INTRODUÇÃO
A nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/21) determina que os gestores públicos providenciem a qualificação de profissionais dos quadros administrativos para a atividade de fiscalização dos contratos públicos. Essa ordem se harmoniza, como será visto adiante, com vários princípios do Direito Constitucional e Administrativo.
A fiscalização em si já era prevista na regra anterior (Lei nº 8.666/93), mas não havia, então, o dever expresso de o gestor dar aos fiscais os recursos materiais e, de igual relevância, os de conhecimento especializado. Os incidentes decorrentes do improviso eram enormes, com prejuízo na qualidade do serviço, repercussão nas contas públicas, espaço para fraudes e responsabilidades de funcionários, seja por comportamento deliberado ou, o que muito se via, por total desconhecimento do método de trabalho.
Agora, com o ordenamento na lei acerca da obrigação de qualificar os seus agentes, a omissão do administrador neste particular atrai para si a responsabilidade pelos erros cometidos pelos fiscais que forem nomeados sem o devido preparo. Urge, portanto, que sejam adotadas medidas seguras, a começar por Escolas de Contas e Escolas de Governo, ou equivalentes, no sentido de proporcionarem o espaço de treinamento, inclusive em ambiente de cooperação com Municípios, Câmaras Municipais e entidades públicas em geral.
A QUALIDADE DO TREINAMENTO
Devem-se levar em conta os três vértices da relação: i) gestão; ii) fiscalização; iii) recebimento do objeto.Esse treinamento, no entanto, não se resume à leitura do que está no enunciado da lei. Há cursos e cursos, ou seja, a verdadeira qualificação passa pelo conhecimento de quem leciona, pela visão holística da Administração Pública e pela metodologia de ensino.
SENSIBILIDADE DO TEMA
A área de gestão e fiscalização de contratos é uma das mais sensíveis da Administração Pública, seja pela relevância do resultado, com garantia da efetiva execução dos respectivos objetos, seja pelo nível de responsabilidade que impõe aos servidores e às autoridades.
A Lei nº 14.133/21 estabeleceu:
Art. 117 . A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por 1 (um) ou mais fiscais do contrato, representantes da Administração especialmente designados conforme requisitos estabelecidos no art. 7º desta Lei , ou pelos respectivos substitutos, permitida a contratação de terceiros para assisti-los e subsidiá-los com informações pertinentes a essa atribuição.
Art. 7 º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos:
(...)
II - tenham atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuam formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público;
Verifica-se, portanto, que imediatamente os órgãos, entes e entidades da Administração Pública devem se adequar à ordem legal, promovendo a qualificação profissional, o que traz no seu bojo a necessidade de normatização dos procedimentos.
SOLUÇÕES INTELIGENTES
São vários os princípios que indicam a necessidade de solução para o controvertido, complexo e arriscado sistema de controle na execução dos contratos públicos: a) a eficiência; b) a legalidade; c) a economicidade; d) a razoabilidade; e) a segurança jurídica. Isso não se faz ao arremedo, pela criatividade de alguns ou pelos treinamentos de fachada, que cumprem carga horária, constam nos assentamentos funcionais mas, na prática, são imprestáveis.
Vê-se, frequentemente, a contratação de cursos para os quais a entidade administrativa escolhe o menor preço e não a proposta mais vantajosa, sendo esta a representada pelo efetivo aproveitamento dos funcionários que passarão a trabalhar com a matéria.
Diz-se em Portugal que quem se veste de ruim pano, veste-se duas vezes ao ano. Escolher cursos e consultorias pelo critério do preço é prestigiar a desqualificação. O ensino qualificado da matéria exige do instrutor um capital intelectual que é o principal pressuposto para transmitir o saber. Quando a Administração utiliza a referência do custo de hora-aula está a desprezar todo um conjunto, muitas vezes intangível, que está por trás daquele professor ou daquela empresa que se habilita para organizar internamente os ofícios de gestão e fiscalização de contratos públicos.
Há questões que são respondidas pela experiência e exigem normatização interna a fim de que os procedimentos sejam padronizados, facilitando, inclusive, a atividade de controle. Isso não é tarefa para amadores; os contratos públicos representam elevadas cifras e, portanto, a sistematização exige um investimento proporcional ao resultado que se espera.
LACUNAS NA LEI QUE EXIGEM RESPOSTAS DE ESPECIALISTAS
Vejam-se, de forma exemplificada, os pontos sensíveis.
Acompanhar e fiscalizar
Diz a Lei:
Art. 117. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada (...).
