roberto, Da Inconstitucionalidade da Inclusão do ICMS na Base de Cálculo da COFINS, in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 75, 2001.

Soares de Melo, José Eduardo, Contribuições Sociais no Sistema Tributário, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000.


Notas

01 Em 22 de março de 2006, a Corte decidiu, diante do tempo decorrido e da nova composição, renovar o julgamento.

02O ICMS e a Base de Cálculo da COFINS, disponível em http://www.neofito.com.br/artigos/art01/tribut43.htm; data de acesso: 23.2.2007.

03 O mesmo erro parece ter sido cometido, concessa venia, pelo respeitável jurista José Eduardo Soares de Melo na terceira edição de seu Contribuições Sociais no Sistema Tributário (São Paulo, Malheiros, 2000, p. 147), em que averbou que o ICMS, como tributo indireto, somente transitaria pelo caixa da empresa, sendo os vendedores "meros agentes repassadores dos mencionados tributos".

04 Assim, por exemplo, se o empresário, conquanto tenha embutido o ICMS no preço do produto, deixa de fornecer nota fiscal, logrando enriquecimento desautorizado pela lei, comete ele o crime de sonegação fiscal, previsto no art. 1º, V, da Lei 8.137/90, mas não apropriação indébita tributária, pois não se apropriou de bem alheio; simplesmente, deixou-se de pagar tributo devido, por meio ilícito.

05Imposto de Renda das Empresas – Interpretação e Prática, 25ª ed., São Paulo, Atlas, 2000, p. 619.

06 José Alfredo Ferrari Sabino (Da Não-Inclusão dos Reembolsos, pelos Distribuidores, do ICMS Retido pela Indústria na Base de Cálculo do PIS e da Cofins, in Revista Dialética de Direto Tributário, nº 42, 1999, p. 56) ressalta que as parcelas que compõem o preço das mercadorias e serviços também compõem a receita operacional das empresas e que são excluídas destas os valores que correspondem a meros repasses e reembolsos (custos de terceiros). São suas palavras: "Portanto, pode-se sinteticamente afirmar que (i) formam a receita das vendas, e portanto incluem-se na base de cálculo do PIS e da Cofins, todas as parcelas que compõem o preço do produto vendido, por representarem a contrapartida do fornecimento de bens e serviços; (ii) não compõem a receita das empresas, e assim estão fora da base de cálculo do PIS e da Cofins, os ingressos que serão repassados a terceiros ou que constituam meros reembolsos por despesas ou custos a cargo de terceiros (vale dizer, custos de terceiros)" (grifo do original).

Notamos que o autor acima citado parte de premissas semelhantes às nossas, ainda que o objetivo de seu estudo seja demonstrar que o valor pago pelo substituído tributário ao substituto tributário, relacionado ao custo do ICMS, esteja, ontologicamente, fora do âmbito da receita operacional das empresas.

07Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 90.

08 Sempre que nos referirmos a produto, entenda-se também aí mencionado o serviço.

09 A relação entre custo e receita também é feita por José Alfredo Ferrari Sabino (ibidem).

10Princípios Contábeis, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 1994, p. 113.

11Idem, ibidem.

12 Ob. cit., p. 112.

13 Roberto Carlos Keppler e Roberto Moreira Dias defendem que o ICMS é despesa e não receita da empresa. Seria, isto sim, "receita de terceiro"; no caso, do Estado (Da Inconstitucionalidade da Inclusão do ICMS na Base de Cálculo da COFINS, in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 75, 2001, pp. 176-7). Ruy Barbosa Nogueira, tratando do antigo imposto de indústrias e profissões, defende que: "As parcelas correspondentes à recuperação do quantum do impôsto de consumo que a consulente é, por lei federal, obrigada a cobrar por conta do governo e recolher aos cofres públicos, não podem integrar essa receita bruta, a ser tributada pelo impôsto de indústrias e profissões, pois o quantum do impôsto de consumo não pode fazer parte da base de incidência do impôsto municipal, consoante a própria descrição do fato gerador" (Impôsto de Indústrias e Profissões, in RT, v. 346, p. 62). Contudo, o raciocínio do saudoso tributarista das Arcadas não pode ser transposto in totum para o ICMS, visto que este, diferentemente do que provavelmente acontecia com o imposto de consumo da época, não é recolhido pelo vendedor do consumidor "por conta do governo". Como já explicou Brito Machado, o ICMS é devido pelo vendedor empresário e não pelo comprador consumidor.

14 Fábio Junqueira de Carvalho e Maria Inês Murgel sustentam que não há razão para excluir o IPI da base de cálculo da COFINS e não se excluir o ICMS (IRPJ – Teoria e Prática Jurídica, 2ª ed., São Paulo, Dialética, 2000, pp. 651-2).

15Escritos de Derecho Constitucional, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 43

16 A respeito da mutação constitucional, consulte-se: Konrad Hesse, ob. cit., p. 49.

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Sobre o autor
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

Procurador da República. Mestre e Doutor (cum laude) em Direito Constitucional pela Universidad de Sevilla. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. A inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1370, 2 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9674. Acesso em: 20 abr. 2024.

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