3. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
A responsabilidade civil do Estado funda-se na obrigação de reparar o dano que venha a causar a bens juridicamente protegidos, pertencentes a outrem, no desempenho de seus atos ou omissões, tanto lícitos quanto ilícitos.
Como muito bem manifestado na lição da Professora Maria Helena Diniz (2005, 429), "a responsabilidade civil estatal não está somente disciplinada pelo direito civil, mas principalmente pelo direito público, ou seja, direito constitucional, direito administrativo e direito internacional público".
Do exposto, não poderia o Estado estar intangível ao ordenamento jurídico, haja vista existir ramo específico do direito que encerre sua inclusão como sujeito de direitos e deveres.
Como elementos diligenciadores da responsabilidade estatal por atos ilícitos, encontram-se os princípios da legalidade e da isonomia, aptos a legitimar o dever de ressarcir imposto ao Estado. Nas situações em que a responsabilidade exsurgir de atos lícitos, o sustentáculo será o princípio da igualdade, que impõem a todos os cidadãos o dever de suportar os encargos públicos, vez que os atos lícitos têm por escopo o benefício de toda a coletividade, garantindo, desta forma, a equânime divisão dos encargos públicos – evitando que alguns sofram danos anormais e especiais.
Neste regime de responsabilização estatal se vêem incluídos, além dos atos de autarquias e fundações estatais (pessoas jurídicas de direito público auxiliares do Estado) e das atividades típicas da Administração em si (serviços públicos), as pessoas que agem em regime de delegação (hipóteses de concessão, permissão ou autorização).
Destarte, destoa-se do ponto de vista defendido pelo mestre administrativista Hely Lopes Meirelles (2005, p. 560), que adota a terminologia "responsabilidade civil da administração pública", justificando, para tanto, que a responsabilidade emana dos atos da Administração e não do Estado como entidade política. Melhor sorte não deve ter tal definição, já que o dano resulta do exercício da função estatal nas esferas administrativa, legislativa e judiciária, possuindo sempre como agente causador o Estado na qualidade de pessoa jurídica2.
3.1. ESCORÇO HISTÓRICO
Inicia-se com a teoria da irresponsabilidade, adotada no período dos Estados absolutos. Possuía como alicerce à soberania do Estado, que se exprimia nas máximas "o rei não erra" (the king do not wrong), "o que agradou ao príncipe tem força de lei" (quod principi placuit habet legis vigorem) e "o Estado sou eu" (l’Éctat d’est moi). Nesse período, descabida era a idéia de impor ao Estado o dever de indenizar pelos atos (lícitos ou ilícitos) que cometia, restando a responsabilidade somente ao funcionário estatal que viesse a lesar direitos de terceiros.
Esta teoria fundava-se em três postulados (CAHALI, 1995, p.18): (i) na soberania do Estado, que proíbe ou nega sua igualdade ao súdito, em qualquer nível de relação; (ii) segue-se que, representando o Estado soberano de direito organizado, não pode aparecer como violador desse mesmo direito; e (iii) como corolário, os atos contrários à lei praticados pelos agentes públicos jamais podem ser considerados atos do próprio Estado, sendo atribuídos pessoalmente àqueles, como praticados nomine proprio e não em representação do ente público. Desta feita, neste período histórico, era o Estado irresponsável por seus atos, cabendo o dever indenizatório, tão-só e episodicamente, aos agentes que comissiva ou omissivamente realizavam tais tarefas.
Em um segundo momento, intentando justificar a responsabilidade estatal, transpõe-se a questão ao terreno civil, empregando as premissas da responsabilidade por fato de terceiro. Despontou, nesse passo, a teoria civilista, que distinguia – com o fito de obrigar o Estado – os atos de império dos atos de gestão. Nos atos de império o Estado expressava sua soberania, utilizando-se de suas prerrogativas, impostas coercitivamente. Por esta razão, seriam impassíveis de gerar direito à reparação. Atos de gestão, a seu turno, eram aqueles pertinentes à gestão patrimonial (conservação e desenvolvimento do acervo público), onde o Estado equiparava-se ao particular, aplicando-se a ambos, in casu, o direito comum.