Tecnicamente, o que significam acompanhar e fiscalizar? Qual é a diferença? Como é feito o acompanhamento? Quais os procedimentos são adotados no curso da fiscalização? Há um padrão para todos os contratos, ou a Administração deve pontuar as peculiaridades dos contratos de obras, serviços e fornecimentos?
Designação
Art. 117. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por 1 (um) ou mais fiscais do contrato, representantes da Administração especialmente designados (...).
Qual é o sentido da expressão especialmente designados? Qual é a implicação legal dessa especialidade? E como é feita a designação?
Terceiros contratados para subsidiar com informações
(...) permitida a contratação de terceiros para assisti-los e subsidiá-los com informações pertinentes a essa atribuição.
Quando e como é feita a contratação de terceiros? Qual normativo atualmente estabelece o papel desses agentes contratados para prestarem informações? Como esses profissionais atuam e como se comunicam com os respectivos fiscais? Qual é o nível de vinculação do fiscal a essas informações (absoluto ou relativo), a se considerar a ressalva da Lei?
Art. 117. (...)
§ 4º Na hipótese da contratação de terceiros prevista no caput deste artigo, deverão ser observadas as seguintes regras:
(...)
II - a contratação de terceiros não eximirá de responsabilidade o fiscal do contrato, nos limites das informações recebidas do terceiro contratado.
Registro próprio
Art. 117. (...)
§ 1º O fiscal do contrato anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas à execução do contrato, determinando o que for necessário para a regularização das faltas ou dos defeitos observados.
O que é um registro próprio? É físico? É digital? O quê necessariamente deve ser registrado e de que forma? Com quem esse documento é compartilhado? Qual é o destino do registro ao fim da fiscalização? Por fim, qual é o padrão a ser utilizado para determinar a regularização das faltas?
Superiores
Art. 117. (...)
§ 2º O fiscal do contrato informará a seus superiores , em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes, a situação que demandar decisão ou providência que ultrapasse sua competência .
Quem são os superiores a que se refere à Lei? Qual é o instrumento ideal e qual é o formato para tais comunicações? Onde se encontra clarificado, sem ambiguidade, sem generalidade, o conjunto de competências dos fiscais?
Assessoramento
Art. 117. (...)
§ 3º O fiscal do contrato será auxiliado pelos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração, que deverão dirimir dúvidas e subsidiá-lo com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual.
Como poderá ser realizado o assessoramento do controle interno, sem ferir o princípio da segregação das funções?
Considerando-se que quem controla não pode, ainda que indiretamente, praticar ato controlado, qual é a maneira de compatibilizar esse assessoramento com a função principal do controle interno enquanto braço estendido do respectivo Tribunal de Contas.
Preposto
Art. 118. O contratado deverá manter preposto aceito pela Administração no local da obra ou do serviço para representá-lo na execução do contrato.
Em toda obra e em todo serviço deve haver um preposto? Como ele é indicado pelo contratado? Como são as relações entre o fiscal e o contratado no cumprimento das respectivas atribuições? Em quais hipóteses (de impessoalidade) a Administração pode rejeitar o preposto ou solicitar substituição, sem interferir na gestão privada?
Também é de especial cautela a definição do relacionamento dos funcionários em geral com os empregados que prestam serviço terceirizado. Ademais, como os setores administrativos (gerentes, diretores, etc.) interferem quando há insatisfação com os serviços prestados?
Contratos peculiares
Não se pode deixar sem atenção diferenciada determinados contratos que, muitas vezes, seguem por longo tempo sem um efetivo acompanhamento do fiscal. As pessoas acostumam, por exemplo, com serviços de lanchonete e de restaurante prestados dentro das repartições públicas que, todavia, não têm qualquer fiscalização que atenda aos requisitos técnicos relacionados às exigências sanitárias e à segurança alimentar.
Qual é a origem dos alimentos? Como são transportadas as carnes? Como são conservadas? Qual é a água utilizada na fabricação do gelo? Onde são guardados os produtos de limpeza? Há concentração de gordura no piso, a colocar em risco o caminhar das pessoas? O operário que recebe dinheiro e dá o troco é o mesmo que manuseia alimentos? Eis uma área que exige mais do que conhecer a lei e obriga a se ter uma visão completa desse tipo de relação.
NORMATIZAÇÃO
Como se percebe, há um grande número de situações em aberto, cujo preenchimento não pode ser feito pela criatividade. É preciso compreender as razões do sistema, o espírito do legislador, a finalidade perseguida pela Lei e os precedentes do controle em relação àquilo que anteriormente era disposto (Lei nº 8.666/93).