Essa distinção aos atos emanados pelo Estado surgiu como meio de amenizar a teoria da irresponsabilidade. Contudo, essa teoria encontrou dificuldades em como "enquadrar-se como atos de gestão todos aqueles praticados pelo Estado na administração de seu patrimônio público e na prestação de seus serviços" (DI PIETRO, 2004, p. 421). Mesmo após o abandono da teoria civilista, alguns autores ainda a utilizavam, desde que demonstrada a culpa, no desígnio de equiparar a responsabilidade do Estado a do patrão, pelos atos de seus empregados ou prepostos3.
Em 1873, a menina Agnes Blanco é colhida por um vagonete da Companhia Nacional de Manufatura do Fumo, ao atravessar uma rua de cidade de Bordeaux. Seu pai promove ação civil de indenização e obtém a condenação do Estado Francês. A partir deste momento, a responsabilidade civil estatal passa a encontrar fundamento no direito público, baseando-se no princípio da isonomia, vez que todos devem arcar eqüanimamente com os encargos públicos.
Com espeque nesse episódio, e arrazoando a doutrina atual de responsabilização estatal, a escola do direito público propôs a resolução da responsabilidade civil do Estado por meio de princípios objetivos, contidos na teoria da responsabilidade sem culpa ou na culpa especial do serviço público, nas hipóteses em que este for lesivo a terceiros. Nesse passo, teses surgiram acerca desta ramificação da responsabilidade objetiva do Estado, que, pela doutrina de Meirelles (2005, p. 562-3), classificam-se da seguinte forma: teoria da culpa administrativa, teoria do risco administrativo, teoria do risco integral e teoria do dano objetivo, que serão adiante analisadas individualmente.
3.2. TEORIAS PUBLICISTAS DA RESPONSABILIZAÇÃO ESTATAL
Por serem essas teorias resultantes de séculos de evolução, e também por ensejarem a responsabilização estatal abordada no presente trabalho, serão elas minudentemente analisadas.
3.2.1. Teoria da Culpa Administrativa
Essa teoria foi o marco divisor entre a teoria civilista e a publicista. Levava em conta o fator falta do serviço para imputar a responsabilidade ao Estado. Essa falta do serviço deveria estar vinculada à culpa da Administração4, tratada como culpa administrativa, que deveria dar origem à lesão injusta suportada pelo cidadão. No ensinamento de Duez, a falta de serviço concretiza-se na sua inexistência; no seu mau funcionamento; ou ainda no seu retardamento. Ocorrendo qualquer uma das citadas hipóteses, presumida será a culpa administrativa.
Contudo, para que exsurja a obrigação de indenizar, deve-se fazer presente, concomitantemente à culpa administrativa: (i) dano indenizável; (ii) prova de que o serviço público falhou (não funcionou, funcionou tardiamente, ou funcionou mal); e (iii) o nexo causal entre o dano e a falta do serviço.
3.2.2. Teoria do Risco Administrativo
Na teoria ora estudada, basta a presença de lesão, por ação ou omissão administrativa, para que nasça o dever do Estado de indenizar. Não se cogita, em hipótese alguma, culpa do Estado ou de seu agente. Para Meirelles (2005, 532), essa teoria tem o fito de "compensar essa desigualdade individual, criada pela própria Administração. Todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, através do Erário". Apesar de dispensar a prova da culpa do Estado, referida teoria permite que seja demonstrada a culpa da vítima, de forma concorrente ou integral, o que tem por condão diminuir ou eximir a responsabilidade estatal.
Assim, a caracterização da responsabilidade do Estado, segundo a teoria ora analisada, dá-se com a presença cumulativa do dano indenizável e do liame causal entre esse e a atividade estatal.
3.2.3. Teoria do Risco Integral
Por fim, a teoria do risco integral, nas palavras do já multicitado Meirelles (2005, p. 533), "é uma modalidade extremada da doutrina do risco administrativo", pois obriga a Administração a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, independentemente da presença de dolo ou culpa da vítima. Complementando o raciocínio do jurista retro citado, tal teoria "foi abandonada na prática, por conduzir ao abuso e à iniqüidade social".
Para que haja responsabilidade estatal, segundo a teoria do risco integral, necessário faz-se, tão-somente, a presença de dano indenizável. Esse é o motivo que afasta a responsabilização do Estado por intermédio da estudada teoria, haja vista que levaria as contas públicas a caos maior do que o hodiernamente experimentado, transformando o Estado em uma seguradora geral.
3.2.4. Teoria do Dano Objetivo
Esta teoria distingue-se por não se caracterizar pelo exercício de qualquer atividade perigosa, vez que deriva do princípio da equânime repartição dos encargos públicos.
Somente aquele que sofrer o dano objetivo é que poderá responsabilizar o Estado, com espeque na teoria em tela. Dano objetivo será aquele dotado das características da especialidade e da anormalidade, além de, por certo, ser também indenizável. Tão-somente no desiderato de rememorar, vez que tal espécie de dano já restou pormenorizado no capítulo pertinente, especial é o dano que atinge a pessoa ou grupo de pessoas certas e determinadas e não à coletividade como um todo, enquanto dano anormal é aquele que excede "os pequenos agravos da vida em sociedade" (SERRANO JUNIOR, 1995, p. 60).
Ante os argumentos lançados até o momento, o Estado obriga-se a indenizar dano que acarretou, quando funcionou como Poder Público, não aceitando a oneração de uns em detrimento de outros. Esta teoria, por ser publicista, é objetiva, haja vista não requerer como requisito ensejador da responsabilidade civil a culpa ou ilicitude no ato que originou a obrigação de ressarcir.
Destarte, para que exsurja a responsabilidade civil com fulcro nessa teoria, mister faz-se a presença de dano indenizável, de nexo causal entre este dano e um ato estatal comissivo e lícito praticado em prol da coletividade, e, por fim, de prejuízo especial e anormal suportado pelo lesado.
3.3. EXCLUDENTES E ATENUANTES
Tendo em vista que nosso ordenamento jurídico não adota a teoria do risco integral, na qual, como visto, o Estado tem o dever de arcar com todo e qualquer tipo de dano, independentemente de sua origem, excludentes e atenuantes foram previstas, tendo por escopo aniquilar ou mitigar a obrigação de indenizar. São as seguintes: culpa da vítima; ato de terceiro; força maior e caso fortuito.
Levanto em conta que todas essas excludente já foram objeto de análise no Capítulo I deste trabalho, serão elas, neste momento, razão de breves comentários.
No que concerne à culpa da vítima, em sendo esta integral, terá por condão excluir totalmente a responsabilidade estatal, haja vista que, nesta hipótese, não haverá nexo entre a causa (ação do Estado) e o dano. Em se observando caso de culpa concorrente do lesado, o Estado responderá, tão-somente, pela sua quota de responsabilidade no evento, tendo abrandada sua obrigação de indenizar.
Quanto a ato de terceiro, entende-se a conduta de pessoa como se agente público fosse. Por não se afigurar o causador do dano como agente público, não ensejará a incidência das normas responsabilizadoras do Estado, excluindo a obrigação estatal de ressarcimento.
Força maior é a causa física exclusiva do dano que advém da natureza. Pode vir cumulada com uma omissão do Poder Público, hipótese na qual não existirá nexo causal e sim nexo normativo. Destarte, somente em caso de omissão do Poder Público exsurgirá o dever de indenizar.
Por fim, o caso fortuito é causa desconhecida que gera dano e, se não vinculada ao serviço público danoso, exclui a responsabilidade. Contudo, se vinculada for a serviço público danoso, que se dá em virtude de conduta humana de agente público, responderá o Estado pelos danos perpetrados, com alicerce na teoria do risco administrativo.
Concluído este breve estudo a respeito da responsabilidade estatal, analisar-se-á, no capítulo que se segue, a possibilidade e a previsão, segundo o ordenamento jurídico pátrio, da responsabilização estatal, a qual sofreu várias evoluções com o limiar do tempo, alcançando hoje o status constitucional, em acordo ao prelecionado no art. 36, § 6º, da Carta Magna.