Aponte-se que mesmo durante mais de um quarto de século de vigência da Lei editada em 1993 a matéria nunca foi absolutamente esclarecida. Há casos de Cortes de Contas que chegaram a confundir os papéis de gestor e de fiscal; por conseguinte, abriu-se um canal para a sucessão de equívocos no mesmo sentido em todo o país. Práticas e normativos de Importantes estruturas da Administração Pública federal não resistem a uma análise que leve em conta o espírito da lei (o sentido de cada palavra e de cada sentença no texto), assim como estão em desarmonia com os mais expressivos princípios administrativos e constitucionais.
Treinar sem regulamentar é perda de tempo. Os profissionais precisam ter em mãos referências escritas, idôneas e juridicamente seguras que lhes deem a garantia para a adoção das fórmulas ensinadas. De igual observação, normatizar não se esgota em produzir um ato ao sabor da criatividade; há soluções que, ao leigo, podem parecer óbvias, mas ao direito não são permitidas ou não estão em sintonia com os andares superiores do ordenamento legal. A ordem correta é, a partir de uma NORMA (decreto, instrução normativa, resolução), completar-se o trabalho com TREINAMENTO. Aqueles que irão operar com as regras devem ter a oportunidade do conhecimento de cada dispositivo e da forma adequada de lhe dar efetividade.
PREENCHIMENTO DE LACUNAS
O trabalho eficiente nessa seara consiste em examinar as normas eventualmente utilizadas pelos entes ou entidades públicas em ambiente de regulamentação interna e, por esse meio, avaliar as práticas, as vulnerabilidades, os equívocos e os riscos potenciais envolvidos na falta de harmonia com os propósitos da Lei nº 14.133/21.
Está visto que a nova Lei de Licitações e Contratos, no que diz respeito em particular ao modelo de fiscalização, manteve as principais omissões da legislação anterior; e naquilo que acrescentou o fez de forma genérica, formando um labirinto no qual as autoridades e os funcionários facilmente podem se perder.
Põe-se aqui a relevância de um modelo seguro que preencha as lacunas. As respostas que não estão no art. 117 da Lei precisam ser apresentadas de maneira técnica em regulamentação, para que:
fiscais de contratos trabalhem com segurança, dentro de um padrão;
contratados conheçam com objetividade como é feito o acompanhamento e a fiscalização;
estejam devidamente delineadas as funções: a) gestão de contratos; fiscalização do contrato; c) recebimento do objeto;
o controle tenha critérios objetivos para avaliar o serviço e, se for o caso, a responsabilidade de quem fiscalizou e/ou ordenou a despesa.
PONTOS FUNDAMENTAIS NA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA
Recomenda-se que o serviço seja dividido em partes que obedecem à melhor metodologia para quem empresta o conhecimento na formulação de normas. Inicia com a avaliação das práticas do órgão ou entidade, o que se faz mediante a análise de documentos e entrevistas com profissionais que operam no setor; na etapa seguinte apresenta-se minuta de regulamentação, adequada às características da instituição ou do perfil de instituições que podem utilizar o mesmo padrão.
Necessariamente é preciso definir-se objetivamente o tripé da execução contratual, o que não é feito com clareza na Lei:
O que é a gestão?
O que é a fiscalização?
O que é o ato de recebimento do objeto?
Pode-se continuar o questionamento:
Qual é a atribuição de cada um desses segmentos?
Como esses setores se relacionam entre si?
Por que não se pode misturar gestão com fiscalização?
Qual é o risco do fiscal do contrato quando também recebe o objeto? Como contornar a falha do legislador quando, de certa forma, mistura essas etapas?
Então, indica-se como positiva a busca dessas respostas e a posterior introdução no regramento, dentro da técnica legislativa e com conteúdo que dê efetividade, que não seja a mera repetição do que está Lei, mas o complemento dos espaços vazios sem sair daquilo que inspirou o legislador ao formular o sistema, ainda que o tenha feito precariamente.
A norma deverá ter o seguinte conteúdo:
abertura, com exposição de motivos / considerandos;
ato de aprovação
texto regulatório, que: a) define as atribuições da gestão, da fiscalização e do recebimento; b) supre as questões em aberto do art. 117 da Lei nº 14.133/21, dentre as quais qual é o formato ideal do serviço de fiscalização, como é feita a designação, o que é o registro próprio, como são as comunicações do fiscal com os seus superiores e com o preposto e forma correta de resolução de incidentes;
metodologia de fiscalização de contratos com características especiais, como os de fornecimento de alimentação e de conservação e limpeza;
o treinamento introdutório, que compete ao fiscal executar em relação aos empregados de empresas que executam serviços ou obras;
fluxograma de todas as fases do acompanhamento da execução do contrato;
modelos dos principais documentos a serem produzidos pelos fiscais;
notas de rodapé que auxiliam na aplicação de dispositivos ou explicam as razões de fato e de direito que justificam o procedimento.