4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO LEGISLADOR
Como já anteriormente esposado, e neste momento repisado por sua grande importância, a responsabilidade do Estado assenta-se em disposições constitucionais, mormente no que concerne ao direito à propriedade, ao princípio da isonomia e ao Estado de Direito. Explica-se. Direito à propriedade, pois impõe a Carta Magna a justa reparação em hipóteses que alguém a esse direito impinja dano; princípio da isonomia haja vista não ser possibilitado ao Estado criar distinções que o possibilitem de não responder por seus atos; e, por fim, o Estado de Direito, vez que o Estado também se submete às regras que edita.
Isso se dá em razão de que todas as ações estatais, nesse rol incluindo-se os atos legislativos, são desempenhadas com a única e precípua finalidade de atender ao interesse da coletividade. Destarte, se desse ato estatal resultar prejuízo a qualquer integrante do seio social, dano esse qualificado como injusto e excessivo, deve toda a sociedade arcar com eles arcar, face à justiça distributiva (socialização dos riscos), o que se dará, na praxe, com a responsabilização objetiva do Estado. Tal responsabilidade reproduz a solidarização dos danos, de acordo com o objetivo fundamental da República disposto no art. 3º, inc. I, CF.
O princípio da solidariedade se encontra muito bem delineado nas palavras de Di Pietro (2004, p. 557), que assim lecionou:
[...] foi feita com precisão a diferença entre limitação administrativa e o sacrifício que decorre da lei para pessoas determinadas; no primeiro caso, o princípio da solidariedade determina que todos os componentes do grupo social tem o dever de suportar um sacrifício gratuito em benefício da coletividade; no segundo caso, quando o sacrifício passa a ser particular, surge o direito a indenização.
Ademais, insta salientar que – como nos demais casos de responsabilização objetiva do Estado – é imprescindível que se estabeleça o nexo causal entre o dano experimentado pelo cidadão e os efeitos emanados pela lei, o que, de sorte, não é tão simples como nas hipóteses de responsabilização por atos administrativos.
De qualquer forma, pela organização adotada no Estado moderno, a responsabilidade resultará de qualquer ato proveniente de agentes estatais5, no exercício de suas funções ou em razão delas, que venha a lesionar direitos e interesses. Assim, o ato poderá decorrer de qualquer nível de atuação estatal, seja proveniente do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário (VENOSA, 2005, p. 104).
4.1. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À RESPONSABILIZAÇÃO ESTATAL
A aceitação da responsabilidade objetiva do Estado por atos legislativos, pela doutrina, foi mais tardia e continua a não ser unânime. Contudo, aqueles que não entendem ser possível a resposanbilização estatal pela edição de lei, fazem-no – mormente os doutrinadores mais antigos – sob a escusa de ser a lei expressão da soberania do Estado.
Todavia, tal argumentação não prospera quando se identifica que a soberania é atributo do Estado e não de seus poderes individualmente (como o é o Poder Legislativo), segundo se observa pelo disposto no art. 2º da Constituição Federal. Ademais, para que dúvidas não pairassem acerca do assunto que se analisa, optou o constituinte, quando da edição da regra de responsabilização estatal, por literalmente dispor que os poderes do Estado também se subsumiriam ao ali disposta (art. 37, caput, CF). Tendo em conta que a responsabilização estatal se vê prelecionada no parágrafo 6º, art. 37, da Constituição Federal, submete-se às disposições do caput, albergando, desta forma, de maneira igual o Poder Legislativo.
Outro argumento utilizado pelos defensores da irresponsabilidade estatal quanto à edição de leis, no desiderato de escudá-la, sustenta-se no fato de que a lei é ato de caráter geral e abstrato (lei típica). Em assim se apresentando, não teria o ato normativo o condão de ofender direito individual. Entrementes, tal fundamentação não subsiste a uma análise mais acurada.
É certo que as leis são atos abstratos e genéricos emanados pelo Estado. Porém, existem leis de índole concreta e específica, similares a atos administrativos, que terminam por se revestir da forma de lei por imposição de norma superior na hierarquia constitucional. Segundo Freire (2002, p. 367), acerca destas leis de efeitos concretos, tanto a jurisprudência quanto a doutrina já se pacificaram no sentido de admitir a responsabilização estatal pelo ressarcimento dos prejuízos.
Examinando-se ainda as leis típicas, infere-se que mesmo que revestidas dos atributos que a qualificam, poderão produzir danos, desde que concorrentes os seguintes requisitos, elencados por Troianelli (2004, p. 50):
"i) que a lei imponha determinada conduta, que obrigue ou proíba; ii) que essa conduta provoque danos a terceiros; iii) que a lei seja auto-aplicável, independendo, portanto, de regulamentação administrativa para produzir seus efeitos".
Mais um fundamento utilizado pelos defensores da irresponsabilidade estatal, quanto à edição de atos legislativos, fulcra-se no argumento de que ao cidadão lesado não é possível pleitear a responsabilidade do Estado porquanto os parlamentares que confeccionaram a norma ensejadora da responsabilização foram por todos os cidadãos eleitos. Entende-se que o aludido fundamento intenta aproximar a hipótese narrada à excludente pertinente à culpa exclusiva da vítima, como se possível fosse.
A refutação deste pífio argumento é mais que lógica: a eleição do parlamentar implica numa delegação da sociedade para a feitura de regras constitucionais, sendo que, agindo diferente, não estaria no exercício dos poderes que lhe foram outorgados. Agindo o parlamentar em abuso ou desvio do poder, ensejará a responsabilização estatal.
Aduz-se, também, como fundamento contrário à responsabilidade Estatal pelos atos legislativos, que a lei nova não viola direito preexistente e que a determinação de responsabilidade estatal por atos legislativos paralisaria a evolução da atividade legislativa, obstando, desta forma, o progresso social.
Citados argumentos não prosperam, vez que o ato normativo poderá, sem dúvida alguma, causar prejuízo à pessoa ou grupo determinado, de acordo com seu conteúdo. Quanto a estacionar a atividade legislativa, tal argumento não passa de mera falácia, haja vista que esta atividade tem que se dar em benefício de toda coletividade, caso contrário, dar-se-á em contraposição ao disposto na Carta Magna e/ou ao interesse público, devendo ser de imediato coibida.
Pelo que se expôs até o presente momento, hesitações não subsistem no que concerne à possibilidade de responsabilização do Estado pelas leis que edita por meio do Poder Legislativo, visto que esta é a previsão emanada pela Constituição Federal, que retrata os anseios da sociedade que organiza.
4.2. HIPÓTESES DE RESPONSABILIZAÇÃO ESTATAL PELA EDIÇÃO DE ATOS LEGISLATIVOS
4.2.1. Pela edição de lei constitucional
O direito à indenização é devido mesmo que a lei ensejadora do prejuízo seja formal e materialmente constitucional. Isso ocorre pela própria natureza do dano, que se revestirá do predicado injusto. Assim, dano injusto é aquele – consoante analisado no capítulo anterior – certo, especial e anormal, que inflige prejuízo a uma só pessoa ou a parcela identificada da sociedade.
No desiderato de justificar a possibilidade de responsabilização do Estado por lei constitucional, vale-se da lição do mestre Cahali (1995, p. 664), abaixo transcrita:
Mas a lei, produto da vontade soberana do órgão competente, perfeita constitucionalmente, pode causar um dano injusto aos administrados, ou pelo menos a uma certa categoria de administrados.
São situações mais freqüentes discutidas na doutrina: o particular desfruta de certas vantagens econômicas asseguradas por um ato legislativo, e, sendo este modificado ou revogado, resulta para ele a supressão ou diminuição daquelas vantagens – é o caso do proprietário que, em virtude de lei, vê o seu direito de uso, gozo, e disposição do imóvel exposto a restrições administrativas quanto à forma de utilização; o Estado estabelece a seu benefício um monopólio (RT 431/141) industrial ou comercial de certa atividade, que, assim, fica interdita aos particulares, sofrendo aqueles que a exerciam sua privação. (não se registram grifos no original).