É importante contornar o vício da cópia. Um órgão público copia de outro, que já copiou com erro. A cópia de textos, que podem ser encontrados no atacado da Internet, é a fórmula certa de dar errado.
TREINAMENTO APÓS A REGULAMENTAÇÃO
Uma vez existindo um texto referencial que estabelece conceitos, define atribuições, traça a metodologia e o fluxograma, é realizado treinamento, com a participação de representantes de cada órgão ou entidade coparticipante do grupo, que se tornam aptos a serem multiplicadores do conhecimento nas respectivas instituições.
Principais pontos do conteúdo propostos
Introdução
A complexidade da execução dos contratos públicos e os meios de reduzir riscos e responsabilidades pessoais.
Diferença entre os serviços de gestão e fiscalização.
Fiscalização e recebimento do objeto do contrato. Onde se comunicam e onde se distanciam.
As inovações e as lacunas da nova legislação Lei nº 14.133/21.
O sentido de o legislador ter atribuído a fiscalização a funcionários, representantes da Administração.
A imposição de regulamentação interna.
Regulamentação de acordo com os objetivos do controle. Matéria de conhecimento especializado.
O fiscal
Quem pode ser fiscal e quem está impedido.
A obrigatoriedade de aceitar o encargo e as hipóteses possíveis de rejeitar a nomeação.
Como é feita a designação. Consequências pela omissão na nomeação do fiscal. Quem nomeia.
A razão pela qual o fiscal é especialmente designado.
A necessidade de suplentes e as hipóteses de substituição.
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Os níveis de responsabilidade do fiscal: ética, disciplinar, civil e criminal. Estudo de cada situação.
A responsabilidade peculiar perante os órgãos de controle: controle interno e Tribunal de Contas.
Parte operacional
O que é acompanhar e o que é fiscalizar o contrato.
Poderes e deveres do fiscal.
O assessoramento técnico. Quando cabe e como é formalizado.
A vinculação relativa do fiscal às informações prestadas por terceiros contratados para subsidiá-lo.
O registro próprio do qual trata a lei. O que é. O formato e conteúdo.
Termos de abertura e de encerramento do registro.
O destino do registro de fiscalização ao fim do serviço.
O superior ao qual o fiscal deve se reportar em casos especiais.
·O relacionamento com o preposto.
Treinamento introdutório de empregados que passam a trabalhar na repartição por conta de contratos.
Formas de intervir para correção de irregularidades.
Procedimento do fiscal diante de indicativos de crimes.
Análise de contratos especiais
Serviços de manutenção. Indicadores de qualidade.
Serviços de conservação e limpeza.
Serviço de segurança.
Fornecimento de alimentação.
Locação de espaço para restaurante e lanchonete dentro das repartições públicas.
Parte especial
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Discussão de pontos sensíveis da regulamentação interna.
CONCLUSÃO
Esse trabalho, como foi apontado, não pode ser produzido na improvisação. A norma interna do modelo gambiarra é a forma certa de dar errado, assim como o treinamento sem a presença de especialista é uma temeridade.
A contratação desses serviços de consultoria e treinamento deve ser realizada com as mesmas cautelas da escolha de um objeto de qualidade, quando a Administração realiza uma compra. Equipamentos com tecnologia defasada podem custar menos; aparelhos sem peças de reposição no mercado também são mais baratos. Essa é uma lógica que as comissões de licitação bem conhecem. Todavia, quando se trata de conhecimento, as áreas responsáveis pela escolha por vezes desprezam a qualidade e tendem a se fixar na seleção do imprestável.
Produzir uma norma interna é um trabalho que exige habilidade de raciocínio para que ela tanto seja prática quanto esteja em harmonia com os andares de cima; e lecionar é transmitir o saber, o que pressupõe duas coisas: a) que o profissional verdadeiramente saiba o que transmite; b) que a linha de transmissão seja boa, que haja conexão entre as partes envolvidas.
Há dinheiro público envolvido na causa. A contratação do serviço de consultoria e treinamento é dispêndio necessário, mas deve ser aplicado no conceito da proposta mais vantajosa, que se caracteriza pela qualidade; e na principal ponta está a responsabilidade pelo bom uso dos recursos nos contratos em si, uma vez que a deficiência na gestão, na fiscalização e no recebimento do objeto são as principais causas do desperdício de valores do erário.