Assim, mesmo que hígida em todos os seus preceitos, em vindo a lei causar lesão a direitos de qualquer pessoa, deve o Estado responsabilizar-se pelas reparações pertinentes. Consoante sustentado por Cretella Júnior (apud CAHALI, 1995, p. 667), "responde o Estado sempre por atos danosos, causados quer por lei inconstitucional, quer por lei constitucional".
Ademais, algumas leis, antevendo os prejuízos que suas disposições acarretarão às pessoas, de plano dispõem em seu texto previsão atenuante a seus efeitos, que tem por objetivo a presciência de indenização. Contudo, tal preceito normativo não obsta o ajuizamento de ação ressarcitória, haja vista que para a liquidação do dano é imprescindível a apuração de todos os prejuízos que sofreu o cidadão, direta e pessoalmente.
Outrossim, a ação que busca a indenização fundada na própria lei tem o escopo de tão-somente prestigiar a irresponsabilidade do Estado, vez que isentaria a responsabilidade em caso de não haver previsão expressa para tanto. Essas disposições indenizatórias, no mais das vezes, também limitam a indenização, ofendendo o direito ao devido ressarcimento de quem prejuízos sofreu6.
Destarte, mesmo que ordenada na lei possibilidade de indenização, esta se dará com sustentáculo nas disposições constitucionais, que não a limitam a qualquer teto, devendo albergar exatamente o valor dos prejuízos e compensações. Como se infere, disposições dessa natureza teriam o escopo de evidenciar a culpa estatal, totalmente dispensável em casos de responsabilidade objetiva, como o que se analisa.
4.2.2. Em virtude da declaração da inconstitucionalidade do diploma legal
No que diz respeito à responsabilidade estatal em razão de danos advindos dos efeitos que geraram lei inconstitucional, nossos pretórios não titubeiam, segundo reiteradas manifestações7. A inconstitucionalidade da norma, passível de gerar a responsabilidade do Estado, pode se dar por não ter sido obedecido o procedimento estabelecido na Carta Magna para a feitura da lei ou por conflitar a norma com preceitos naquela protegidos.
Consoante os ensinamentos ministrados por José de Aguiar Dias (1960, p. 679), "assim, podemos reconhecer a responsabilidade do Estado pelos danos causados pela lei nula, inconstitucional ou inválida, porque temos um regime que nos permite impugná-la", mais a frente complementando "isso [...] porque o ato da autoridade não pode contravir aos mandamentos constitucionais. Se o faz e do seu ao resulta danos ou lesão, o Estado é obrigado a repará-lo".
Contudo, fruto de intensa polêmica é a necessidade prévia da declaração da inconstitucionalidade do diploma legislativo como condição para o ajuizamento da demanda ressarcitória.
Segundo o sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil, a repressão às normas incompatíveis com a Regra Máxima pode se dar tanto no controle concentrado, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, como no controle difuso, onde qualquer juízo tem o poder de afastar a aplicação da norma por entendê-la contrária à Constituição Federal.
Parte da doutrina, um pouco que afoita, assevera que a declaração da inconstitucionalidade é de todo desnecessária ao ajuizamento da ação indenizatória, vez que a responsabilidade legislativa dá-se de forma objetiva, o que a faz se sujeitar, tão-somente, à existência do dano e do nexo causal deste com a lei que lhe deu causa.
Analisando com mais acuidade o tema posto, filia-se ao entendimento esposado por Cahali (1995, p. 657-8)8, segundo o qual, para a ocorrência da responsabilização estatal por ato legislativo inconstitucional, deve a norma ser declarada inconstitucional no controle concentrado, em período anterior ou até incidental à ação indenizatória, pois somente nessa hipótese a decisão proferida pelo STF contém efeitos erga omnes, e, em rega, ex tunc 9 . Assim, nos casos de declarações incidentais à ação ressarcitória, seria hipótese de aplicação de jus superveniens, previsto no art. 462. do CPC.
Observe-se ainda a utilidade de se qualificar a responsabilidade estatal como objetiva, vez que, se subjetiva fosse, além da declaração da inconstitucionalidade da lei, dever-se-ia evidenciar, cumulativamente, a existência de culpa por parte do legislador – em adoção a critério subjetivo de responsabilidade, o que resultaria em reprovável ingerência do Poder Judiciário no mérito do ato do Poder Legislativo.
Existem ainda autores que citam, como possível excludente da responsabilização estatal – e, por conseguinte, do direito de indenização –, o cumprimento espontâneo dos cidadãos à lei inconstitucional. Alega essa parcela da doutrina que os danos se dariam por culpa concorrente da pessoa (vítima do dano). No entanto, tal raciocínio não deve subsistir, vez que toda norma editada goza de presunção de constitucionalidade, decorrente de princípio de hermenêutica, o que somente impossibilita seu cumprimento em face de manifestação judicial na via alhures enunciada, que tem o poder de retirar-lhe a eficácia. Destarte, como não há possibilidade do cidadão deixar de cumprir a lei, tendo em vista a sua presunção de constitucionalidade, sucumbe o analisado argumento excludente de responsabilidade.
No entanto, frisa-se, mais uma vez, que "para obter o ressarcimento do Estado não será mister averiguar a constitucionalidade ou não do ato legislativo, bastará comprovar o dano e o nexo causal" (DINIZ, 2005, p. 642).
4.2.3. Em razão de omissão legislativa
Levando-se em consideração que o texto constitucional apresenta-se analítico e dirigente, diversos são os comandos por ele emanados, inclusive ao legislador ordinário, ditando-lhe diretrizes e obrigações no que diz respeito à edição de normas. Dessa forma, pode a Constituição Federal ser desrespeitada tanto pela ação quanto pela omissão do legislador, ocorrendo esta última modalidade quando a Lei Maior impuser ao Poder Legislativo o dever de editar lei específica, que, de sorte, resta descumprida.
Saliente-se que a omissão comentada não se circunscreve às normas programáticas, mas sim àquelas definidoras de direitos, as quais, na maioria das vezes, possuem até prazo para edição firmado no texto fundamental. De plano, insta delimitar que a própria CF traz em seu corpo mecanismos aptos para o combate à inconstitucionalidade por omissão, a saber: o mandado de injunção, no controle difuso; e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, no controle concentrado.
Entretanto, ambos os instrumentos não tem sido contemplados pelo STF com efeitos concretos, circunscrevendo-se ambos somente para a constituição da mora – mora legislatoris – do Poder Legislativo. Mora esta que só se dará, efetivamente, após o lapso do prazo fixado pelo Poder Judiciário para a edição da lei faltante, prazo que deverá ser suficientemente razoável para permitir a apresentação, tramitação, discussão e votação de um projeto de lei.
Estabelecida e concretizada a mora legislatoris, possibilitado estará ao lesionado pleitear a indenização em ação própria, por estar sendo impedido do exercício de direito garantido constitucionalmente em virtude da inércia do legislador.
Essa foi a válvula de escape encontrada pelo Poder Judiciário, vez que entende que não devem ser conferidos efeitos concretos aos instrumentos que a Constituição Federal oferece acerca das omissões legislativas 10. Destarte, é a ação indenizatória que efetiva e concretamente garantirá e satisfará o direito dos jurisdicionados que ao Poder Judiciário se socorram.
4.3. AÇÃO REGRESSIVA DO ESTADO
A regra dispõe que o Estado, quando paga a indenização ao lesado, posteriormente volta-se, em direito de regresso, contra o agente que perpetrou o dano, nas hipóteses em que este tenha agido com culpa. Todavia, não haverá a ação regressiva contra o legislador faltoso, haja vista que, segundo dispõe o art. 53. da Constituição Federal, "os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos".
Assim, mesmo que o parlamentar apresente projeto de lei que, no futuro, venha a ser convertido em lei lesiva, nunca será responsável pessoalmente pelos prejuízos que pelos cidadãos possam ser experimentados, ensejando somente a responsabilidade do Estado.
Por ser a lei ato complexo, qualificado por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (apud DINIZ, 2005, p. 643) como aquele onde "ocorre fusão de vontades ideais de vários órgãos, que funcionam, destarte, como vontade única para formação de um ato jurídico", não há como se responsabilizar, de igual forma, integrantes de comissões do Poder Legislativo ou parlamentares que favoravelmente tenham se manifestado à aprovação da lei lesiva 11.